Breves considerações acerca da Lei nº 9.455/97 - Tortura

22/03/2022 às 10:32
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Este artigo tem por desiderato analisar a Lei de Tortura, de forma objetiva e sem intenção de esgotar a matéria, de modo a fornecer uma melhor compreensão de suas peculiaridades aos estudantes e aos operadores do Direito.

Este artigo tem por desiderato analisar a Lei de Tortura, de forma objetiva e sem intenção de esgotar a matéria, de modo a fornecer uma melhor compreensão de suas peculiaridades aos estudantes e aos operadores do Direito.

Lei nº 9.455/97 TORTURA crime equiparado a hediondo.

FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL art. , III, CF/88:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

OBS: referido dispositivo possui natureza jurídica de Mandado Constitucional de Criminalização ao legislador ordinário, em razão disso, posteriormente à CF/88 foi editada a Lei 9455/97 atendendo ao mandado para tipificar o crime de tortura.

O crime de tortura é imprescritível?

R. O Estatuto de Roma Decreto nº 4.388/2002 estabelece que os crimes contra a humanidade, sujeitos a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional, são crimes imprescritíveis, conforme dispõe o art. 29, prevendo expressamente a tortura como crime contra a humanidade em seu art. , § 1º, f, razão pela qual para o Estatuto de Roma, a tortura é considerado crime imprescritível.

A CF/88, por outro lado, não prevê a tortura como crime imprescritível, mas sim o crime de racismo, conforme se extrai da redação do art. , inciso XLII:

a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

Além do racismo, também foi elevada à condição de crime imprescritível as ações de grupos armados contra o Estado Democrático de Direito, conforme dispõe o art. 5º, inciso XLIV.

Vale ressaltar, ademais, que em 28/10/2021, o STF, no julgamento do HC 154.248, decidiu que o crime de injúria racial é espécie do gênero racismo. Portanto, é imprescritível, conforme o artigo , XLII, da Constituição

OBS. Embora seja imprescritível, a injúria racial é crime de ação pública condicionada à representação e, portanto, sujeita-se ao prazo decadencial de 06 meses, o que, de certa forma, revela-se paradoxal.

Sobre a imprescritibilidade do crime de tortura, existem 02 correntes:

1. Em razão do Princípio Internacional Pro Homine, a tortura é crime imprescritível, em observância a norma que melhor tutela o bem jurídico. Logo, deve prevalecer o Tratado de Roma, que prevê a tortura como crime imprescritível. Defendem essa posição os Professores Rogério Greco e Renato Brasileiro. Contudo, essa corrente NÃO PREVALECE.

2. A tortura é crime sujeito à prescrição, pois a CF/88 não estabeleceu sua imprescritibilidade. Vale ressaltar que há julgados nos Tribunais Superiores nesse sentido, inclusive reconhecendo a possibilidade de anistia para o crime de tortura. Essa é a posição que PREVALECE e tem como defensor o Professor Francisco Sannini.

Sujeitos ativos do crime de tortura:

São crimes comuns, de forma que tanto o agente público quanto o particular podem ser sujeitos ativos do crime de tortura.

ATENÇÃO. A Convenção Internacional de Combate à Tortura determina a criminalização da tortura praticada por agente público. A norma interna (Lei 9.455/97), contudo, pune a tortura praticada por particular, bem como pelo agente público, no último caso, inclusive, a pena é aumentada de 1/6 até um 1/3. Com o objetivo de solucionar essa divergência, o STJ entendeu que deve prevalecer a norma interna, por ser mais abrangente, em respeito ao Princípio da Maior Proteção dos Direitos Humanos ou Interpretação Pro-Homine.

Objeto jurídico: dignidade da pessoa humana e, secundariamente, a integridade mental e corporal da vítima.

Objeto Material: é a vítima da tortura.

Competência: Em regra, é da Justiça Comum Estadual.

OBS. Compete a Justiça Militar o processo e julgamento do crime de tortura praticada por policiais militares no exercício das funções.

Prova da materialidade: No caso de tortura física, delito que deixa vestígios, o exame pericial é imprescindível. Por outro lado, no caso de tortura psicológica, que não deixa vestígios visíveis, a prova da materialidade poderá ser feita por qualquer outro meio que não seja o exame pericial, como, por exemplo, testemunhal.

Nesse sentido é a jurisprudência do STJ:

Configura-se o crime de tortura quando o agente, com emprego de violência ou grave ameaça, alternativa ou cumulativamente, constrange alguém, causando-lhe sofrimento físico ou mental. A prática de tortura mediante grave ameaça não deixa vestígios, não se exigindo, para a sua constatação, a realização de exame de corpo de delito. (STJ, HC 72.084/PB, 6ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura).

Teoria do Cenário da bomba relógio (Theory ticking bomb scenario): A proibição da tortura é relativa ou absoluta?

Art. 2.2. Convenção Contra a Tortura (Decreto nº 40/91): Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergia pública como justificação para tortura.

Para a doutrina majoritária, a proibição da tortura é um direito absoluto, que não comporta relativização em nenhum cenário, pois não se pode admitir que o próprio Estado viole suas regras sob o pretexto de garantir ou assegurar direitos.

