A COMPLEXA RELAÇÃO ENTRE OS DIREITOS HUMANOS E A ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: BREVES APONTAMENTOS SOBRE A ATUAÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

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Aborda-se a complexa relação entre direitos humanos e a ordem constitucional brasileira, traçando breves apontamentos sobre a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A COMPLEXA RELAÇÃO ENTRE OS DIREITOS HUMANOS E A ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: BREVES APONTAMENTOS SOBRE A ATUAÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

THE COMPLEX RELATIONSHIP BETWEEN HUMAN RIGHTS AND THE BRAZILIAN CONSTITUTIONAL ORDER: BRIEF NOTES ON THE ROLE OF THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS

 

Wellington Magalhães[1]

Tarsis Barreto Oliveira[2]

 

1. INTRODUÇÃO

Após o fim da Segunda Guerra Mundial ficou evidente a necessidade de se criar mecanismos que garantissem a realização e máxima efetividade dos direitos humanos no contexto global, razão pela qual foram criados diversos organismos supranacionais. Em paralelo também foram criados os sistemas regionais, entre os quais podemos destacar o Conselho da Europa[3] e a Organização dos Estados Americanos[4], ambos contemplados com seus respectivos Tribunais.

Não obstante a existência desses órgãos, também os Estados nacionais têm dispensado maior atenção às questões envolvendo a proteção da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Contudo, decisões conflitantes entre os tribunais nacionais e os tribunais supranacionais têm se tornado rotina, a exemplo do ocorrido no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil[5], julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 24 de novembro de 2010, e a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (APDF) n.º 153[6].

Diante desse quadro de tensão e contrariedade, a questão que se alvitra para o debate é a de analisar até que ponto essa divergência contribuiu para a efetiva proteção dos direitos fundamentais na arena global[7].

Ressalte-se, no entanto, que neste trabalho abordaremos tão somente a sentença proferida no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, focando no termo controle de convencionalidade, para, ao final, apresentarmos possíveis conclusões acerca do problema.

2. DESENVOVIMENTO TEÓRICO

Em matéria de direitos humanos não existem fronteiras. Inobstante seu predicado universalista, as constantes divergências entre decisões judiciais proferidas no plano nacional e aquelas pronunciadas pelas cortes supranacionais[8] têm forçado a comunidade jurídica especializada no tema a debruçar-se sobre as causas e os efeitos desse fenômeno.

Segundo Comparato[9], os direitos humanos foram identificados com os valores mais importantes da convivência humana, aqueles sem os quais as sociedades acabam perecendo, fatalmente, por um processo irreversível de desagregação. Para Santos[10], os direitos humanos são parte integrante do projeto da modernidade, e esse projeto é ambicioso e revolucionário. As possibilidades de realização são infinitas, mas, por o serem, contemplam tanto o excesso das promessas, como o déficit do seu cumprimento.

Com efeito, a definição dos direitos humanos encontra-se intrinsecamente ligada ao princípio da dignidade humana, assumindo um caráter universal, inalienável e transcendental, uma vez que está para além do domínio dos direitos fundamentais, assumindo um papel medular de toda a ordem constitucional.

Diante da inegável importância dos direitos humanos, após o fim da Segunda Guerra a comunidade internacional, por meio da Carta das Nações (1945) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), criou a Organização das Nações Unidas, que tem em sua estrutura um Tribunal Internacional de Justiça.

Posteriormente também foram criados sistemas regionais de proteção e defesa dos direitos humanos, como, por exemplo, o Conselho da Europa, com sua Corte Europeia de Direitos Humanos, e a Organização dos Estados Americanos, com a sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos e um Tribunal Interamericano de Direitos Humanos. Também no plano internacional, por meio do Estatuto de Roma (1998), criou-se o Tribunal Penal Internacional.

Todos esses tribunais supranacionais atuam de forma subsidiária e complementar, ou seja, integram um sistema de proteção e defesa dos direitos humanos cuja atuação se impõe diante da ineficiência ou manifesto desinteresse das instituições nacionais em reprimirem e punirem graves violações aos direitos humanos.

