Teologia católica e direitos humanos

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RESUMO

A presente Monografia foi realizada no intuito de se abordar os Direitos Humanos em análise holística e multidisciplinar, com a devida ênfase teológica. Faz-se mister escrever sobre a temática, haja visto que vivemos em tempos de beligerância extremada, a qual resulta em guerras e em conflitos aviltantes à dignidade da pessoa humana.

Não é razoável, porém se faz necessário, que em pleno 2022 tenhamos de insistir na defesa de direitos iguais entre minorias étnicas e/ou entre gêneros diversos, mormente a partir do lastro histórico-ético compendiado acadêmica e culturalmente: é inquestionável a dignidade da pessoa humana. Qualquer posicionamento contrário aos Direitos Humanos não encontra lógica, nem juridicidade, quiçá fundamento ético-religioso para existir.

Ora, nessa abordagem, a Teologia Católica é peça fundamental na construção do imaginário popular sobre Direitos Humanos. Apesar de violências e de erros históricos marcantes, a Igreja reconheceu os excessos, expurgou ideias inadequadas e é referência no desenvolvimento de teses em defesa da dignidade da pessoa humana.

O Ocidente, pois, é a construção histórico-cultural entre filosofia grega, Direito romano e religião judaico-cristã. Neste trabalho, com efeito, abordá-los-ei mediante análise crítica, fático-histórica e dogmática.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Teologia Católica; Metodologia Histórico-Crítica; Dignidade da pessoa humana.

ABSTRACT

This monograph was written in order to touch Human Rights in a holistic and multidisciplinary analysis, with enough theological emphasys. It is necessary to write about the theme, since we live in extremely belligerent times, which results in wars and conflicts that demean the dignity of human person.

It is not reasonable, but necessary, that in 2022 we have got to insist in defense of equal rights among ethnical minorities and/or among several gender, especially from historical-ethical basis, academically and culturally organized: dignity of human person is unquestionable. Any opposition to Human Rights cannot find logic, nor legality, even ethic-religious background to exist.

Well, in this approach, the Catholic Theology is fundamental component to build popular imaginary about Human Rights. Despite violence and remarkable historical blunders, the Church admitted the excesses, purged inappropriate ideas and is the reference in developing of dignity of human person thesis defense.

The West, so, is the historical-cultural development between greek philosophy, roman law and the judeo-christian religion. In this work, in fact, I discuss through a critical, phatic-historical and dogmatic examination

Keywords: Human Rights; Catholic Theology; Historical-critical methodology; Dignity of Human Person.

RESUMEN

Esta monografía se realizó con el fin de abordar los Derechos Humanos en un análisis holístico y multidisciplinario, con el debido énfasis teológico. Es necesario escribir sobre el tema, dado que vivimos tiempos de extrema beligerancia, lo que se traduce en guerras y conflictos que desvalorizan la dignidad de la persona humana.

No es razonable, pero sí necesario, que en pleno 2022 tengamos que insistir en la defensa de la igualdad de derechos entre minorías étnicas y/o entre diferentes géneros, especialmente desde el lastre histórico-ético compuesto académica y culturalmente: la dignidad de la persona es incuestionablemente humana. Toda posición contraria a los Derechos Humanos no encuentra lógica, ni legalidad, tal vez fundamento ético-religioso para existir.

Ahora bien, en este enfoque, la Teología Católica es una pieza fundamental en la construcción del imaginario popular sobre los Derechos Humanos. A pesar de la violencia y de importantes errores históricos, la Iglesia reconoció los excesos, depuró ideas inapropiadas y es referente en el desarrollo de tesis en defensa de la dignidad de la persona humana.

Occidente, por tanto, es la construcción histórico-cultural entre la filosofía griega, el derecho romano y la religión judeocristiana. En este trabajo, de hecho, los abordaré a través de un análisis crítico, fáctico-histórico y dogmático.

Palabras llave: Derechos Humanos; Teología Católica; Metodología Histórico-Crítica; Dignidad de la persona humana.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................

1 ANÁLISE CONCEITUAL DO DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA..

  1.  O que é Direito?.............

1.2 O que é dignidade?..............................

1.3 O que são Pessoa e Ser Humano?....................

1.4 Dignidade da Pessoa Humana na perspectiva teológica católica...

2 TEOLOGIA DA IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA...

2.1 O que significa Teologia?.......

2.2 O que é Igreja?................

2.3 O que significa Católico?.......

3 MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO E DIREITOS HUMANOS..

4 CONCLUSÃO........

INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana é direito universal a todos seres humanos. É incabível, em tempos hodiernos, questionar a humanidade do(a) próximo(a), quiçá vilipendiar a existência alheia, seja por razões políticas, religiosas, étnicas e/ou sociais.

Neste trabalho, a Teologia Católica e os Direitos Humanos se cruzam: um suporta a existência do outro, ambos direcionam o ser humano para o Amor, para o respeito, para a sadia convivência intersubjetiva e para o humanismo, caso contrário, estaremos diante à tirania e ao obscurantismo, justificados por falsa argumentação teológico-científica.

Todavia, é sabido que grupos reacionários, tradicionalistas e conservadores em geral se organizaram e tentam, cotidianamente, destruir os avanços sociais e humanos, sob o invólucro de teorias da conspiração e negacionismo. Eis a resposta acadêmica contra essas facções: conhecimento, estudo e análise científica da Verdade.

Portanto, o presente artigo é baseado em extensa análise histórico-crítica e descritiva, respeitado o ceticismo do método científico das humanidades, para que não seja apenas mais um panfleto socioideológico, quiçá uma pregação confessional travestida de trabalho laico-acadêmico.

A produção intelectual na Universidade é e deve se manter estritamente científica, sem contornos devocionais, sem as lentes da crença. A Verdade deve ser  buscada com paixão e respeito, tanto ao método, quanto ao Ser Humano.

1. ANÁLISE CONCEITUAL DO DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

1.1 O que é o Direito?

Para a fiel conceituação de Direitos Humanos, faz-se necessário discorrer sobre o sentido de “Direito”.

Ora, para tentar atingir essa pretensiosa proposta, faz-se necessário apoio em doutrina de estatura internacional. Nessa toada, com efeito, o professor Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, leciona que, in litteris:

Quanto ao Direito, poderemos conceituá-lo — à luz do normativismo jurídico concreto de Miguel Reale — como um conjunto de normas que, em determinada sociedade e num dado momento da sua história, mediante a interferência decisória do Poder, ordena os fatos sociais em conformidade com certos valores, entendendo-se tais normas não como simples proposições lógicas, abstratas ou formais, mas como substratos que dialeticamente integram e superam, que sintetizam, portanto, as tensões entre fatos e valores, os quais, nelas e por elas, tornam-se fatos e valores especificamente jurídicos[1]

Não obstante, Miguel Reale, um dos maiores jusfilósofos pátrios, entende que o Direito seria uma combinação de: vetor axiológico (valor), como parcela ético-moral; vetor normativo (norma), como a redação posta na lei, positivada; vetor fático seria a análise ontológica, do fato em si, in litteris:

A Teoria Tridimensional do Direito foi uma intuição da juventude. Intrigou-me o fato de grandes filósofos do direito italiano coincidirem na divisão da Filosofia do Direito, para fins pedagógicos, em três partes: uma destinada à teoria dos fenômenos jurídicos; outra cuidando dos interesses e valores que atuam na experiência jurídica e, finalmente, uma terceira relativa à norma jurídica[2]

Outrossim, o famigerado pensador austríaco, Hans Kelsen, em sua vasta obra conceitua Direito numa perspectiva pretensamente pura. Desenvolve, pois, uma proposta ousada e, infelizmente, com consequências nefastas pelo século XX, em que há o rompimento das bases jusfilosóficas político-morais perante o conceito de Direito. Simplificando sua proposta, o Direito seria uma vertente dissociada da justiça, fato que foi reiteradamente usado como fundamento jurídico do nazifascismo.

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação[3]

Importante ressaltar que o tema não é exaurido por pensadores jurídicos. Ora, desde a antiguidade, o conceito de “justiça” é deliberado e, por conseguinte, o significado de Direito foi vastamente explorado.

Com efeito, o contemporâneo professor brasileiro Rafael Diehl leciona que, em toda história da humanidade, houve três grandes vertentes filosóficas sobre o Direito.

Assim, há três tipos de Direito:

Direito positivo - aquele que resulta da legislação humana, isto é, as leis e normas estabelecidas pelos homens.

Direito natural - aquele que provém da natureza no sentido filosófico, que expusemos anteriormente.

Direito divino - aquele que provém da formulação ou intervenção direta da divindade[4]

Quanto à linha jusnaturalista, faz-se necessário elencar as lições de Santo Tomás de Aquino em sua valorosa conceituação de Direito Positivo, de Direito Natural e de Direito Divino.