Para a doutrina minoritária, a proibição da tortura é um direito relativo e, portanto, comporta relativização em situações como o cenário da bomba relógio, de forma que o agente estaria agindo em legítima defesa de terceiros ou amparado por causa excludente da culpabilidade, pela inexigibilidade de conduta diversa.

Crimes de Tortura:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa - (Tortura Probatória, Inquisitorial ou Institucional). Quanto os sujeitos, é crime comum. Para a sua consumação, é dispensada a obtenção da informação desejada (crime formal). A Tentativa é possível.

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa (Tortura-Crime). Quanto aos sujeitos, é crime comum. É crime formal, que se consuma com o constrangimento causador do sofrimento físico ou mental (cabe tentativa).

OBS: A vítima da tortura, que neste caso é considerada instrumento do crime, não responde pelo crime eventualmente praticado, tendo em vista que agira sob coação moral irresistível, que é causa excludente da culpabilidade. Assim, o delito será imputado ao torturador, na qualidade de autor mediato.

OBS. Em respeito ao Princípio da Legalidade, não será caracterizado este delito se o agente tortura a vítima para que ela pratique ato que configure contravenção penal, sob pena de analogia in malam partem.

c) em razão de discriminação racial ou religiosa (Tortura Preconceito ou Discriminatória).

OBS: não admite outra forma de discriminação, como por exemplo, a homofobia.

Sujeitos: crime comum

Consumação: ocorre com o constrangimento causador do sofrimento físico ou mental (cabe tentativa).

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

É a chamada Tortura-Castigo ou Intimidatória (parte final do tipo penal).

Sujeito Ativo: crime próprio, pois exige relação especial entre sujeito ativo e passivo STJ, REsp 1.738.264/DF

Sujeito Passivo: pessoa sob a guarda, poder ou autoridade do agente (crime próprio).

Consumação: com o intenso sofrimento físico ou mental.

Distinção com o crime de maus tratos (art. 136, CP):

o crime de maus tratos tem caráter educativo/corretivo, enquanto o crime de tortura, não;

o crime de maus tratos é de perigo e o crime de tortura é de dano.

Tortura por Equiparação ou Tortura Custódia art. 1º, § 1º:

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

Sujeito ativo: crime próprio.

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Sujeito passivo: pessoa presa ou sujeita a medida de segurança (crime próprio).

Consumação: com o sofrimento físico ou mental.

ATENÇÃO. NÃO SE EXIGE VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA

Tortura por Omissão art. 1º, § 2º:

§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

Trata-se de crime omisso impróprio, pois pratica o crime aquele que tem a posição de garante.

Sujeito Ativo: pessoa responsável por evitar ou apurar a prática de tortura (crime próprio).

Sujeito Passivo: qualquer pessoa.

Consumação: ocorre com a omissão do garante.

Tentativa: impossível (crime omissivo).

OBS: Para a doutrina minoritária, esse dispositivo seria inconstitucional, uma vez que a CF/88, no art. , XLIII, estabelece que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. Vale ressaltar, contudo, que o STF já decidiu que o referido dispositivo é constitucional.

Tortura qualificada: Art. 1º, § 3º:

§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

OBS: A lesão corporal leve é absorvida pelo crime de tortura.

Segundo a doutrina majoritária, trata-se de crime preterdoloso ou preterintencional, em que há dolo no antecedente e culpa no consequente.

TORTURA QUALIFICADA PELA MORTE E HOMICÍDIO QUALIFICADO PELA TORTURA

A distinção entre ambas as figuras reside no dolo do agente, isto é, no homicídio, a intenção do agente é de matar, e para atingir o seu fim (resultado morte), utiliza-se de tortura como meio para a prática do crime. Na tortura qualificada pela morte, o dolo do agente é de torturar, a morte advém a título de culpa (crime preterdoloso).

Prevalece o entendimento na doutrina de que esta qualificadora não se aplica à tortura praticada por omissão.

Causas de aumento de pena art. 1º, § 4º (São analisadas pelo juiz na 3ª fase da dosimetria da pena):

Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I - se o crime é cometido por agente público;

II se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;

III - se o crime é cometido mediante sequestro. OBS. Segundo a doutrina, também se aplica ao cárcere privado.

Efeitos da Condenação Art. 1º, § 5º:

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

OBS: Esse efeito é automático e independe de motivação expressa na sentença STJ, Resp. 1.044.866/MG.

Regime Inicial Fechado Obrigatório art. 1º, § 7º:

§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º (tortura por omissão), iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

OBS. A obrigatoriedade do regime inicial fechado prevista na Lei do Crime de Tortura foi superada pela Suprema Corte, de modo que a mera natureza do crime não configura fundamentação idônea a justificar a fixação do regime mais gravoso para os condenados pela prática de crimes hediondos e equiparados. Para estabelecer o regime prisional, deve o magistrado avaliar o caso concreto, seguindo os parâmetros estabelecidos pelo artigo 33 e parágrafos do Código Penal. (STJ, RHC 76.642/RN, Rel. Min. Thereza de Assis Moura, DJe 28/10/2016)

Princípio da Justiça Universal ou Cosmopolita Extraterritorialidade incondicionada da lei penal brasileira art. 2º:

Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.

Sobre o autor
César Augusto Bueno Bezerra

Advogado afeiçoado pelas ciências jurídicas, em especial a criminal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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