Franz Kafka, 1923 (Foto: via Wikimedia Commons)
Como esclarecimento dessa narrativa acrescento apenas que não só ela é penosa, mas que o nosso tempo em geral e o meu em particular também o são. KAFKA ao seu editor, sobre Na colônia penal. []
É na polidez da palavra que Kafka alcança uma realidade tão incontroversa quanto doída e, a ponto de orquestrar o discurso na partitura da narrativa, promulga a delinquência constituinte da ordem. Sua obra é a nossa sentença.
Sobre o autor, Einstein já confidenciava:
Não pude lê-lo, o espírito humano não é suficientemente complicado para compreendê-lo [2]
Pois, nesse horizonte de recorte Kafkiano, de águas impuras da Lei que veleja a novela Na Colônia Penal, redigida no ano de 1914. Uma prosa que denuncia a hediondez da máquina de punir.
A máquina consiste em enferrujada engrenagem responsável pela grafia da sentença sob o corpo de transgressores, materializando a dor para que seja vista: o mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo [3]. Daquela maneira e, à medida de sua pontualidade alegórica, o engenho logra alcançar a singularidade de uma execução da pena. Eis que, sob a ótica Foucaultiana, Thiago Rodrigues observa a colônia:
A pena visa a carne, os nervos, a pele. [...]. No corpo do supliciado, como uma lousa na qual se publicam os vícios, o ato de justiça deve se tornar legível para todos [4]
De certo, Na Colônia Penal será fincado ao corpo apenas o necessário - Honra o teu superior! [5] - não se deve conceder espaços à hesitações na estreita totalidade do delito, afinal, a culpa é certa, a punição é de lei e, o processo, um intervalo cinza de uma sentença sempre antes concluída.
A aparelhagem, fechada em si mesma [6], enxerga na violência o auge da sofisticação, sendo a sanção esculpida na carne do condenado e decodificada por ele na simetria de suas lesões e sofrimento O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os ferimentos [7]. Na ilha de K. ou, na nossa colônia, violência é linguagem, sendo a própria essência natural das coisas acondicionar nos recursos de coerção e castigo o intuito de imprimir regra ética e opressão pelo tormento público.
Numa outra aresta, a tribuna do veredito é espetáculo e deleite popular, na particularidade dos detalhes o rastelo foi feito de vidro [...] para possibilitar que todos vistoriem a execução da sentença [8]. Pois:
Sem crueldade não há gozo, eis o que nos ensina a mais antiga e remota história do homem, o castigo é uma festa [9]
Nessa linha, a intransigência erosiva do rigor em punir encontra guarida na ausência da Defesa, tornando o rito Inquisitorial a única lógica viável no processo: Era soldado, juiz, construtor, químico e desenhista? Certamente [10], presidindo os autos a uma marcha de indiferença quase visível [11]
De fato, o primado processual segue perfeito, uma indústria de sentenças limpas, nem o mais árduo ou autêntico tormento do homem parecem qualificados a macular uma pureza tão implacável. Um olimpo quase divino de culpa, terror e morte.
Uma vez posta a caminho, nada deterá a Máquina; nenhuma lógica que não a sua prevalecerá [12]
A crise é perene na universalidade de punir, muita retidão da lei e tanta falência do homem. Que a ficção de K, tão cínica quanto palpável, nos golpeie e lance à descontinuidade e despertar, irradiando fúria e violação à Tragédia da Ordem.
REFERÊNCIAS:
[1] KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013. p. 78.
[2] An Anthology of Criticism, cit in Justiça kafkiana: a lei-esquizo vige sem significar de Luciana Araujo de Paula p. 3.
[3] KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013. p. 36.
[4] PASSETTI, Edson, Kafka Foucault sem medos, São Paulo: Ed. Ateliê Editorial, 2004. P. 168.
[5] KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013. p. 36.
[6] SOUZA, Ricardo Timm. A Justiça, o veredicto e a colônia penal. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2011. p. 59.
[7] KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013. p. 44.
[8] Idem, p. 40.
[9] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2013. p. 65.
[10] KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013. p. 36.
[11] Idem, p. 30.
[12] Disponível em < http://timmsouza.blogspot.com/2012/09/kafka-totalidade-critica-ruptura.html > Acesso em: 29 jun 2021.