SOLUÇÃO – Como já dissemos o direito ou o justo implica uma obra adequada a outra por algum modo de igualdade. Ora, de dois modos pode uma coisa ser adequada a um homem. - De um modo, pela natureza mesma da coisa; por exemplo, quando alguém dá tanto para receber tanto. E este se chama o direito natural. - De outro modo, uma coisa é adequada ou proporcionada a outra, em virtude de uma convenção ou de comum acordo; por exemplo, quando alguém se julga satisfeito se receber tanto. O que pode se dar de dois modos. De um modo, por uma convenção particular, como quando pessoas privadas firmam entre si um pacto. De outro modo, por convenção pública; por exemplo, quando todo o povo consente que uma coisa seja tida como que adequada e proporcionada a outra; ou quando o príncipe, que governa o povo e o representa, assim o ordena. E a este se chama direito positivo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO – O natural a um ente de natureza imutável há de ser necessariamente tal, sempre e em toda parte. Ora, a natureza do homem é mutável. Por onde, o natural ao homem pode, às vezes, falhar. Assim, a igualdade natural exige que ao depositante lhe seja restituído o depósito. O que se deveria observar sempre se a natureza humana sempre fosse reta. Mas, como às vezes se dá que a vontade do homem é má, há certos casos em que um depósito não se deve restituir, afim de que um homem de vontade pervertida não venha a usar mal dele; por exemplo, se um furioso ou um inimigo do estado exigisse as armas que depositou.

RESPOSTA À SEGUNDA – A vontade humana, em virtude de um consentimento comum, pode determinar o justo, em coisas que por si mesmas em nada repugnam à justiça natural. E a tal se aplica o direito positivo. Por isso, o Filósofo diz que o justo legal é o que, ao princípio, pode ser indiferentemente de um modo ou outro; mas, uma vez estabelecido, deve permanecer no que é. Mas, o que em si mesmo repugna ao direito natural não pode a vontade humana torná-lo justo. Por exemplo, se disser que é lícito furtar ou adulterar. Por isso, diz a Escritura. Ai dos que estabelecem leis iníquas.

RESPOSTA À TERCEIRA – Chama-se direito divino o que foi divinamente promulgado. E ele abrange, em parte, o justo natural, mas, cuja justiça escapa aos homens; e, em parte, o justo por instituição divina. Por onde, também ao direito divino pode aplicar-se, como ao direito humano, a divisão referida. Assim, a lei divina ordena certas coisas, por serem boas e proíbe certas por serem más. Mas, outras são boas porque são ordenadas e más porque proibidas[5]

Ora, após toda essa profícua análise conceitual, faz-se mister delimitar como o vocábulo Direito será utilizado neste trabalho. Tratar-se-á de “ordenações ou mandamentos, sejam descritivos, sejam deontológicos”, podendo ser utilizado quanto ao conjunto ou quanto ao individual.

1.2 O que é dignidade?

Dignidade é a palavra-chave da contemporaneidade, visto que fundamenta, orienta e é fim da moralidade, de ordenamentos jurídicos nacionais, de relações sociais, de trabalhos acadêmicos, de estudos pormenorizados. Ora, mas como conceituá-la? A polissemia de vocábulos basilares é algo que imprecisa e, por conseguinte, complexifica em demasia as análises e as soluções quanto à realidade.

Diante a esse cenário, pela história humana, grandes pensadores ousaram analisar o tema, e entre eles, impossível olvidar Platão. Apesar de não abordar direta e sistematicamente o tema, ao se analisar o conjunto de seus pensamentos, chega-se à conclusão que a dignidade humana seria uma característica da justiça humana.

É evidente que Platão, em suas meditações sobre o tema, traz consigo a característica histórica e cultural de uma época em que mulheres, crianças e escravos não gozavam de igualdade, quiçá formal, em relação aos homens livres e gregos.

Sócrates - quem é bom e sábio não deve, portanto, pretender superar seu semelhante, mas quem não se assemelha a ele e é seu contrário.

Trasímaco - Parece que sim.

Sócrates - Mas aquele que é mau e ignorante tentará levar a melhor sobre seu semelhante e também sobre seu contrário.

Trasímaco - Parece que é assim mesmo.

Sócrates - Mas, Trasímaco, segundo nossa opinião, o homem injusto não se prevalece acaso sobre quem é diferente dele e sobre quem se assemelha a ele? Não era isto o que você dizia?

Trasímaco - Sim.

Sócrates - Mas, o homem justo não tentará se prevalecer sobre quem se assemelha a ele, mas sim sobre quem é diferente dele?

Trasímaco - Exato.

Sócrates - Então, o justo é semelhante ao homem sábio e bom e o injusto ao mau e ao ignorante;.

Trasímaco - É possível.

Sócrates - Mas nós reconhecemos que cada um dos dois é semelhante a quem possui suas próprias características.

Trasímaco - É verdade.

Sócrates - Aqui está, portanto, a demonstração que o justo é bom e sábio, enquanto o injusto é ignorante e mau[6]

Ainda quanto à antiguidade, para Aristóteles, em consonância com seu professor Platão, a dignidade da pessoa, por certo, está intrinsecamente correlacionada à pólis (πόλις) e à vida comunitária.

Em sua imortal obra “Política”, o fundador do Liceu discorre sobre a natureza, ao seu ver, distinta entre homens, mulheres, crianças e escravos. É um relato interessantíssimo, que demonstra um incipiente aprofundamento intelectual sobre um tema tão sensível e caro aos seres humanos.

A compreensão de natureza da individualidade seria intimamente ligada à utilidade social de sua existência. Essa abordagem, apesar de insuficiente e de inadequada, inaugura a sistematicidade do tema e possibilita o desenvolvimento conceitual posterior, no qual resulta extensão de igual dignidade a todos e a todas, inclusive a animais e à natureza.

III Discutamos a economia doméstica, uma vez que a Cidade é composta de famílias.

IV Em primeiro lugar, falemos de escravidão O escravo é uma parte da propriedade, a qual é animada e mais útil para a ação do que para a produção.

V A escravatura é natural; em todos os âmbitos do universo natural, encontramos uma relação entre o governante e o governado. Há seres humanos que, sem a posse da razão, compreendem isso. Esses são escravos naturais.

VI Mas encontramos pessoas submetidas à escravidão que não são escravos naturais. Por isso, a escravidão é uma instituição condenada por alguns; mas estes estão equivocados. O escravo natural beneficia-se da sujeição a um senhor.

VII A arte de governar escravos é diferente da arte de governar homens livres, mas não requer uma descrição detalhada; qualquer um que seja um senhor natural pode adquirir esse conhecimento por si mesmo.

(...)

Ainda que as partes da alma estejam presentes em todos eles, elas estão presentes em diferentes graus. Pois o escravo é inteiramente desprovido da faculdade de deliberar; a mulher a possui, mas débil e ineficaz; e a criança também a possui, mas nela essa faculdade ainda é imperfeita, não está completamente desenvolvida. O mesmo se aplica necessariamente às virtudes morais: todos devem possuí-las, mas não do mesmo modo e sim somente no grau que é requerido para cumprir sua função. Eis por que quem comanda deve possuir a virtude na sua perfeição; sua função é como a do arquiteto, qual seja, a da própria razão; quanto aos outros, requer-se apenas a medida de virtude que é própria à sua função. Claramente se vê, portanto, que todos têm virtudes morais; mas a temperança, a coragem e a justiça não são, como afirmava Sócrates, as mesmas em um homem e em uma mulher. A coragem de um consiste em comandar; a outra, em obedecer[7]

A partir da ótica teológica cristã, Jesus Cristo e, por conseguinte, Seus apóstolos fizeram defesas apaixonantes quanto à condição qualitativa isonômica e equitativa intrínseca a todo ser humano, isto é, surgiu a ideia de que todos são convidados a integrar o povo de Deus, a integrar o Reino dos Céus, com igual dignidade.

Indispensável indicar que o estoicismo, corrente filosófica grega durante o período helênico, era o fundamento intelectual preponderante no Império Romano durante a confecção do Novo Testamento.[8] Ao se compulsar a literatura filosófica a respeito do tema, torna-se possível caracterizar de forma histórico-substancial a referida escola.

A escola estoica foi fundada em Atenas em 300 a.C. por Zenão de Cítio (344-262 a.C.), um pensador de origem fenícia que havia se fixado em Atenas e provavelmente frequentado A Academia. O termo “estoicismo” é derivado da stoa poikilé, ou “pórtico pintado”, local em Atenas onde os membros da escola se reuniam. A doutrina estoica antiga foi desenvolvida e elaborada pelos discípulos e sucessores de Zenão, Cleantes (330-232 a.C.) e Crisipo (280-206 a.C.).

(...)

A partir do séc. I o núcleo do estoicismo desloca-se para Roma, dando origem ao assim chamado “novo estoicismo”, ou “estoicismo imperial”, cujos principais representantes foram Sêneca (4 .C.- 65 d.C.), o mais importante filósofo desse período, Epitecto (60-138) e Marco Aurélio (121-180), imperador romano após 161. O estoicismo latino se caracteriza pela ênfase na filosofia prática e em uma concepção humanística, valorizando a indiferença (apatheia) e o autocontrole.

Após esse período o estoicismo entra em decadência, não surgindo mais representantes significativos. Em virtude de sua tendência eclética, o estoicismo passa a se confundir em parte com o platonismo, embora a ética estoica tenha tido grande influência no desenvolvimento do cristianismo, dado seu caráter determinista e sua valorização do autocontrole, da submissão, e da austeridade[9]

No âmbito filosófico moderno, é impossível se olvidar de Immanuel Kant. Este pensador simplesmente tornou possível o entendimento universalizado-racional do conceito de dignidade, proposta que ainda é utilizada, tanto no ordenamento jurídico interno brasileiro, quanto pelo Direito Internacional.

