O objeto do presente artigo é delinear as normas constitucionais do Direito Sanitário Brasileiro, no contexto da pandemia do COVID-19 no país, visto que estamos diante da mais grave crise sanitária que o Brasil já enfrentou em todos os tempos, mormente na questão da gestão única de leitos públicos e privados, do direito de locomoção, e na questão da vacinação das crianças no país. Senão, vejamos:
a)Gestão única de Leitos públicos e privados:
Preliminarmente, insta salientar que, no início da pandemia no Brasil, foi publicada a Lei 13979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Nos primeiros meses de pandemia, ventilou-se a possibilidade de gestão única de leitos, públicos e privados, pelo Poder Público, direito este tutelado pela própria Constituição Federal, nos termos do Art. 5º, inc.XXV. A CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE - HOSPITAIS, ESTABELECIMENTOS E SERVIÇOS - CNS propôs a AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE(ADI) nº 6.362 sustentando, em síntese, que o Ministério da Saúde deveria coordenar a efetivação das medidas de requisição administrativa prevista no art. 3°, VII, da Lei 13.979/2020, as quais não poderiam ser levadas a efeito, pelos entes subnacionais, antes dos estudos e do consentimento do órgão federal.
Para Santos (2020), o objeto da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade(ADI 6362), fere a autonomia do ente federativo, pois entende que, caso haja necessidade de alguma organização, ela deve ser feita mediante diretrizes estabelecidas pela CIT, e não subordinadas ao controle do Ministério da Saúde.
Corroboramos com a opinião da autora pois, devido ao pacto federativo, a União, representada pelo Ministério da Saúde, não pode invadir as competências dos outros entes federativos na prestação de serviços de saúde, uma vez que a competência desses entes é concorrente, mormente em razão da grave crise sanitária desencadeada pela Pandemia do Coronavírus.
Isto posto, passemos à próxima norma.
b) Direito à locomoção:
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inc. XV prevê livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens"( BRASIL, 1988), ou seja, a Constituição Federal assegura o direito individual de locomoção.
Não se pode olvidar, entretanto que a saúde, tutelada pelo Direito Sanitário, é um direito social, previsto no Artigo 6º. também da Constituição Federal. Veja-se:
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição ( BRASIL, 1988, grifo nosso). Para Uchôa (2020) tem-se um direito individual, o de locomoção, e entre os direitos sociais, o direito à saúde, ambos direitos humanos fundamentais.
Complementa Uchôa (2020) que, Ao estabelecer que a saúde é direito fundamental de todos e dever do Estado, que será garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, o artigo 196 da Constituição da República é a base constitucional em que a Lei n. 13.979/2020 foi promulgada. O equilíbrio entre o direito individual e o direito à saúde pública na implementação da quarentena e do isolamento requer que os agentes envolvidos tornem público o racional científico por trás das medidas, a sua eficiência e a sua necessidade diante da pandemia, bem como que submetam esses requisitos ao escrutínio da sociedade.
Concordamos com a posição do autor, uma vez que não há direito absoluto, nem sequer os direitos fundamentais.
Analisando o caso concreto ,portanto, é notória a colisão de direitos fundamentais, que deve ser resolvido com o uso de ponderação.
Em outras palavras , entendemos que, em plena pandemia do COvid-19, foi legítima e necessária a restrição ao direito à locomoção, pois, na ponderação de direitos fundamentais, o direito à vida se sobrepõe ao direito de ir e vir.
c) Liberdade de consciência X Vacinação Infantil:
Em relação à recente vacinação das crianças no Brasil, Alves et al( 2020) sustentam que (....) a recusa em aderir às campanhas de vacinação não afeta apenas a órbita individual, podendo apresentar impactos severos na saúde de toda uma coletividade, pois, se a cobertura vacinal não for suficiente para garantir a imunização da população, o risco de recrudescimento de doenças é real.
Um exemplo desta situação foi observada em 2019, quando o Brasil perdeu o reconhecimento concedido pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS) de zona livre de sarampo em virtude da confirmação de casos novos contraídos dentro do próprio território(endêmicos), ocasião em que o Ministério da Saúde se pronunciou no sentido de adotar medidas para elevar a taxa de cobertura vacinal para controlar a situação
Concordamos com os autores sobre a questão da obrigatoriedade da adesão da vacinação, pois entendemos que, se de um lado os responsáveis legais se vêem no direito de recusar a vacinação por ideologias- sejam elas políticas, sociais ou religiosas- por outro lado o Estado tem o dever constitucional de zelar pela Saúde de todos os brasileiros. Desta forma, a vacinação é medida que atende o Direito à Saúde, posto que é usada para tal desiderato.
CONCLUSÃO
Ponderando as normas constitucionais na Pandemia do Covid-19 ,foi necessário o sopesamento de alguns valores constitucionais, em detrimento de outros, levando em consideração que nenhum direito é absoluto, quando se esbarra em outros direitos e valores constitucionais, prevalecendo o direito à saúde. como veremos a seguir:
No que concerne à gestão única dos leitos públicos e privados, em relação à ADI 6362, posteriormente foi decidido que o federalismo cooperativo, exige que a União e as unidades federadas se apoiem mutuamente no enfrentamento da grave crise sanitária e econômica decorrente da pandemia desencadeada pelo novo coronavírus, ou seja, não há necessidade que a União, representada pelo Ministério da Saúde, autorize a requisição de leitos na esfera privada.
Em relação ao direito à locomoção, a Lei 13979 de 2020 está amparada pelo Artigo 196 da Constituição Federal, ou seja, é dever do Estado garantir o direito à saúde. Desta forma, em que pese o direito individual à locomoção, não se pode prejudicar o direito coletivo à saúde.
E por fim, quanto à obrigatoriedade da vacinação em crianças, o próprio STF decidiu em plenário, no Recurso Extraordinário com Agravo 1.267.879, que é legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária, em relação à qual exista consenso médico científico. Desta forma, foi fixada a seguinte tese: É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.
Podemos concluir, portanto, que o pacto federativo permite que os entes federativos sejam autônomos em relação à requisição de leitos privados em necessidade urgente de saúde; o direito à locomoção e a liberdade de consciência, quando insertas em um contexto de pandemia do COVID_19, são direitos individuais que não se legitimam pois afetam gravemente direitos de terceiros, mormente o Direito à Saúde, tutelado pelo Direito Sanitário.
Referências Bibliográficas:
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UCHÔA, S. B. B.; UCHOA, B. B. Coronavírus (COVID-19) Um Exame Constitucional e Ético das Medidas Previstas na Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Cadernos de Prospecção, [S. l.], v. 13, n. 2 COVID-19, p. 441, 2020. DOI: 10.9771/cp.v13i2 COVID-19.36163. Disponível em:
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Acesso em: 22 jan. 2022
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Acesso em 23/1/22