BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PSICOPATIA E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL

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Existe uma diferença considerável entre o psicopata e o criminoso comum. O psicopata é desprovido de sentimento afetivo; logo, a realidade que percebe é uma realidade desestruturada, de fragmentos desconexos.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PSICOPATIA E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL

BRIEF CONSIDERATIONS ON PSYCHOPATHY AND CRIMINAL RECIDIVISM

 

Wellington Magalhães[1]

Tarsis Barreto Oliveira[2]

 

Segundo Morana, não há exames padronizados no Sistema Penitenciário Brasileiro para a avaliação da personalidade do preso e a consequente previsibilidade de reincidência criminal.[3] Diante desse quadro, a referida autora nos propõe que o PCL-R serve a este objetivo como instrumento seguro para a avaliação da psicopatia, especialmente por conta do sistema progressivo de cumprimento de pena, tal como regulado pela Lei nº 7.210/84.[4]

Nas palavras de Carla Alexandra, Robert Hare passou efectivamente mais de três décadas ocupado com a investigação da natureza e implicações da psicopatia.[5] Ancorada nos estudos de Hare, a citada autora deduz uma definição de psicopatia como um agrupamento de traços de personalidade e comportamentos socialmente desviantes.[6] Para Morana, o conceito de psicopatia e não-psicopatia de HARE parece encontrar relação com o que aqui se denomina, respectivamente, de TG e TP.[7] Ou seja, transtorno global da personalidade e transtorno parcial da personalidade.

De acordo com os estudos de Morana, que abrangem Robert Hare como referencial teórico-científico, as pessoas enquadradas em TP não podem ser classificadas como psicopatas.[8] Para Morana, os pacientes com TP se manifestam através de uma qualidade de ressonância emocional mais socializada. Ao contrário, os pacientes com TG não apresentam sensibilidade afetiva com propensão à socialização.[9] E completa: talvez por isso, as pessoas com TP interiorizem sentimentos mais diferenciados e maior capacidade de controlar os impulsos, a não ser em determinadas circunstâncias.[10]

Os estudos de Morana apontam que: para a população forense encontramos as faixas de 12 a 23 para TP que corresponderia à faixa de não-psicopatas para HARE, e 23 a 40 para TG que corresponderia à faixa de psicopatas para o autor, incluindo os moderados e os demais.[11] No que tange especificamente à reincidência criminal, na população de TG foi de 39,39% e na de TP foi de 8,69%, ou seja, mais de quatro (4,5) vezes maior.[12]

Como se verifica do exposto, existe uma diferença considerável entre o psicopata e o criminoso comum. O psicopata é desprovido de sentimento afetivo; logo, a realidade que percebe é uma realidade desestruturada, de fragmentos desconexos. Apesar de o psicopata ter intenção, ou dolo, sua insensibilidade afetiva compromete sua capacidade de autodeterminação, o que certamente abona a constatação de maior reincidência criminal entre os considerados psicopatas.[13]

Por outro lado, no que tange às pessoas enquadradas em TP, ou seja, com transtorno parcial da personalidade, os estudos de Hare e Morana apontam que esses indivíduos apresentam um traço anormal e mórbido, cuja repercussão sobre a dinâmica psíquica e o comportamento total é menos extensa e, em geral, menos grave do que os TG.[14] Ou seja, trata-se de um transtorno de personalidade que não retira do indivíduo, por completo, sua capacidade de autodeterminação.

As características relacionadas às pessoas com transtorno parcial da personalidade manifestam-se em circunstâncias determinadas. Ao contrário dos psicopatas, os criminosos comuns são menos insensíveis aos outros; possuem melhores qualificações profissionais; apresentam relações conjugais mais estáveis, etc. Em suma, são pessoas com maior capacidade de adaptação às regras sociais e de se autodeterminar, podendo em determinadas circunstâncias ter essa capacidade reduzida, o que, todavia, não compromete a integralidade do seu quadro psiquiátrico.

Questão interessante que envolve os indivíduos considerados TP é o da semi-imputabilidade, tal qual dispõe o parágrafo único do Código Penal Brasileiro, segundo o qual a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.[15] Isso porque, ao contrário de outros países, no sistema penal brasileiro a capacidade de determinação não se restringe ao impulso irresistível.[16] Todavia, como nos adverte Morana, a tendência do judiciário atualmente é a de considerar como semi-imputável apenas os sujeitos que apresentem comprometimento dos impulsos e neste sentido seguir a orientação internacional.[17]

É de se destacar a relevância da escala PCL-R ao longo do processo de execução criminal. Tendo em vista o sistema progressivo de regimes de pena (fechado, semiaberto e aberto), que permite a liberação do preso antes mesmo da metade da pena imposta, a aplicação da escala PCL-R, se aplicada nos presídios brasileiros, contribuiria em larga escala na triagem daqueles indivíduos mais ou menos propensos à reincidência criminal.