No reino das finalidades tudo tem um preço ou uma dignidade. No lugar daquilo que tem um preço, pode ser colocada outra coisa, equivalente; por outro lado, possui uma dignidade aquilo que está acima de qualquer preço, portanto, não possui nenhum equivalente.

O que se refere às necessidades e inclinações humanas em geral, têm um preço de mercado; aquilo que não pressupõe uma necessidade, mas está de acordo com um determinado gosto, isto é, com o prazer de uma simples diversão gratuita que satisfaz nossa sensibilidade, possui um preço afetivo; mas o que leva em conta a condição pela qual algo possa ser uma finalidade em si, não possui um valor apenas relativo, isto é, um preço, mas um valor interno, ou seja, uma dignidade.

Então, a moralidade é a única condição pela qual um ser racional pode ser finalidade em si mesmo, porque só por meio dela é possível alguém ser um membro legislador do reino das finalidades[10]

Ressalte-se que a Igreja Católica Apostólica Romana, fiel depositária da Tradição, do Magistério e das Sagradas Escrituras, perpetuou a fé e o cristianismo pela história do Ocidente, fato que culmina em análises sólidas sobre dignidade, tanto acadêmica, quanto teológica na atualidade.

Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus Gálatas 3, 27-28[11]

Nessa toada, o Doutor da Igreja Santo Agostinho, bispo de Hipona, interpreta a criação do ser humano de acordo com a Revelação Cristã, isto é, como imagem e semelhança a Deus, elevação da condição de criatura caída errante à humanidade redimida e divinizada.

O homem quando era levantado em dignidade não compreendeu; comparou-se aos animais carentes de entendimento e tornou-se a eles semelhante, com a diferença de que o exercício e movimento dos seus membros e no instinto das apetências e das defesas, vemos que as crianças são mais débeis que os mais tenros filhotes dos animais - tudo se passando como se a energia humana se elevasse tanto mais acima dos outros viventes quanto mais tempo conservou retido e contraído o seu ímpeto como a flecha no arco bem retesado; o primeiro homem não foi, portanto, precipitado ou lançado, por sua presunção culpável e por justa condenação, para estes começos infantis. Mas a natureza humana ficou nele de tal forma viciada e mudada que sofre nos seus membros a desobediência e a revolta da concupiscência e se sente necessariamente ligada à morte - e assim, aquilo em que se tornou pelo crime e pelo castigo, é isso mesmo que gera, isto é: seres sujeitos ao pecado e à morte. As crianças, se do laço do pecado são libertadas pela graça de Cristo mediador, não podem sofrer senão essa morte que separa a alma do corpo; mas, libertados da dívida do pecado, não passam pela segunda morte que é castigo sem fim[12]

Santo Tomás de Aquino, durante a Escolástica, foi o primeiro a sistematizar um conceito de dignidade no meio teológico e filosófico, em moldes que se assemelham aos tempos hodiernos.     

a dignidade é algo absoluto e pertence à essência (...) “o corpo humano tem a máxima dignidade, uma vez que a forma que o aperfeiçoa, a alma racional, é a mais digna[13]

Surge, pois, uma sistematicidade e uma tradição de análise filosófico-teológica no cristianismo, a qual culminará na integral análise de fé racional e de perquirição da Verdade, por meio da Teologia e da Ciência - Fides et Ratio, como diria São João Paulo II. Essa combinação será determinante para o desenvolvimento conceitual de dignidade da pessoa humana.

A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).

(...)

2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é « o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14, 6). De entre os vários serviços que ela deve oferecer à humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente peculiar: é a diaconia da verdade. Por um lado, esta missão torna a comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade realiza para alcançar a verdade, e, por outro, obriga-a a empenhar-se no anúncio das certezas adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcançada é apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se há-de manifestar na última revelação de Deus: « Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita, então conhecerei exactamente » (1 Cor 13, 12).

3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, « amor à sabedoria ». Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.

A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento das culturas do Ocidente não deve fazer-nos esquecer a influência que a mesma exerceu também nos modos de conceber a existência presentes no Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural, que tende, como autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente filosóficas. Prova da verdade de tudo isto é a existência duma forma basilar de conhecimento filosófico, que perdura até aos nossos dias e que se pode constatar nos próprios postulados em que as várias legislações nacionais e internacionais se inspiram para regular a vida social[14]

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Não é cabível se esquecer do desenvolvimento jurídico-conceitual de dignidade pela história mundial. Ora, após as grandes guerras travadas no século XX, a comunidade internacional chegou à conclusão, a duras penas, de que a dignidade da pessoa humana deveria ser repensada e estendida, para além da nacionalidade.

Eis que num ato de extrema coragem e sensatez, Eleanor Roosevelt liderou a redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento ímpar em toda a história humana, por equiparar expressamente todos os seres humanos; por tornar adiáforas eventuais características sociobiológicas, quais sejam, etnia, gênero, sexo, profissão, nacionalidade, entre outros.

Artigo 1

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2

1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 3

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 5

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo 6

Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Artigo 7

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 9

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele[15]

Nesse sentido, em cada continente, houve o desenvolvimento de Documentos Internacionais garantidores dos Direitos Humanos, em que se positiva a saudável compreensão contemporânea filosófica de humanidade, num sentido lato, sem restrições por diferenças individuais. A Convenção Americana de Direitos Humanos, no contexto sulamericano, ilustra de forma magistral essa tendência internacional.

Artigo 1.  Obrigação de respeitar os direitos

  1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

  1. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Artigo 2.  Dever de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades[16]

Noutro giro, entre a doutrina jusfilosófica contemporânea, o professor Daniel Sarmento discorre, em sua extensa obra, sobre Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana, no sentido de elaborar balizas críveis para sua implementação, não apenas retórica, mas de fato.

Portanto, como a igualdade já é integralmente contemplada por outro princípio constitucional expressamente positivado – o princípio da igualdade, que ombreia, aliás, com a própria dignidade em termos de importância e estatura moral –, não me parece metodologicamente adequado apresentá-la como apenas mais um elemento básico da dignidade humana. O mesmo não se dá, como visto acima, com os demais componentes. Assim, pode-se dizer que o conteúdo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana na ordem jurídica brasileira compreende: a) o valor intrínseco da pessoa; b) a autonomia; c) o mínimo existencial; e d) o reconhecimento

Tais componentes não são isolados uns dos outros. Eles se imbricam, e as suas fronteiras não são nítidas, mas nebulosas. Em geral, a relação que mantêm entre si é de complementação e sinergia, pois todos convergem para a proteção integral da pessoa, concebida nos termos concretos e relacionais acima esboçados. Mas pode haver também tensões, que deverão ser arbitradas[17]

O Catecismo da Igreja Católica, assertivamente, define dignidade da pessoa humana, de forma sóbria e adequada, com a devida exaltação da qualidade transcendental do ser humano, in litteris:

1911 As dependências humanas se intensificam. Estendem-se aos poucos à terra inteira. A unidade da família humana, reunindo seres que gozam de igual dignidade natural, implica um bem comum universal. Isto exige uma organização da comunidade das nações capaz de “atender às diversas necessidades dos homens, tanto no campo da vida social (alimentação, saúde, educação [...] quanto em determinadas situações específicas que surgem aqui e ali, como [...] a necessidade de socorrer os refugiados em suas angústias ou de ajudar os migrantes e suas famílias”.

(...)

1926 A dignidade da pessoa humana implica a procura do bem comum. Cada pessoa deve se preocupar em suscitar e conservar as instituições que aprimoram as condições da vida humana.

(...)

1929 Só se pode conseguir a justiça social no respeito à dignidade transcendente do homem. A pessoa representa o fim último da sociedade, a qual lhe está ordenada.

(...)

Existem também desigualdades injustas que atingem milhões de homens e mulheres. Elas estão em evidente contradição com o Evangelho…[18]

Após a análise conceitual de dignidade, passemos à próxima perquirição

1.3 O que são Pessoa e Ser Humano?

Trata-se de discussão milenar a definição de personalidade (pessoa) e de ser humano.

A pessoa humana é o sujeito de direitos humanos. Logo, é importante definirmos com clareza o conceito de pessoa humana. Primeiramente, deve estar claro que o conceito de pessoa é ligeiramente distinto do conceito de indivíduo. Em termos filosóficos, indivíduo é “aquilo que não pode ser dividido” (Boécio, citado por Abbagnano, 2007, p.555). Logo, o conceito de indivíduo é mais interno, ligado à indivisibilidade de algo ou alguém. Entendemos que um homem é indivíduo, por exemplo, quando admitimos que, embora ele possa ser fisicamente desmembrado, não se divide em vários seres, mas continua sendo um único ser

Por outro lado, pessoa é um termo relacional, pois seu entendimento considera a relação de alguém com o mundo e outros seres que o rodeiam. De fato, o termo grego prosopon e o latino persona eram entendidos inicialmente pelos gregos e romanos como “a máscara de uma personagem, usada por um ator de teatro”, que depois identificaram o termo com o papel desempenhado pelo ator na peça. Contudo, na filosofia grega pré-socrática e socrática, o termo pessoa não foi muito discutido (Leite 2016)

Durante o período helenístico (entre os séculos IV a.C.-II a.C.), os filósofos estóicos estabeleceram uma diferenciação entre os termos prosopon e hypostasis, para designar respectivamente a personalidade e a pessoa. Enquanto prosopon definia as características visíveis do homem e seu comportamento externo em sociedade, hypostasis significa a dimensão mais interior, subjetiva e singular de cada homem, mas também a substância que o caracterizaria como membro do gênero humano. Assim sendo, os estóicos sustentavam uma igualdade entre os homens, na medida em que todos eram considerados pessoas.

