Começo este desabafo com um grito de socorro: vidas negras importam!
Mas, esse grito que rasga as páginas desse jornal nem sempre foram pensadas, ouvidas, faladas. O corpo negro por mais de 300 anos sofreu um processo de desumanização. De-su-ma-ni-za-ção, repito, devagar, e separando cada sílaba, para que você, leitor(a), compreenda que as vidas em situação de escravidão não eram reconhecidas enquanto vidas humanas, seja pela ciência, pelo direito ou pelo Estado.
A memória que trago do regime escravista brasileiro não é um conto cordial de imigrantes atravessando o atlântico para vir trabalhar no novo mundo, por legitima vontade como mais tarde tivemos os italianos, japoneses, holandeses e tantos outros por exemplo. Não. Aos negros não foi concedida autonomia, liberdade, escolha. Mas, sim atributos como raça degenerada, criminoso nato, ou selvagem. Foram tirados de suas terras, das suas famílias, das suas tradições, da sua liberdade de culto religioso.
Em nenhum lugar no mundo tantas pessoas foram imigradas forçadamente, para viver em situação de escravidão. Aqui na Pindorama 4,9 milhões de africanos foram trazidos para viver em situação de escravidão. E foram genocidados das mais diferentes formas. Aqui, a necropolitica funcionou, e ainda funciona, como um importante dispositivo de manutenção da soberania. Que não mata só quando faz morrer, mas também quando não deixa viver uma vida sem precariedades como diria Judith Butler (2019). Aniquila também quando retira sonhos, mitos e tradições. Quando ceifa o direito mais humano: a liberdade.
E para sobreviver a esse aniquilamento, o negro sobre a ótica de Franz Fanon em Pele negra, máscaras brancas (2008) tivera que se adaptar a essa sociedade colonial, para ser colonial, atribuindo-se diversas novas categorias, desde mudanças linguísticas, aos relacionamentos afetivos, as experiências do negro, suas psicopatologias e por fim o reconhecimento.
O Brasil foi alicerçado na fantasia da separação e do extermínio (MBEMBE, 2017, p.16), denunciada em ritmo na voz da eterna Elza Soares: a carne mais barata do mercado é a carne negra. Tal qual recobra Florestam Fernandes (1964) no seu clássico A integração do negro à sociedade e classes, que é inegável verificar que libertaram as pessoas em situação de escravidão, mas não deram meios de subsistência a esses, que se tornaram senhores da sua própria sorte, responsáveis pela manutenção da sua família, sem, todavia, que dispusesse dos meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia (FERNANDES, 1964, p. 3). Sendo assim, torna-se possível enxergar que o negro em tempo algum foi inserido na sociedade de forma equivalente ao branco, o que trouxe como consequência distinções sociais, econômicas e políticas. Não existe democracia racial. Não aqui!
Grito, mais uma vez: vidas negras importam! Para que você, leitor(a), lembre-se que nem sempre foi assim. Nossa história é marcada e manchada de sangue e de corpos negros. De história e de sonhos negros. De estíticas estáticas no chão de esquinas que um jovem morre por ser negro. E cada dia que isso, novamente, acontece reatualizamos o regime escravista. Por isso grito uma última vez: mortes negras importam!