Bastam os indícios de autoria e prova da materialidade para levar o indivíduo a júri: Nova injustificada e ilegal negativa de vigência à Lei

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1. INTRODUÇÃO

Algumas decisões dos tribunais brasileiros enojam, isso no sentido de provocar tristeza profunda, semelhante àquela que gera a licença nojo, em face do luto pela perda, por exemplo, de ascendente ou descendente (CLT, art. 473, inc. I). Isso já mencionei noutras publicações.

No caso vertente, menciono absurda declaração de inconstitucionalidade às avessas, feita pela 1ª Turma do STF, in verbis:

EMENTA: Processual penal. Agravo regimental em habeas corpus. Homicídio qualificado. Sentença de Pronúncia. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Fatos e provas. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que bastam a prova da materialidade e os indícios da autoria para levar o indivíduo a julgamento pelo Tribunal do júri, uma vez que as dúvidas quanto à certeza do crime e da autoria deverão ser dirimidas durante o julgamento perante aquele tribunal, já que a sentença de pronúncia não faz juízo definitivo sobre o mérito das imputações e sobre a eventual controvérsia do conjunto probatório. Nesse sentido: HC 95.549, Rel.ª. Min.ª Cármen Lúcia. 2. Para chegar à conclusão diversa das instâncias antecedentes, seria necessário o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que não é possível na via restrita do habeas corpus. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.[2]

A 1ª Turma do STF não pode declarar inconstitucionalidade de lei. Ainda que a decisão seja unânime, como foi a transcrita, não terá o quorum mínimo, exigindo a remessa ao Plenário do STF.

Dispõe o Código de Processo Penal:

Art. 414. Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.

Parágrafo único.  Enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova.

Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:

I – provada a inexistência do fato;

II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

III – o fato não constituir infração penal;

IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva.

........................................................................................................................

Art. 418. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, embora o acusado fique sujeito a pena mais grave.

Art. 419.  Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no § 1o do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja.

Parágrafo único. Remetidos os autos do processo a outro juiz, à disposição deste ficará o acusado preso.

Somente a dúvida autorizará a pronúncia do acusado, não devendo o juízo do tribunal do júri expor eventual certeza sobre a prática do crime pelo pronunciado, a fim de evitar o induzimento do povo, o qual, por intermédio do conselho de sentença, será o iudicium causae, o que se infere do art. 413, § 1º, do CPP.

O art. 414 transcrito versa sobre a impronúncia, o qual não traz maiores complicadores, mas a decisão nega ao Juiz o poder de absolver sumariamente (art. 415) ou de fazer operar a desclassificação (artigos 418 e 419). De uma forma peculiar, o STF declara a inconstitucionalidade de tais artigos.

2. A DENÚNCIA E A QUEIXA DEVEM NARRAR CRIME NÃO APENAS INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE DE EVENTUAL CRIME

A petição inicial em matéria criminal será uma denúncia, elaborada por Membro do Ministério Público, ou uma queixa, elaborada por Advogado, essa na ação criminal de iniciativa privada. Ocorre que a doutrina e a jurisprudência informam que para os momentos de oferecimento da denúncia e da decisão de pronúncia, são suficientes os indícios de autoria e a prova da materialidade.

Com Afrânio Silva Jardim rejeitamos essa posição da doutrina dominante, afirmando:

Aqui nos parece residir o equívoco maior, pois a divisão da infração penal em elementos ou requisitos tem uma finalidade meramente metodológica na ciência penal. O crime é um todo indivisível e o Estado somente poderá, processualmente, ver acolhida a sua pretensão punitiva se provar que o réu praticou uma conduta típica, ilícita e culpável, vale dizer, este “todo indivisível”. Qualquer presunção, neste particular, somente pode ser reconhecida se estiver determinada na lei, o que não ocorre no Direito dos povos cultos.[3]

E, sendo ainda mais claro:

Desta maneira, sustentamos enfaticamente que a acusação penal deve “alegar” (rectius, atribuir ao réu) não só um fato típico mas também a sua ilicitude e reprovabilidade. A tipicidade é tomada aqui tanto no seu aspecto objetivo como subjetivo (dolo).[4]

O CPP preceitua:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

O sistema da nossa processualística criminal é misto, sendo a fase da investigação criminal inquisitiva, enquanto a judicial será acusatória, o que significa que uma parte acusará, a outra se defenderá e um terceiro (Juiz), decidirá. Com isso, a iniciativa oficial prevista no artigo transcrito deverá ser excepcional e supletiva.