Para os juristas romanos, havia na sociedade três elementos a serem analisados pelo direito: personae (pessoas), res (coisas) e actiones (ações). Entretanto, nas leis do período ainda permanecia forte s noção de pessoa como papel ou função social, haja vista que os direitos eram conformes à posição social de indivíduo enquanto cidadão (politai, em grego, ou ciues, em latim) ou detentor de algum cargo ou ofício político, jurídico ou religioso (Leite 2016)[19]

O Catecismo da Igreja Católica, no parágrafo 362, define a pessoa humana, com uma abordagem emocionante, integral e inigualável.

A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual. O relato bíblico expressa esta realidade com uma linguagem simbólica, ao afirmar que o “Senhor Deus formou o ser homem com o pó do solo, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e ele tornou-se um ser vivente” (Gn 2,7). Portanto, o homem, em sua totalidade, é querido por Deus.

Muitas vezes, na Sagrada Escritura, o termo alma designa a vida humana ou a pessoa humana inteira.Entretanto, designa também o que há de mais íntimo no homem e o que há nele de maior valor, aquilo que mais particularmente o faz ser imagem de Deus: “alma” significa o princípio espiritual no homem.

O corpo do homem participa da dignidade da “imagem de Deus”: ele é corpo humano precisamente porque é animado pela alma espiritual. É pessoa humana inteira que está destinada a tornar-se, no Corpo de Cristo, o Templo do Espírito[20]

Outrossim, em outras áreas de conhecimento, há belos exemplos de conceituação de ser humano, desde as ciências biológicas, até as ciências humanas. Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina preceitua o seguinte.

Ser humano. Conceito de elemento, um espécime da espécie Homo sapiens. Expressão que pode abranger três noções que costumam ser confundidas, apesar de corresponderem a coisas diferentes: a noção de indivíduo humano e a idéia de pessoa, que inclui a personalidade e o sentido de sujeito (ou Homem, assim com maiúscula, mesmo que se trate de uma fêmea da espécie).

Pessoa e pessoalidade. O conceito de pessoa, ao menos neste sentido psicológico e antropológico com o qual está sendo aqui utilizado, deve ser tido por mais amplo e deve conter o de indivíduo. Isto é, toda pessoa é um indivíduo humano, mas nem todo indivíduo humano é uma pessoa. O indivíduo humano anencefálico, por exemplo, não é pessoa, sequer potencial. A vida do indivíduo começa antes da existência da pessoa, continua nela e finda com ela. Mesmo originada no indivíduo tal como o indivíduo se origina do óvulo e do espermatozóide de seus ancestrais mais imediatos, a emergência da pessoa só se dá com o início da formação do sistema nervoso, a característica que marca o aparecimento da existência pessoal, que só se completa com a configuração total do cérebro humano. Por isso, independente de quaisquer preconceitos religiosos, com base exclusivamente em critérios científicos, pode-se considerar um feto descerebrado como uma não-pessoa, a despeito de reconhecer sua individualidade humana. A noção de pessoalidade inclui a qualidade denominada personalidade e o atributo chamado dignidade. Toda pessoa, por definição, é dotada de pessoalidade e de dignidade. Os fetos descerebrados não têm, sequer, a mais tênue possibilidade de virem a ser pessoas. Não são pessoas, sequer potencialmente. Por isto, podem ser categorizadas como não pessoas. Da mesma maneira que se consideraria uma gestante que gestasse um membro. Um membro superior, o braço direito, Seria tecido humano, sem qualquer sobra de dúvida e estaria vivo, quanto fosse mantido nesta condição pelo sangue materno. Mas esse ente vivo (ou ser vivo, se quiserem forçar o significado desta expressão) jamais seria ou será uma pessoa. Isto pode ser garantido sem qualquer dúvida. Em todas as espécies de seres vivos, a vida de um espécime é sempre continuação da vida de seus progenitores, qualquer que tenha sido o mecanismo de sua reprodução. Essa propriedade vital indefinida se perpetua de geração em geração, mesmo quando as espécies se transformam no processo evolutivo. Situá-la em qualquer ponto dessa trajetória do início da vida do primeiro antepassado remotíssimo é um exercício de imaginação. Persona e Personalidade. O termo personalidade não tem conceituação aceita por todos os estudiosos da matéria. Principalmente quando abriga sentido mais antropológico e político que psicológico (onde os conflitos já não são pequenos nem poucos). E por isto, muito sujeito à contaminação ideológica e às influências da visão de mundo de quem a emprega. Apesar das diferenças de opinião, é possível considerar a personalidade como a síntese dos traços psicológicos caracteristicamente humanos e das características estáveis da forma de uma pessoa se relacionar com as demais, com a sociedade e consigo mesma. No plano individual, a hominização se completa com o surgimento da personalidade. Mesmo potencial. A exigência de traços psicológicos estruturados e conduta social adaptativa (mesmo em potência real) indica um ente humano que se inicia com a formação do córtex do encéfalo, mas que aponta para a possibilidade de ter sua estrutura nervosa superior desenvolvida. O que só vem a se concretizar com a maturação biológica do encéfalo e com a maturidade psicossocial da pessoa. O aparecimento da personalidade se dá em um longo processo, cujo início é a mielinização do sistema nervoso e que só se completa quando duas metas são atingidas: uma biológica, a maturação (termo da mielinização), e outra psicossocial, a maturidade (capacidade de exercer autonomia na sociedade em que vive). A personalidade engloba o caráter, o temperamento e a constituição pessoa. Por isto se refere a tudo o que é tipicamente humano (ainda que desenvolvida por aprendizagem ao longo da trajetória evolutiva a partir de características biológicas herdadas dos antepassados)[21]

Superada a análise conceitual de pessoa e de ser humano, passemos ao seguinte tema.

1.4 Dignidade da Pessoa Humana na perspectiva teológica católica

A Igreja Católica Apostólica Romana compendiou seus ensinamentos no documento chamado de Catecismo Romano, encontrado no sítio eletrônico do Vaticano e/ou impresso no mercado literário internacional.

Ora, ao se perscrutar a fonte supra referida, encontram-se os fundamentos dos Direitos Humanos na perspectiva tradicional católica apostólica romana. Em princípio, a Igreja Católica ensina que tudo provém do Amor de Deus pela humanidade, haja visto que esta deveria ser entendida como imagem e semelhança de Deus.

222 Crer em Deus, o Único, e amá-Lo com todo o próprio ser têm enormes consequências para toda nossa vida.

223 Significa conhecer a grandeza e a majestade de Deus. “Deus é grande, e supera nosso conhecimento” (Jo 36, 26), por isso Deus deve ser o “primeiro a ser servido”.

224 Significa viver em ação de graças. Se Deus é o Único, tudo o que somos e tudo o que possuímos vêm dele: “Que tens, que não tenhas recebido?” (1Cor 4,7). “Que retribuirei ao Senhor por todo o bem que me deu?” (Sl 116, 12).

225 Significa conhecer a unidade e a verdadeira dignidade de todos os homens. Todos eles são feitos “à sua imagem, à imagem de Deus (Gn 1, 27).

(...)

357 Por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir, de se doar livremente e de entrar em comunhão com outras pessoas. Ele é chamado, por graça, a uma aliança com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar.

358 Deus criou tudo para o homem, mas o homem foi criado para servir e amar a Deus e oferecer-lhe toda a criação[22]

A decorrência lógica da premissa indicada acima leva à conclusão de que todo o respeito à pessoa humana, sob perspectiva católica, encontra balizas substanciais em Deus, que é Criador e fonte de toda dignidade da Criação, mormente de sua obra-prima, de sua criatura feita em imagem e em semelhança a Si mesmo: o ser humano.

1700. A dignidade da pessoa humana radica na sua criação à imagem e semelhança de Deus (Artigo 1) e realiza-se na sua vocação à bem-aventurança divina (Artigo 2). Compete ao ser humano chegar livremente a esta realização (Artigo 3). Pelos seus actos deliberados (Artigo 4), a pessoa humana conforma-se, ou não, com o bem prometido por Deus e atestado pela consciência moral (Artigo 5). Os seres humanos edificam-se a si mesmos e crescem a partir do interior: fazem de toda a sua vida sensível e espiritual objecto do próprio crescimento (Artigo 6). Com a ajuda da graça, crescem na virtude (Artigo 7), evitam o pecado e, se o cometeram, entregam-se como o filho pródigo (1) à misericórdia do Pai dos céus (Artigo 8). Atingem, assim, a perfeição da caridade.

1701. «Cristo, [...] na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, manifesta plenamente o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (2). Foi em Cristo, «imagem do Deus invisível» (Cl 1, 15) (3), que o homem foi criado «à imagem e semelhança» do Criador. Assim como foi em Cristo, redentor e salvador, que a imagem divina, deformada no homem pelo primeiro pecado, foi restaurada na sua beleza original e enobrecida pela graça de Deus

1716. As bem-aventuranças estão no coração da pregação de Jesus. O seu anúncio retorna as promessas feitas ao povo eleito, desde Abraão. A pregação de Jesus completa-as, ordenando-as, não já somente à felicidade resultante da posse duma tema, mas ao Reino dos céus[23]

Outrossim, uma das características que tornam o ser humano ímpar na Criação é a capacidade racional de se relacionar com a realidade. Ora, a racionalidade é, na abordagem católica, fator determinante concedido por Deus para distinguir a humanidade do restante da Criação.