Percebe-se, portanto, que uma nova ordem jurídica internacional foi inaugurada com a Declaração Universal de 1948, ordem que se encontra focada nos valores inerentes à dignidade humana e que representa a reconstrução humanista do direito a nível global. Esse novo direito surgido após o holocausto também abriu caminho à jurisdicionalização dos direitos humanos no âmbito internacional[11].

Entretanto, conforme descrevemos acima, tem sido comum a presença de decisões conflitantes, como a declarada no julgamento proferido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo pedido principal resumia-se a uma revisão da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79).

No caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) não se solicitou ao Tribunal Interamericano a realização de um exame da Lei de Anistia com relação à Constituição brasileira. O que houve na verdade foi um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais assumidas pela República Federativa do Brasil.[12]

No mencionado julgamento o Tribunal Interamericano considerou que a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n.º 153 à Lei de Anistia afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana; e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção.

Para a Corte:

quando um Estado é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos.

Dessa forma, o Poder Judiciário está internacionalmente obrigado a exercer um controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção Americana, bem como a interpretação que lhe é dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.[13]

Sob a ótica da jurisdição internacional a decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem, no entanto, considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8º e 25º da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento.[14]

3. CONCLUSÃO

A defesa e proteção dos direitos fundamentais não mais se limitam à jurisdição nacional. A globalização e os avanços tecnológicos têm contribuído como nunca para o rompimento das fronteiras. O acesso à justiça não pode ser visto como simples acesso ao judiciário local, especialmente em tempos nos quais os intercâmbios políticos, sociais e culturais entre nações se intensificam.

Paradoxalmente, conforme acima analisado, tem-se um Tribunal nacional confirmando a validade de uma lei e, de outro, uma Corte supranacional declarando a invalidade da mesma perante o Direito Internacional. A partir dessa controvérsia muitas perguntas embasariam intermináveis debates.

Longe de exaurir o tema, pode-se, no entanto, referenciar o movimento de aproximação entre as jurisdições nacional e internacional[15], a propósito do que nos ensinam as teorias do judicial dialoge, que prometem complementar o problema metodológico gerado pelo direito em rede no domínio do controle judicial dos direitos fundamentais[16], hoje mais globalizado do que nunca.

 

REFERÊNCIAS

ADPF153. Supremo Tribunal Federal. 29 de abril de 2010. Acesso em março de 2011.

BOTELHO, Catarina Santos. A tutela directa dos direitos fundamentais: avanços e recuos na dinâmica garantística das justiças constitucional, administrativa e internacional. Coimbra: Almedina, 2010.

CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. 24 de novembro de 2010. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em 29 de março de 2011.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2007.

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

SANTOS, Boaventura de Souza. Os direitos humanos na sociedade pós-moderna. Repositório digital da Universidade de Coimbra. 1989. https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/10919. Acesso em 23 de março de 2011.

SILVA, Suzana Tavares da. Direitos fundamentais na arena global. Coimbra: Coimbra, 2011.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O direito internacional em um mundo em transformação. Ensaios, 1976-2001. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

  1. Juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]

  2. Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito Penal da Universidade Federal do Tocantins. Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Estadual do Tocantins. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. E-mail: [email protected]

  3. Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950).

  4. Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969).

  5. Em 7 de agosto de 1995, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch/Americas, em nome de pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares, representaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Consta do julgado que a demanda se refere à alegada responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975, com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (19641985).

  6. Em 21 de outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a de n.º 153, junto ao Supremo Tribunal Federal brasileiro, cuja petição inicial compreendia duas linhas de argumentação: a) de uma banda visava à contemplação de interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar-se que a anistia concedida pela Lei n.º 6.683/79 aos crimes políticos ou conexos não se estendia aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964 1985); b) e a declaração de que a mencionada Lei de Anistia não teria sido recepcionada pela Constituição da República, de 5 de outubro de 1988.