Com propriedade, Damásio Evangelista de Jesus afirmava:

O delito é um todo, não podendo ser dividido em partes, como se fosse uma fruta cindida em pedaços. O crime é um fato a que se agregam características. Pode-se falar, então, em requisitos ou características do delito, não em elementos.[5]

No entanto, com base em perspectivas simplistas, bancas examinadoras de concursos públicos consideram correto afirmar que para o recebimento da denúncia e para a decisão de pronúncia são suficientes os elementos objetivos do crime, eventual excludente de ilicitude ou culpabilidade deverão ser provados no curso do processo.

Obviamente, em situações grosseiras, se admite flexibilizar, como, por exemplo, eventual denúncia contra menor de 18 anos será rejeitada e os autos encaminhados à Vara da Criança e do Adolescente para o procedimento próprio perante o juízo competente. Ocorre que não deve ser assim.

3. IN DUBIO PRO REO E IN DUBIO PRO SOCIETATE

Afirma-se que o in dubio pro reo (a dúvida se revestirá em favor do réu) é um verdadeiro princípio da processualística criminal, isso porque ela se orienta pela verdade material e pelo princípio favor rei. No entanto, a fase postulatória do procedimento, prevalecerá o in dubio pro societate (a dúvida se revestirá em prol da sociedade).

O procedimento dos crimes dolosos contra a vida (júri), é composto de duas fases. A primeira fase, iudicium accusationis, se dará perante o juízo do tribunal do júri, na qual o Juiz singular verificar a plausividade da acusação. Sendo plausível, ele pronunciará o acusado e o remeterá ao povo (iudicium causae). No entanto, se o Juiz se convencer da inexistência de indícios de autoria ou da prova da materialidade, deverá impronunciar o réu. Podendo ainda, tendo certeza, o absolver sumariamente ou desclassificar para crime menos grave da competência do júri e, até, fazer operar emendatio libelli ou a mutatio libelli (CPP, artigos 383-384 e 418-419) para remeter a outro juízo.

A decisão de pronúncia, na redação original do CPP era denominada de sentença de pronúncia. Ocorre que ela não é sentença em sentido estrito, sendo uma decisão interlocutória mista em que o Juiz encerra uma fase do processo. Assim, diz-se que ela se orienta pelo in dubio pro societate, ou seja, estando em dúvida o Juiz deverá pronunciar o acusado.

Houve um caso famoso em que alguns rapazes, sendo um adolescente, queimaram um silvícola em uma praça de Brasília. A então Juíza Titular da Vara do Tribunal do Júri fez operar a desclassificação, decisão que foi mantida pelo TJDFT.[6] No entanto, em sede de recurso especial, o STJ decidiu:

EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. TEMPESTIVIDADE. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA Nº 400-STF. JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO E LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE. PRONÚNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO. REVALORAÇÃO E REEXAME DO MATERIAL COGNITIVO.

I - Embora o Ministério Público, na esfera criminal, não possua o benefício do prazo em dobro, a sua intimação, entretanto, é sempre pessoal, na pessoa do agente do "parquet" com atribuições para recebê-la e não na de funcionário da Instituição (cfe. art. 41, inciso IV, da Lei n. 8.625/1993, art. 18, inciso II, alínea "h" da LC 75/1993 e art. 370 § 4º do CPP).

II - É de ser reconhecido o "prequestionamento" quando, no acórdão recorrido, a "quaestio iuris" está suficientemente ventilada juntamente, ainda, com dispositivos legais pertinentes.

III - A Súmula n. 400-STF não é óbice para o recurso especial e, "in casu", concretamente, ela seria inaplicável.

IV - A decisão, na fase da pronúncia, aprecia a admissibilidade, ou não, da acusação, não se confundindo com o denominado "iudicium causae".

V - A desclassificação, por ocasião de "iudicium accusationis", só pode ocorrer quando o seu suporte fático for inquestionável e detectável de plano.

VI - Na fase da pronúncia (iudicium accusationis), reconhecida a materialidade do delito, qualquer questionamento ou ambiguidade faz incidir a regra do brocardo "in dubio pro societate".

VII - Detectada a dificuldade, em face do material cognitivo, na realização da distinção concreta ente dolo eventual e preterdolo, a acusação tem que ser considerada admissível.

Recurso conhecido e provido.[7]

Se os recursos especial e extraordinário não se prestam ao reexame da prova, obviamente o STJ violou a sua Súmula 7 ao remeter o caso ao julgamento do tribunal do júri, visto que o exame da prova foi feito pela Juíza do Tribunal do Júri de Brasília e a decisão, no mérito, foi confirmada pela 2ª Turma Criminal de Brasília.