1730. Deus criou o homem racional, conferindo-lhe a dignidade de pessoa dotada de iniciativa e do domínio dos seus próprios actos. «Deus quis "deixar o homem entregue à sua própria decisão" (Sir 15, 14), de tal modo que procure por si mesmo o seu Criador e, aderindo livremente a Ele, chegue à total e beatífica perfeição»

1749. A liberdade faz do homem um sujeito moral. Quando age de maneira deliberada, o homem é, por assim dizer, o pai dos seus actos. Os actos humanos, quer dizer, livremente escolhidos em consequência dum juízo de consciência, são moralmente qualificáveis. São bons ou maus.

1762. A pessoa humana ordena-se à bem-aventurança através dos seus actos deliberados: as paixões ou sentimentos que experimenta podem dispô-la nesse sentido e contribuir para isso.

1776 «No mais profundo da consciência, o homem descobre uma lei que não se deu a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz ressoa, quando necessário, aos ouvidos do seu coração, chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal [...]. De facto, o homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus [...]. A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa na intimidade do seu ser» (49)[24]

A dignidade da pessoa humana e a vida virtuosa se fundem na abordagem católica, isto é, o cristão é exortado a gozar de uma existência virtuosa, aproximada à Revelação de Deus. Isso garante, pois, o respeito à dignidade alheia e o respeito à vocação original de cada pessoa nos planos divinos do Reino.

1803. «Tudo o que é verdadeiro, nobre e justo, tudo o que é puro, amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor, isto deveis ter no pensamento» (Fl 4, 8). A virtude é uma disposição habitual e firme para praticar o bem. Permite à pessoa não somente praticar actos bons, mas dar o melhor de si mesma. A pessoa virtuosa tende para o bem com todas as suas forças sensíveis e espirituais; procura o bem e opta por ele em actos concretos.

«O fim duma vida virtuosa consiste em tornar-se semelhante a Deus»

1846. O Evangelho é a revelação, em Jesus Cristo, da misericórdia de Deus para com os pecadores (86). O anjo assim o disse a José: «Pôr-Lhe-ás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados» (Mt 1, 21), o mesmo se diga da Eucaristia, sacramento da Redenção: «Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que vai ser derramado por todos para a remissão dos pecados» (Mt 26, 28).

1934. Criados à imagem do Deus único, dotados duma idêntica alma racional, todos os homens têm a mesma natureza e a mesma origem. Resgatados pelo sacrifício de Cristo, todos são chamados a participar da mesma bem-aventurança divina. Todos gozam, portanto, de igual dignidade[25]

Portanto, a dignidade da pessoa humana sob perspectiva católica se inicia na ótica de Deus, isto é, no ato divino de revelar-se perante às criaturas, entre elas, ao Ser Humano. Este, por conseguinte, é entendido como obra-prima do Criador, dotado de maior dignidade e, consequentemente, atribuída maior responsabilidade na dinâmica cosmológica e na economia da salvação.

2. TEOLOGIA DA IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA

2.1 O que significa Teologia?

O vocábulo teologia (θεολογία) deriva da junção de dois outros vocábulos, quais sejam, Deus (θεός) e estudo (λογία)[26]. Portanto, em uma análise filológica, estritamente morfológica, seria “estudo de Deus” ou “estudo sobre Deus”.

Como essa exposição, por si só, não basta, passemos às considerações de grandes mentes que se debruçaram e elucidaram o tema durante a história humana.

O professor Frei Clodovis Boff (BOFF, 2015) leciona que a Teologia é única, ímpar, distinta; é ramo que transcende à ciência material e ao conhecimento racional humano.

Tomamos aqui a teologia como uma ciência, mas não decididamente em base ao modelo das ciências empírico-formais, como às vezes se tende hoje. A teologia é uma ciência a seu modo, uma ciência sui generis. É um saber ou disciplina que tem uma analogia estrutural com o saber científico em geral. Poderíamos dizer que é um saber “de tipo científico”, como explicaremos melhor no próximo capítulo[27]

Ainda segundo o eminente pensador, faz-se mister distinguir ideias fundamentais para que se torne possível uma análise acadêmica sobre o tema. Portanto, conceituemos as seguintes expressões: objeto material e objeto formal.

  1. O objeto material define a coisa de que uma ciência trata. É como se alguém fizesse um “corte vertical” na espessura mesma do ente e delimitasse nele uma região, para dela em seguida se ocupar. Trata-se do “quê” de um saber (objetum quod). Sinônimos de “objeto material” são: matéria-prima, temática, assunto, questão.
  2. O objeto formal indica o aspecto segundo o qual se trata o ente escolhido. É como se fizéssemos agora um “corte horizontal” no objeto material, a fim de captar-lhe um nível ou camada. Aqui temos não o “quê”, mas sim o “como” de um saber. Sinônimos de “objeto formal” são: aspecto, dimensão, faceta, lado, nível, razão específica[28]

Logo, o objeto material da teologia é Deus, isto é, a salvação, a criação, o certo, o errado, a Verdade, a moralidade, a existência, o Amor. O foco, o objeto principal é Deus, todo o resto é adiáforo, é acessório, ou seja, é secundário.

De que trata a teologia? De Deus e tudo o que se refere a Ele, isto é, o mundo universo: a criação, a salvação e tudo o mais. E isso está já na palavra mesma de “teologia”: estudo de Deus. Mas como Deus é o “Determinante de tudo”, então, qualquer coisa pode ser objeto de consideração do teólogo. Deus, com efeito, pode ser definido como “a Realidade que determina todas as realidades”.

Na verdade, a Teologia não tem por objeto um “objeto” entre outros. Ela não estuda um “pedaço” da realidade total, materialmente distinto de tudo o mais. Antes, ela toma como “objeto” aquela dimensão da realidade que diz respeito ao Sentido supremo e por isso totalizante de tudo e de cada coisa. Ela toma por tema o horizonte de sentido omnicompreensivo ou omnienglobante de tudo.

Contudo, importa dizer que Deus é o objeto primário (melhor, primeiro) da teologia e, tudo o mais, objeto secundário (melhor, segundo). E é natural, pois a teologia não pode pôr no mesmo nível o Criador e a criatura, como diz Tomás de Aquino…[29]

Noutro giro, o objeto formal da teologia é entendido como a Autorrevelação - ou apenas Revelação - de Deus na história da humanidade, isto é, O Criador se revela à criatura para que esta O conheça. Logo, O Caminho epistemológico divino provém de Deus, não do ser humano.

Como expressar o objeto formal da teologia? Poderíamos expressá-lo dizendo que é “Deus enquanto revelado”. Ora, o Deus revelado é o Deus bíblico, o Deus do Evangelho, o Deus salvador.

Lutero não dizia outra coisa quando, em sua linguagem existencial, afirmava que o tema próprio da teologia cristã é o “homem perdido e o Deus salvador”.

Por outras palavras, trata-se sempre de Deus enquanto visto “à luz da fé”. Essa última expressão diz a perspectiva própria da teologia.

Sinônimos aproximativos de “à luz da fé” são: segundo a Palavra de Deus, de acordo com as Escrituras, do ponto de vista da Revelação, aos olhos da Tradição Eclesial, etc. (BOFF. 2015. Página 45)

Faz-se mister frisar que a abordagem teológica lecionada pela Igreja Católica parte da ideia de Deus por meio da fé, de sua Autorrevelação, de Seu Mistério Revelado, de Seu mostrar-se à humanidade. Não se reduz, em tese, a abordagens seculares.

2.2 O que é a Igreja?

De acordo com a doutrina católica, Igreja é o Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, uma combinação de conjuntos moral e biológico, porém sob aspecto de mistério.

12. Ao meditar este ponto da doutrina católica ocorrem-nos logo aquelas palavras do Apóstolo: "Onde o pecado avultou, superabundou a graça" (Rm 5, 20). Sabemos que Deus constituiu o primeiro progenitor do gênero humano em tão excelsa condição, que com a vida terrena transmitiria aos seus descendentes a vida sobrenatural da graça celeste. Mas depois da triste queda de Adão toda a humana linhagem, infeccionada pela mancha original, perdeu o consórcio da natureza divina (cf. 2Pd 1, 4) e todos ficamos sendo filhos de ira (Ef 2, 3). Deus, porém, na sua infinita misericórdia "amou tanto ao mundo que lhe deu seu Filho unigênito" (Jo 3, 16); e o Verbo do Eterno Pai, com a mesma divina caridade, revestiu a natureza humana da descendência de Adão, mas inocente e imaculada, para que do novo e celeste Adão dimanasse a graça do Espírito Santo a todos os filhos do primeiro pai; e estes que pelo primeiro pecado tinham sido privados da filiação adotiva de Deus, pelo Verbo encarnado, feitos irmãos segundo a carne do Filho unigênito de Deus, recebessem o poder de virem a ser filhos de Deus (cf. Jo 1, 12). E assim Jesus crucificado não só reparou a justiça do Eterno Pai ofendida, senão que nos mereceu a nós, seus consangüíneos, inefável abundância de graças. Essas graças podia ele distribuí-las diretamente por si mesmo a todo o gênero humano. Quis, porém, comunicá-las por meio da Igreja visível, formada por homens, afim de que por meio dela todos fossem, em certo modo, seus colaboradores na distribuição dos divinos frutos da Redenção. E assim como o Verbo de Deus, para remir os homens com suas dores e tormentos, quis servir-se da nossa natureza, assim, de modo semelhante, no decurso dos séculos se serve da Igreja para continuar perenemente a obra começada.