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  7. SILVA, Susana Tavares da. Direitos fundamentais na arena global. Coimbra: Coimbra, 2011.

  8. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo pedido principal resume-se à revisão da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79). Também na Europa tem-se observado constantes divergências entre as decisões proferidas no âmbito dos tribunais nacionais e aquelas emanadas do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como, por exemplo, a utilização de crucifixos em escolas públicas da Itália e a expulsão de um juiz italiano que se recusava a dar audiência em tribunais que ostentassem crucifixos.

  9. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2007.

  10. SANTOS, Boaventura de Souza. Os direitos humanos na sociedade pós-moderna. Repositório Digital da Universidade de Coimbra. 1989. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/10919. Acesso em 17 de dezembro de 2013.

  11. Trindade, Antônio Augusto Cançado. O direito internacional em um mundo em transformação. Ensaios, 1976-2001. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1077.

  12. Decreto Legislativo nº 27/1992. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=27&tipo_norma=DLG&data=19920526&link=s. Acesso em 17 de dezembro de 2013.

  13. Cf. Caso Almonacid Arellano e outros, supra nota 251, par. 124; Caso Rosendo Cantú e outra, supra nota 45, par. 219, e Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, supra nota 24, par. 202.

  14. Cf. Responsabilidade internacional pela emissão e aplicação de leis que violem a Convenção (art. 1 e 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Opinião Consultiva OC- 14/94, de 9 de dezembro de 1994. Série A No. 14, par. 35; Caso do Penal Miguel Castro Castro versus Peru. Mérito, Reparações e Custos. Sentencia de 25 de novembro de 2006. Série C No. 160, par. 394, e Caso Zambrano Vélez e outros versus Equador. Mérito, Reparações e Custos. Sentencia de 4 de julho de 2007. Série C No. 166, par. 104. De igual maneira, cf. Caso Castillo Petruzzi e outros versus Peru. Cumprimento de Sentença. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 17 de novembro de 1999. Série C No. 59, Considerando 3; Caso de La Cruz Flores versus Peru. Supervisão de Cumprimento de Sentença, Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 1 de setembro de 2010, Considerando 3, e Caso Tristan Donoso versus Panamá. Supervisão de Cumprimento de Sentença, Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 1 de setembro de 2010, Considerando 5.

  15. Cfr. também, nesta matéria, NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 144-145. (...) Tanto do lado da CIDH, quanto da parte das cortes estatais, tem havido disposição de diálogo em questões constitucionais comuns referentes a proteção dos direitos humanos, de tal maneira que se amplia a aplicação do direito convencional pelos tribunais domésticos.

  16. SILVA, Suzana Tavares da. Direitos fundamentais na arena global. Coimbra: Coimbra, 2011.

Sobre os autores
Wellington Magalhães

Wellington Magalhães é juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO). Diretor Adjunto de Altos Estudos e Pesquisa da Escola Superior da Magistratura do Tocantins (ESMAT). Coordenador do Núcleo de Prevenção e Regularização Fundiária da Corregedoria Geral de Justiça do Tocantins (NUPREF) e do Centro Judiciário de Solução de Conflitos Ambientais e Fundiários (CEJUSCAF). Membro permanente do Fórum Fundiário Nacional das Corregedorias-Gerais de Justiça do Brasil (FFN). Coautor do Programa Permanente de Inclusão Sociopolítica dos Povos Indígenas do Tocantins (TRE-TO) e do Projeto Gestão de Alto Nível dos Recursos Hídricos da Bacia do Rio Formoso (IAC/UFT). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal (FDUC) e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins, Brasil (UFT). Doutor em Desenvolvimento Regional com tese Desenvolvimento Regional, Políticas Públicas e Efetividade da Prestação Jurisdicional: proposições a partir do processo estrutural na resolução de conflitos pelo uso da água (UFT). Formador credenciado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Coordenador de cursos jurídicos e conferencista sobre temas afetos aos direitos humanos, meio ambiente, povos indígenas e efetividade da prestação jurisdicional.

Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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