Tendo o Juiz absoluta certeza da inexistência de necandi animus deve fazer operar a desclassificação. Nesse sentido:

EMENTA: Recurso em sentido estrito. Homicídio doloso. Pronúncia. Elemento subjetivo. Fundamentação. Atropelamento. Prática de “pega” em via pública.

1. Deve o juiz, ao pronunciar o réu por homicídio, indicar os elementos que o convenceram de ter ele agido dolosamente.

2. Na inexistência de prova de que o agente tenha consentido ou se conformado com a morte da vítima, atropelada com seu veículo durante “pega” em via pública, quando desenvolvia velocidade excessiva para o local, afasta-se a competência do tribunal do júri para o julgamento por não se tratar de homicídio doloso.[8]

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A ideia de que o Juiz deve zelar para que não seja afastada a competência constitucional dos jurados,[9] não deve ceder lugar a levar todos os fatos às incertezas do tribunal popular. Sobre isso, tratando da classificação tripartida das infrações criminais, Basileu Garcia afirmou:

Na França, por exemplo, os crimes são julgados pelo júri, os delitos competem aos tribunais correcionais e as contravenções, aos tribunais de polícia. Contraditoriamente, os delitos, apesar de menos graves que os crimes, são apreciados com maior rigor, sem as incertezas comuns na justiça popular. Daí o frequente uso, pela magistratura, do “expediente oficioso da correcionalização”, ou seja a desclassificação de crimes, algo forçada, para delitos, pelo não reconhecimento de indissimuláveis circunstâncias agravadoras da ocorrência sub judice.[10]

Em tempos em que as incertezas fazem “é o caos que é regra”,[11] temos que tomar muito cuidado com soluções simplistas que hipervalorizam a remessa de casos que envolvam mortes ao júri.

Os discursos de ódio e as intolerâncias que grassam em nosso meio tornam o tribunal do júri um ambiente de grande risco para aplicação de penas severas e descabidas.

4. CONCLUSÃO

Não podemos nos olvidar de que o momento é de grande intolerância social, tornando o tribunal do júri severo. Isso tenho constatado na prática da advocacia criminal que exerço.

O tribunal do júri deveria se orientar pelo in dubio pro reo. Não tem sido assim. O povo tem optado pelo in dubio pro societate, sendo difícil alterar a sua decisão em sede recursal, em face da soberania do veredito do tribunal popular.

O exposto nos leva a refutar arestos simplistas como aquele que nos estimulou à construção deste artigo, visto que não se pode negar eficácia aos dispositivos legais que autorizam a impronúncia, a absolvição sumária e a desclassificação.


[2] STF. 1ª Turma. HC 207.503 AgR. Min. Roberto Barroso, julgamento 14.2.2002, DJe 17.2.2022. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=759215530>. Acesso em: 7.3.2022, à 7h.

[3] JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 207.

[4] Ibidem. p. 210.

[5] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 1, p. 152.

[6] TJDFT. 2ª Turma Criminal. RSE n. 1.826/1997:

EMENTA: PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO DOLOSO. DESCLASSIFICAÇÃO. LESÕES CORPORAIS SEGUIDAS DE MORTE. PRETERDOLOSO.

Se a intenção dos agentes foi o de provocar um susto na vítima, ao acordar com o pano que cobria as suas pernas em chamas e não o de causar a sua morte, diante fazerem-se presentes uma conduta dolosa – atear fogo -, e outra culposa – a morte -, derivada da violação do dever de cuidado, resta configurado o crime preterdoloso que impõe se desclassifique a imputação de homicídio doloso para lesões corporais seguidas de morte. (in STJ. 5ª Turma. REsp n. 192.049-DF – 98/76411-9. Min. Felix Fischer. Julgamento, em 9.2.1999. Relatório, p. 11. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=199800764119&dt_publicacao=01/03/1999>. Acesso em 7.3.2022, às 10h24)

[7] STJ. 5ª Turma. REsp 192049/DF (1198/0076411-9). Min. Felix Fischer. Julgamento, em 9.2.1999. DJ 1.3.1999, p. 367. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=199800764119&dt_publicacao=01/03/1999>. Acesso em: 7.3.2022.

[8] TJDFT. 2ª Turma Criminal. RSE n. 1999.01.1.057132-5. Desembargador de Justiça Getúlio Pinheiro. Julgamento, em 7.6.2001. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/gestao-do-conhecimento/centro-de-memoria-digital/documentos/jurisprudencial/copy_of_141359.pdf>. Acesso em: 7.3.2022, às 11h.

[9] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 1229.

[10] GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1956. v.1, t. 1, p. 198.

[11] LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 58.

Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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