13. Ora, para definir e descrever esta verdadeira Igreja de Cristo - que é a santa, católica, apostólica Igreja romana - nada há mais nobre, nem mais excelente, nem mais divino do que o conceito expresso na denominação "corpo místico de Jesus Cristo"; conceito que imediatamente resulta de quanto nas Sagradas Escrituras e dos santos Padres freqüentemente se ensina[30]

Faz-se mister frisar que, assim como São Paulo conceitua, a Igreja é una, indivisa, visível, porém diversificada por dons espirituais, voltados à vocação individual de cada membro.

1. A Igreja é um "corpo"

Corpo único, indiviso, visível

14. Que a Igreja é um corpo, ensinam-nos muitos passos da sagrada Escritura: "Cristo, diz o Apóstolo, é a cabeça do corpo da Igreja" (Cl 1, 18). Ora, se a Igreja é um corpo, deve necessariamente ser um todo sem divisão, segundo aquela sentença de Paulo: "Nós, muitos, somos um só corpo em Cristo" (Rm 12, 5). E não só deve ser um todo sem divisão, mas também algo concreto e visível, como afirma nosso predecessor de feliz memória Leão XIII, na encíclica "Satis cognitum": "Pelo fato mesmo que é um corpo, a Igreja torna-se visível aos olhos". (4) Estão pois longe da verdade revelada os que imaginam a Igreja por forma, que não se pode tocar nem ver, mas é apenas, como dizem, uma coisa "pneumática" que une entre si com vínculo invisível muitas comunidades cristãs, embora separadas na fé.

15. O corpo requer também multiplicidade de membros, que unidos entre si se auxiliem mutuamente. E como no nosso corpo mortal, quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele, e os sãos ajudam os doentes; assim também na Igreja os membros não vivem cada um para si, mas socorrem-se e auxiliam-se uns aos outros, tanto para mútua consolação, como para o crescimento progressivo de todo o Corpo.

Corpo composto "orgânica" e "hierarquicamente"

16. Mais ainda. Como na natureza não basta qualquer aglomerado de membros para formar um corpo, mas é preciso que seja dotado de órgãos ou membros com funções distintas e que estejam unidos em determinada ordem, assim também a Igreja deve chamar-se corpo sobretudo porque resulta de uma boa e apropriada proporção e conjunção de partes e é dotada de membros diversos e unidos entre si. É assim que o Apóstolo descreve a Igreja quando diz: "como num só corpo temos muitos membros, e os membros não têm todos a mesma função, assim muitos somos um só corpo de Cristo, e todos e cada um membros uns dos outros" (Rm 12, 4).

17. Não se julgue, porém, que esta bem ordenada e "orgânica" estrutura do corpo da Igreja se limita unicamente aos graus da hierarquia; ou, ao contrário, como pretende outra opinião, consta unicamente de carismáticos, isto é, dos fiéis enriquecidos de graus extraordinárias, que nunca hão de faltar na Igreja. E fora de dúvida que todos os que neste corpo estão investidos de poder sagrado, são membros primários e principais, já que são eles que, por instituição do próprio Redentor, perpetuam os ofícios de Cristo doutor, rei e sacerdote. Contudo os santos Padres, quando celebram os ministérios, graus, profissões, estados, ordens, deveres deste corpo místico, não consideram só os que têm ordens sacras, senão também todos aqueles que, observando os conselhos evangélicos, se dão à vida ativa, à contemplativa, ou à mista, segundo o próprio instituto; bem como os que, vivendo no século, se consagram ativamente a obras de misericórdia espirituais ou corporais; e, finalmente, também os que vivem unidos pelo santo matrimônio. Antes é de notar que, sobretudo nas atuais circunstâncias, os pais e as mães de família, os padrinhos e madrinhas, e notadamente todos os seculares que prestam o seu auxílio à hierarquia eclesiástica na dilatação do reino de Cristo, ocupam um posto honorífico, embora muitas vezes humilde, na sociedade cristã, e podem muito bem sob a inspiração e com o favor de Deus subir aos vértices da santidade, que por promessa de Jesus Cristo nunca faltará na Igreja[31]

Os sacramentos, por sua vez, representam a tangibilidade da Igreja, visto que conferem concretude aos sinais místicos eclesiológicos. São, pois, o advento da fé visível do corpo de Cristo, isto é, a fé em sua dimensão objetiva.

Corpo dotado de órgãos vitais, isto é, sacramentos

18. E como o corpo humano nos aparece dotado de energias especiais com que provê à vida, saúde e crescimento seu e de todos os seus membros, assim o Salvador do gênero humano providenciou admiravelmente ao seu corpo místico enriquecendo-o de sacramentos, que com uma série ininterrupta de graças amparam o homem desde o berço até ao último suspiro, e ao mesmo tempo provêem abundantissimamente às necessidades sociais da Igreja. Com efeito, pelo Batismo os que nasceram a esta vida mortal, não só renascem da morte do pecado e são feitos membros da Igreja, senão que, assinalados com o caráter espiritual, se tornam capazes de receber os outros dons sagrados. Com a Crisma infunde-se nova força nos fiéis para conservarem e defenderem corajosamente a santa madre Igreja e a fé que dela receberam. Pelo sacramento da Penitência oferece-se aos membros da Igreja caídos em pecado uma medicina salutar, que serve não só a restituir-lhes a saúde, mas a preservar os outros membros do corpo místico do perigo de contágio, e até a dar-lhes estímulo e exemplo de virtude. E não basta. Pela sagrada Eucaristia alimentam-se e fortificam-se os fiéis com um mesmo alimento e se unem entre si e a divina Cabeça de todo o Corpo com um vínculo inefável e divino. Finalmente ao leito dos moribundos acode a Igreja, mãe compassiva, e com o sacramento da Extrema-unção, se nem sempre lhes dá a saúde do corpo, por Deus assim o dispor, dá-lhes às almas feridas a medicina sobrenatural, abre-lhes o céu, onde como novos cidadãos e seus novos protetores gozarão por toda a eternidade da divina bem-aventurança.

19. As necessidades sociais da Igreja proveu Cristo de modo especial com dois sacramentos que instituiu: com o Matrimônio em que os cônjuges são reciprocamente um ao outro ministros da graça, proveu ao aumento externo e bem ordenado da sociedade cristã; e, o que é ainda mais importante, à boa e religiosa educação da prole, sem a qual o corpo místico correria perigo; com a Ordem dedicam-se e consagram-se ao serviço de Deus os que hão de imolar a Hóstia eucarística, sustentar a igreja dos fiéis com o Pão dos Anjos e com o alimento da doutrina, dirigi-la com os divinos mandamentos e conselhos e purificá-la com o batismo e a penitência, enfim fortalecê-la com as outras graças celestes.

Corpo formado por membros determinados

20. E a esse propósito deve notar-se que assim como Deus no princípio do mundo dotou o homem de um riquíssimo organismo com que pudesse sujeitar as outras criaturas e multiplicar-se e encher a terra, assim ao princípio da era cristã proveu a Igreja dos recursos necessários para vencer perigos quase inumeráveis e povoar não só toda a terra, mas também o reino dos céus.

21. Como membros da Igreja, contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do organismo do corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas. "Todos nós, diz o Apóstolo, fomos batizados num só Espírito para formar um só Corpo, judeus ou gentios, escravos ou livres" (l Cor 12, 13). Portanto como na verdadeira sociedade dos fiéis há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, um só batismo, assim não pode haver senão uma só fé (cf. Ef 4, 5), e por isso quem se recusa a ouvir a Igreja, manda o Senhor que seja tido por gentio e publicano (cf. Mt 18, 17). Por conseguinte os que estão entre si divididos por motivos de fé ou pelo governo, não podem viver neste corpo único nem do seu único Espírito divino.

22. Não se deve, porém, julgar que já durante o tempo da peregrinação terrestre, o corpo da Igreja, por isso que leva o nome de Cristo, consta só de membros com perfeita saúde, ou só dos que de fato são por Deus predestinados à sempiterna felicidade. Por sua infinita misericórdia o Salvador não recusa lugar no seu corpo místico àqueles a quem o não recusou outrora no banquete (Mt 9, 11; Mc 2, 16; Lc 15,2). Nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separem o homem do corpo da Igreja como fazem os cismas, a heresia e a apostasia. Nem perdem de todo a vida sobrenatural os que pelo pecado perderam a caridade e a graça santificante e por isso se tornaram incapazes de mérito sobrenatural, mas conservam a fé e a esperança cristã, e alumiados pela luz celeste, são divinamente estimulados com íntimas inspirações e moções do Espírito Santo ao temor salutar, à oração e ao arrependimento das suas culpas.