Muitas vezes o magistrado é chamado a decidir sobre um benefício pleiteado pelo preso, como, por exemplo, progressão de regime, saída temporária, saída teste, etc., porém, o que se verifica na prática é a indisponibilidade de instrumentos que possam lastrear uma decisão num ou noutro sentido. Tivesse o magistrado uma equipe multidisciplinar envolvida com o estudo da população carcerária, certamente melhores condições teria para decidir sobre os inúmeros pedidos que chegam à sua mesa diariamente.

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Por fim, no que toca especialmente à semi-imputabilidade prevista no parágrafo único do art. 26 do Código Penal, a tendência jurisprudencial aponta no sentido de que a semi-imputabilidade consiste em uma plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato e uma parcial capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento. Ou seja, enquanto não for revogado o mencionado dispositivo, adequando-se a legislação penal brasileira à tendência internacional, qualquer que seja a redução da capacidade de autodeterminação apontada pelos exames psiquiátricos, Rorschach ou PCL-R, deverá o magistrado aplicar a redução da pena em prestígio ao princípio da lei penal mais favorável ao réu.[18]

 

REFERÊNCIAS

FERREIRA LOBO, Carla Alexandra Costa Correia. A P-Scan de Robert Hare na avaliação da Psicopatia. Braga: Universidade do Minho, 2007.

MORANA, Hilda Clotilde Penteado. Identificação do ponto de corte para a escala PCL-R (psychopathy checklist revised) em população forense brasileira: caracterização de dois subtipos da personalidade; transtorno global e parcial. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003.

  1. Juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]

  2. Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito Penal da Universidade Federal do Tocantins. Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Estadual do Tocantins. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. E-mail: [email protected]

  3. MORANA, Hilda Clotilde Penteado. Identificação do ponto de corte para a escala PCL-R (psychopathy checklist revised) em população forense brasileira: caracterização de dois subtipos da personalidade; transtorno global e parcial. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003, p. 6.

  4. MORANA, 2003, p. 7.

  5. FERREIRA LOBO, Carla Alexandra Costa Correia. A P-Scan de Robert Hare na avaliação da Psicopatia. Braga: Universidade do Minho, 2007, p. 4.

  6. FERREIRA LOBO, 2007, p. 7.

  7. MORANA, 2003, p. 14.

  8. MORANA, 2003, p. 14.

  9. MORANA, 2003, p. 15.

  10. MORANA, 2003, p. 15.

  11. MORANA, 2003, p. 118.

  12. Cfr. Os dados de literatura referentes ao PCL-R atestam a sua validade e confiabilidade em aferir o risco de reincidência criminal. Harris, Rice e Cormier (1991) relatam que em uma amostra de 169 pacientes forenses masculinos, a escala PCL-R foi aplicada. Nestes a recidiva em violência para psicopatas foi de 77%, quatro vezes maior, que para não psicopatas, que foi de 21%. Os resultados desta pesquisa corroboram os dados acima. A reincidência criminal na população de TG foi de 39,39% e na de TP foi de 8,69%, ou seja, mais de quatro (4,5) vezes maior. Fonte: MORANA, 2003, p. 117.

  13. MORANA, 2003, p. 115.

  14. MORANA, 2003, p. 111.

  15. TJDFT, Se restou demonstrado nos autos que, apesar de o acusado manter preservada sua capacidade de entendimento em relação ao caráter criminoso do fato, mas reduzida a capacidade de autodeterminação em relação a esse entendimento, incide a causa de diminuição de pena estabelecida no parágrafo único do artigo 26 do Código Penal. Não se aplica a redutora máxima de pena estabelecida no art. 26 do CP, visto que tal redução deve ser reservada àqueles cujas características se aproximem das verificadas nos inimputáveis. (Acórdão n.596599, 20100710180463APR, Relator: ROMÃO C. OLIVEIRA, Revisor: MARIO MACHADO, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 08/06/2012, Publicado no DJE: 04/07/2012. Pág.: 211). TJRS, Caso em que a semi-imputabilidade do réu quando do cometido do crime deve ser reconhecida, pois que restou suficientemente comprovado nos autos que o réu, naquele período, estava em tratamento contra a dependência química, bem ainda que estava sob efeito de drogas no momento do cometimento do crime. A aplicação de circunstâncias atenuantes não pode levar à fixação da pena abaixo do mínimo legal, conforme preceitua a Súmula nº 231 do STJ. APELAÇÃO PROVIDA, EM PARTE. POR MAIORIA. (Apelação Crime Nº 70054378955, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 20/06/2013).

  16. MORANA, 2003, p. 115.

  17. MORANA, 2003, p. 115.

  18. Considera-se mais favorável ao réu o dispositivo legal que, em comparação com outro, dedicar-lhe tratamento menos rigoroso.

Sobre os autores
Wellington Magalhães

É juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO). Diretor adjunto da Escola Superior das Magistratura Tocantinense (ESMAT). Juiz eleitoral da 13ª Zona Eleitoral do Tocantins, coautor e coordenador do programa permanente de Inclusão Sociopolítica dos Povos Indígenas do Tocantins (TRE-TO). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal (FDUC) e em Direitos Humanos e Prestação Jurisdicional pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Atualmente cursa doutorado em Desenvolvimento Regional com ênfase na gestão sustentável dos recursos hídricos (UFT).

Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Informações sobre o texto

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