23. Tenha-se, pois, sumo horror ao pecado que mancha os membros místicos do Redentor; mas o pobre pecador que não se tornou por sua contumácia indigno da comunhão dos fiéis, seja acolhido com maior amor, vendo-se nele com caridade operosa um membro enfermo de Jesus Cristo: Pois que é muito melhor, como nota o bispo de Hipona, "curá-los no corpo da Igreja, do que amputá-los como membros incuráveis". "Enquanto o membro está ainda unido ao corpo não há por que desesperar da sua saúde; uma vez amputado, nem se pode curar, nem se pode sarar”[32]

A Igreja, pois, segundo a doutrina católica é sui generis, única, ímpar; a escolha de Deus para transmitir a Revelação, de forma contínua, durante as gerações. É, com efeito, a guardiã das Escrituras, da Tradição e da Interpretação, esta mediante magistério.

2.3 O que significa Católico?

O vocábulo “Católico” guarda, em sua morfologia, um tesouro histórico. O termo original provém do grego katholikos (Καθολικος), o qual é fruto da junção de duas palavras, quais sejam, junto (κατα/καθ) e todo (ολοί/ολος)[33]. A palavra foi transliterada ao latim como Catholicus. Da forma latina, chegou ao português como católico.

Para fins acadêmicos, não é aceitável que cessemos a análise na mera exposição etimológica da palavra. Passemos, pois, para o contexto histórico e teológico do termo.

No princípio do Cristianismo, houve uma pluralidade de interpretações, as quais originaram um incrível número de grupos distintos, com ensinamentos e com ritos completamente diferentes, em muitos casos, diametralmente opostos. Para dirimir a questão, fez-se necessário estabelecer um standard, isto é, um padrão, chamado em português de cânone, palavra que é oriunda da transliteração do termo grego κανών (kanon). Este, por sua vez, é proveniente do termo hebraico מתי (quaneh), de fonética semelhante, o qual pode ser traduzido literalmente como régua ou como instrumento de medição.[34]

O termo cânon vem de uma palavra grega que significa “prumo” ou “fio reto”. A expressão passou a se referir a um “padrão” e depois a uma “coleção padrão de livros”. Pode ser estranho saber que a Igreja não teve sempre o mesmo Novo Testamento. Muitas pessoas pensam que ele, com seus 27 livros, caiu do céu.

(...)

Nesse contexto, o argumento da sucessão apostólica assumiu especial importância, pois era preciso mostrar que a doutrina pregada pela Igreja Tradicional era a que os apóstolos lhes haviam ensinado. É interessante observar que a palavra católica significa universal, mas também carrega o sentido de segundo o todo.[35]

A ocorrência desse contexto cristão inicial conturbado, incerto e beligerante não é sustentado apenas na ciência da religião, mas outrossim na teologia e na melhor historiografia, lastreado por grande suporte fático extrabíblico, extraeclesial e por evidências amplamente sedimentadas na academia. Por certo, ao se reunir todo esse conhecimento fragmentado, alcança-se com maior assertividade a Verdade buscada cientificamente.

  1. No cristianismo primitivo, não havia apenas dois partidos, mas, sim, uma porção de correntes, entre as quais havia tensões e conflitos: judeo-cristianismo, cristianismo sinótico, paulino e joanino e, ademais, posteriormente, a ampla corrente de um cristianismo gnóstico. Numa primeira parte, apresento uma visão geral dessas correntes e suas subcorrentes, bem como as ligações transversais entre elas. Aqui se deve ressaltar a pluralidade do cristianismo primitivo, e indícios para sua unidade e por trás de toda variedade devem ser coletados. Somente essa unidade torna compreensível a formação do cânone, o qual, sem uma instância organizacional central no cristianismo primitivo, pôde impor-se no decorrer do séc. II. Seu aparecimento é o fruto decisivo da história do cristianismo primitivo no séc. II.
  2. A síntese, no final desse desenvolvimento, não é representada pelo evangelho de João, mas por meio do cânone. Emblemático para a formação do cânone é a aceitação consciente da variedade do cristianismo primitivo. O cânone aceita escritos de quase todas as correntes representativas. O corpus joanino não é essa síntese. Ele representa apenas uma corrente dentro do cânone, mas poderia ter desempenhado um papel especial na formação do cânone. Numa segunda parte, por conseguinte, tratamos a formação do cânone como uma coleção de escritos heterogêneos - em certa medida, o “cânone externo”, com o qual o cristianismo primitivo chega a seu fim, e tem início a Igreja Antiga.
  3. Com a formação do cânone chegou-se à expulsão das correntes “heréticas”. Nem todas as correntes e tendências no cristianismo primitivo foram representadas no cânone por meio de escritos. Faltam escritos gnósticos. Escritos judeo-cristãos estão sub-representados. Na, com e mediante a formação do cânone foi preciso haver consenso a respeito do que seguramente era “cristão” em sentido normativo. Somente se impuseram os escritos que correspondiam a esse consenso. Numa terceira parte, tentaremos realçar esse consenso. Aqui, buscamos uma série de axiomas e motivos de base, implícitos ou explícitos, que foram partilhados pela maioria dos cristãos. Pode-se chamar a esse consenso de “cânone interno” no cânone externo[36]

Em escala gregoriana, o período primitivo cristão é compreendido entre os séculos I e IV d.C., sem se olvidar daqueles pesquisadores que estendem-no até o século V.

Durante esse interstício, as quatro principais correntes cristãs documentadas foram as seguintes: o judeo-cristianismo, o cristianismo sinótico, o cristianismo paulino e o cristianismo joanino. Ora, da junção sociopolítica desses segmentos, surgiu o cristianismo protocatólico, o qual é a gênese do catolicismo atual.

No séc. II, essas quatro correntes fundamentais confluem para o cristianismo comunitário protocatólico. Em minha opinião, seu melhor testemunho é o cânone. No cânone neotestamentário estão reunidos escritos provenientes das quatro correntes fundamentais. Contudo, faltam escritos tanto da ala radical do judeo-cristianismo (evangelho dos Hebreus e evangelho de Tomé) quanto da ala radical do cristianismo joanino, para o qual, aliás, não podemos atribuir nenhum escrito conservado. Ademais, faltam todos os escritos gnósticos. O cânone é (mediante o recolhimento, mas também pela não-aceitação de diversos escritos) o grande e consensual resultado desse cristianismo comunitário. Esse cristianismo comunitário protocatólico não apenas recolheu os escritos neotestamentários, mas também produziu seus próprios escritos - para a demonstração perante o mundo exterior, a apologética -, na qual ele procurava interpretar a si mesmo para os outros (Aristides, Justino, Teófilo de Antioquia, etc.); para as próprias comunidades, aquela literatura resumida sob conceito de Padres Apostólicos, e para a discussão com os hereges, os primeiros escritos heresiológicos.

(...)

Contudo, também perante essas correntes exasperantes e desestabilizadoras de esquerda e de direita, a Igreja Antiga demonstrou capacidade de integração. Ela se demonstra em três grandes teólogos antigos: Tertuliano consentiu em integrar o montanismo em sua teologia. Não obstante ele fosse de insuspeitável ortodoxia, converteu-se ao montanismo na última fase de sua vida. Clemente de Alexandria, outra vez, procurou integrar a gnose em sua teologia protocatólica. Irineu, ao contrário, sobressaiu-se como teórico do cânone. Sua teologia histórico-salvífica, que equilibrou a fé na criação e a fé na salvação, pode-se compreender como resposta madura ao questionamento de Marcião. No todo, vale dizer: o cânone é a grande resposta do cristianismo primitivo, que se está findando, à crise de identidade da Igreja[37]

Portanto, ser católico é, em tese, suceder a tradição socioteológica do conjunto de grupos, outrora rivais, que se encontram atualmente, na perspectiva ocidental, associados sob a unidade da Igreja Católica Apostólica Romana.

3. MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO E DIREITOS HUMANOS

O vocábulo Bíblia deriva do termo grego βιβλίον e significa, literalmente, papiro, por estensão, pode ser entendido como livro[38]. Ora, ao se analisar a etimologia do termo, portanto, chegamos à conclusão que chamar o compêndio de escritos presente de Bíblia é tecnicamente inadequado, visto que o correto seria chamá-la de biblioteca, por ser um conjunto de livros compendiados.

Superada essa atecnia presente em nosso linguajar cotidiano, faz-se mister perguntar: como devemos ler a Bíblia? Pela perspectiva filológica, pelas análises histórico-críticas ou pelos olhos do magistério eclesial? Para responder a essas perguntas, é necessária conceituação prévia.

Ora, iniciemos pelo óbvio: as Sagradas Escrituras judaico-cristãs foram escritas por pessoas. Estas, por sua vez, foram sujeitas ao contexto histórico em que viveram, às relações sociais que estabeleceram, aos costumes típicos e à linguagem de seu povo.

A Igreja Católica, pois, no Concílio Vaticano II apenas atestou o indubitável: é necessário que se perquira os resquícios históricos, para que a exegese e a interpretação sacra se coadunem da melhor forma possível à realidade, às narrativas contidas nas Escrituras.

Carácter histórico dos Evangelhos

19. A santa mãe Igreja defendeu e defende firme e constantemente que estes quatro Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus. durante a sua vida terrena, realmente operou e ensinou para salvação eterna dos homens, até ao dia em que subiu ao céu (cfr. Act. 1. 1-2). Na verdade, após a ascensão do Senhor, os Apóstolos transmitiram aos seus ouvintes, com aquela compreensão mais plena de que eles, instruídos pelos acontecimentos gloriosos de Cristo e iluminados pelo Espírito de verdade (2) gozavam (3), as coisas que Ele tinha dito e feito. Os autores sagrados, porém, escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo algumas coisas entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito, sintetizando umas, desenvolvendo outras, segundo o estado das igrejas, conservando, finalmente, o carácter de pregação, mas sempre de maneira a comunicar-nos coisas autênticas e verdadeiras acerca de Jesus (4). Com efeito, quer relatassem aquilo de que se lembravam e recordavam, quer se baseassem no testemunho daqueles «que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra», fizeram-no sempre com intenção de que conheçamos a «verdade» das coisas a respeito das quais fomos instruídos (cfr. Lc. 1, 2-4)[39]

O método histórico-crítico, com efeito, é utilizado academicamente nesse sentido. Trata-se de exegese com forte tom moderno, num movimento científico de se analisar os livros da Bíblia, com o afã de se buscar a Verdade histórica dos textos, não apenas análises devocionais, quiçá místicas.

Nem sempre se reconhece que o início do método histórico-crítico de interpretação remonta ao trabalho dos escoliastas da antiga Alexandria nos dois ou três últimos séculos a.C. Um bom representante desses escoliastas foi Zenódoto de Éfeso que se tornou diretor da biblioteca por volta de 284 a.C. e que cotejou manuscritos dos escritos de Homero e compilou um Glossário homérico, estudo de palavras difíceis nesses escritos.

No período patrístico, autores da Igreja imitaram as técnicas desenvolvidas nessa filologia clássica alexandrina. Alguns autores desse período eram célebres por suas formas de crítica, que talvez fossem um tanto primitivas, se julgadas pelos padrões de hoje, mas mesmo que assim se transformaram no método histórico-crítico usado nos tempos modernos. (...)

O desenvolvimento sério seguinte no método histórico-crítico veio na época da Renascença, principalmente no trabalho de estudiosos que defendiam “a volta às fontes” (recursus ad fontes). Parte desse trabalho impunha o estudo da Bíblia em suas línguas originais, hebraico, aramaico e grego, em vez do latim, como era costume em praticamente todos os períodos anteriores na Igreja ocidental. Àquele tempo também a revolução de Copérnico teve igual relevância para o estudo da Bíblia, em especial, em suas consequências, o caso Galileu. (...)

Nos séculos XVII e XVIII, o método histórico-crítico desenvolveu-se mais, pelo esforço do jurista e teólogo holandês Hugo Grotius, do oratoriano e biblista francês Richard Simon e do filósofo holandês Baruch Spinoza - portanto, pela obra de um protestante, um católico e um judeu.

Novo impulso foi dado a esse método de interpretação bíblica por ocasião do Iluminismo e pelo movimento do historicismo alemão no século XIX[40]

Ora, por não sermos contemporâneos aos estudiosos dos séculos XVII, XVIII e XIX, não entendemos a importância das descobertas árqueo, antropo e sociológicas, além de históricas durante esse período. Em verdade, a exegese bíblica tomou uma direção mais sensata, as pesquisas acadêmicas resultaram em desmistificações sensíveis e, por conseguinte, houve (tímidas) revisões na tradicional interpretação eclesial.

Diante a todas essas mudanças referenciais, faz-se importante frisar em que consiste o método histórico-crítico. Fitzmyer (2011) leciona, com sua tradicional didática, o conceito dessa forma de pesquisa.

O método chama-se “histórico-crítico” porque, como vimos, ele aplica à Bíblia as técnicas críticas desenvolvidas a partir da filologia clássica alexandrina. Reconhece que, embora contenha a Palavra de Deus escrita inspirada, a Bíblia é um registro antigo, composto de muitos autores durante um longo período de tempo. Sendo uma composição antiga, tem de ser estudada e analisada como outros registros históricos antigos. Grande parte da Bíblica apresenta um relato narrativo de acontecimentos que afetaram a vida dos judeus antigos e dos cristãos primitivos, por isso os diversos relatos têm de ser analisados contra o pano de fundo humano e histórico apropriado, em seus contextos contemporâneos e em suas línguas originais. Chama-se “crítico” não porque procura criticar os registros antigos em sentido pejorativo, mas porque utiliza as técnicas de diversas formas de crítica literária e histórica[41]

Portanto, o método histórico-crítico pode ser entendido como uma “revolução copernicana metodológica”, que mudou completamente as análises de exegese, de hermenêutica e de interpretação das Sagradas Escrituras. Foi, com efeito, uma avalanche de conhecimento moderno, um vento arrasador sobre preconceitos milenares, isto é, o desabrochar de uma fé racional e ressignificada. Portanto, gênese da desmitologização e da profissionalização científica de quem almeja estudar, de fato, as Escrituras.

Nesse sentido, convergem a maioria dos acadêmicos biblistas hodiernos. Com efeito, felizmente, a resistência ao conhecimento científico não mais impera no meio clerical católico, pelo contrário, a Igreja se tornou vanguardista na análise histórico-crítica brasileira e internacional, em contraposição a grupos fundamentalistas, reacionários, conservadores, obscurantistas e sectaristas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Sabemos que até hoje tal universalidade incondicional está longe de ser aplicada e que, com frequência, as mulheres desfrutam de uma dignidade de direitos ampurados. Sabemos também que as religiões, inclusive pelos seus textos sagrados, têm um papel determinante no tratamento igual ou desigual das mulheres.

Buscando na literatura sagrada uma resposta às suas perguntas sobre valores, os fiéis de todas as religiões deparam-se com textos problemáticos que uma leitura ingênua pode transformar em armas poderosas de opressão. Na tradição judaico-cristã, a Bíblia não constitui um caso diferente. Nos seus textos normativos, ela veicula ideias e normas que fazem da mulher um ser humano inferior, incapaz de ser sujeito de sua própria vida. Isso se vê claramente nas leis que tratam das relações sexuais ilegítimas, nas quais se vê que a sexualidade da mulher não lhe pertence e que, muitas vezes, a mulher vítima é transformada em mulher culpada. Também figuras femininas de destaque, como Miriam, são apresentadas de maneira ambígua: elas são enaltecidas quando correspondem a seu suposto papel na sociedade e castigadas quando se rebelam.

Para evitar que uma leitura ingênua dos textos reforce a opressão e a submissão da mulher, a única saída é, sem dúvida, a difusão ampla de uma leitura crítica da Bíblia, assim como de todo texto sagrado. Isso não implica nenhum desrespeito a qualquer tradição religiosa, como mostra bem o exemplo dos rabinos que traduziam o seu respeito pelo texto bíblico numa leitura atenta e crítica que não se deixasse enganar pelas certezas aparentes na superfície, mas sempre procuravam cavar mais fundo na procura do sentido mais exato[42]

Essa mudança de abordagem quanto às Escrituras fortaleceu e possibilitou, nos âmbitos religioso e social, a expansão dos Direitos Humanos, abertura para deliberações e, outrossim, para mudanças sensíveis em tradições perversas, preconceituosas, obscuras e obtusas.

Graças ao resgate dessa metodologia, a Verdade fática se estabeleceu, os mitos foram desnudados e a dignidade da pessoa humana tomou contornos inimagináveis se comparados à história humana. O humanismo, com efeito, reina em nossos tempos, não mais se aceitam fogueiras, torturas, maledicências e sentenças desumanas, principalmente se forem motivadas por intolerância e/ou por perseguições religiosas, ideológicas, políticas, sexuais e/ou étnicas.

4. CONCLUSÃO

O imaginário e o simbolismo fundantes da ideia lacônica simplesmente chamada de “Ocidente” são baseados em três macroelementos, quais sejam, a filosofia grega, a religião judaico-cristã e o Direito romano. Dentro dessa dinâmica, percebe-se que a noção conceitual de ser humano foi, é e será influenciada indeterminada e enormemente por essas três perspectivas.

Sinceramente, espero ter contribuído academicamente ao produzir este trabalho, haja visto que a correlação entre Teologia Católica e Direitos Humanos, de forma multidisciplinar, holística e descritivo-crítica é um desafio de proporções milenares. Os leitores serão meus juízes.

No tocante à temática do artigo, faz-se mister escrever, falar, pensar e repensar o exposto, haja visto que o mundo passa por calamidades terríveis, por violações inadmissíveis aos Direitos Humanos, mormente pela guerra russo-ucraniana de 2022.

Tenho o sonho de que os Direitos Humanos sejam efetivamente levados a cada ser humano no planeta Terra. Convido a cada leitor que sonhe e, mais ainda, que pratique o respeito à existência alheia, não apenas se omitindo do mal, mas positivamente, encarando a perversidade social cotidiana.

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Sobre os autores
Fernando Luz Sinimbu Portugal

Graduado em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015); especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017); especialista em Direito Constitucional (2021); Direito Administrativo (2021); Direito Civil e Direito Processual Civil (2021) e em Ciências Criminais (2021); em Direitos Humanos (2023) e em Ensino à Distância (2023) no Centro Universitário União das Américas - Uniamérica; graduado em Teologia (2022), em História (2023) e em Administração (2023) na Universidade Estácio de Sá. Mestrando em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2023-2025).

André Luiz Santos

Orientador.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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