IMPRESCRITIBILIDADE DO CRIME DE INJÚRIA PRECONCEITUOSA E OS REFLEXOS NA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR.

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IMPRESCRITIBILIDADE DO CRIME DE INJÚRIA PRECONCEITUOSA E OS REFLEXOS NA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 154248/DF, entendeu que a prática de injúria racial, prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, seria uma espécie do gênero de racismo e, por conseguinte, imprescritível, nos moldes do art. 5°, XLII da CRFB/88.

A constituição nesse dispositivo, traz um mandado de criminalização do crime de racismo:

art. 5º: XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Como se percebe a própria constituição determina um tratamento diferenciado ao crime de racismo, uma vez que tal delito tem amparo em diversos dispositivos constitucionais, sendo inclusive um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Desta feita, exigiu que o legislador criasse a lei de tipificasse condutas com o escopo de impedir a prática do racismo.

Editada a lei 7.716/89, que traz diversos dispositivos que repudiam o crime de racismo, mais precisamente o crime previsto no art. 20 da lei.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Ocorre que o Código Penal trata do art. 140, §3° do crime de injúria preconceituosa/racial, quando a ofensa é em razão de raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, tendo a mesma pena, mudando alguns aspectos, dentre eles a espécie de ação penal, a prescritibilidade ou imprescritibilidade e o bem jurídico tutelado.

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)

O ponto central desse artigo não é tecer comentários dos aspectos do direito material e sim da parte processual, porquanto nada disse sobre a ação penal, pois o racismo ação penal pública incondicionada, já o crime de injúria preconceituosa é manejado mediante ação penal pública condicionada à representação.

Nesse aspecto é que perpassa a maior problemática. Nessa espécie de ação penal, o titular da ação só pode manejar a vestibular acusatória com a devida representação, que se não sobrevier desafia a decadência e, por consectário lógico, ocorre a extinção de punibilidade.

Abordaremos a problemática causada com a omissão de tal ponto pelo STF, pois reflete em aspectos práticos.

Como fica o instituto da representação? Torná-lo imprescritível não dispensa tal condição de procedibilidade.

Sabemos que a prescrição e a decadência são institutos distintos mas com a mesma natureza jurídica, causa extintiva de punibilidade.

O STF no julgamento do HC 154248/DF afirmou ser o crime de injúria preconceituosa imprescritível, porquanto a injúria seria uma espécie do gênero de racismo.

Consistindo o racismo em processo sistemático de discriminação que elege a raça como critério distintivo para estabelecer desvantagens valorativas e materiais, a racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais.

O Superior Tribunal de Justiça já possuía esse entendimento (pela imprescritibilidade):

A denominada injúria racial é mais um delito no cenário do racismo, sendo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão.

STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1849696/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 16/06/2020.

Percebe-se que o STJ já possuía esse entendimento (injúria ser especie do gênero de racismo) e ainda foi além, defendeu a inafiançabilidade do delito.

O crime de injúria preconceituosa, permite que o Delegado de Polícia fixe fiança porquanto preenche o requisito objetivo previsto no art. 322, CPP que é a pena não suplantar os 4 anos.

Realmente, de extrema reprovabilidade nos dias atuais, um comportamento dessa envergadura, mas infelizmente, não raras vezes, nos deparamos com esses crimes.

Como dissemos acima, o STF entendeu pela imprescritibilidade mas nada disse sobre a ação penal do delito, se manteria condicionada à representação ou se devesse observar a incondicionalidade das ações penais como regra.

Sendo a injúria um crime que se submete à decadência, que possui natureza jurídica de causa extintiva de punibilidade, como ficaria?

Digamos que uma pessoa compareça a unidade policial noticiando um fato semelhante (art. 140, §3°°, CP), mas que ao analisar a condição de procedibilidade, já havia decorrido o prazo de seis meses do conhecimento da autoria para manifestar sua vontade, como resolveria?

De um lado o STF informa que o crime é imprescritível de outro giro como ficaria a decadência?

Antes de entrarmos na problemática abordaremos alguns conceitos para que possamos rememorar da melhor forma possível.

O direito de ação é o direito público subjetivo consagrado na CF/88, de se exigir do ao Estado-Juiz a aplicação do direito objetivo ao caso concreto, para a solução da demanda penal.

O direito de ação é extraído da própria Constituição Federal, art. 5º, XXXV: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

O dispositivo constitucional consagra o chamado princípio da inafastabilidade de jurisdição. Assim, se ela não excluirá de sua apreciação, significa dizer que incumbe a esta o dever de prestá-la.

Importante trazermos alguns conceitos importantes sobre a decadência e a prescrição que são institutos distintos.

A decadência é a perda do direito de ação penal privada ou de representação em virtude de seu não exercício no prazo legal. Funciona como causa extintiva da punibilidade, nos exatos termos do art. 107, inciso IV, do Código Penal.

Dentro do direito penal, a prescrição penal é a extinção do direito do Estado de punir alguma conduta considerada penalmente ilícita causada por alguma pessoa, ou seja, é a perda da pretensão.

A ação penal possui algumas condições da ação para o seu exercício, se dividindo em condições genéricas e específicas e, dentre estas, encontra-se o instituto da representação.

A representação é o pedido e a autorização que condiciona o início da persecução penal, possuindo a legitimidade ativa (quem vai oferecer) que é da vítima ou seu representante legal. Sem ela inexiste processo, IP e até mesmo lavratura de flagrante.

O art. 38 CPP informa que a consequência do não exercício da representação é a decadência para que o titular da ação possa manejar a ação penal:

Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, CPP do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

O instituto da decadência, nos moldes do art. 107, IV, CP, possui natureza jurídica de causa extintiva de punibilidade.

A mesma solução é dada ao instituto da prescrição que sobrevindo é causa extintiva de punibilidade.

Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

IV - pela prescrição, decadência ou perempção;

Com essa problemática teríamos o esdruxulo caso de extinção da punibilidade (decadência) de um caso imprescritível.

Questiona-se, qual a ratio do STF tratar o crime como imprescritível se se submete à decadência que é causa extintiva de punibilidade?

A decadência, diferente da prescrição não se suspende, não se prorroga e não se interrompe, ou seja, é prazo peremptório.

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Nesse sentido Aury Lopes Júnior:

Importante destacar que o prazo decadencial não se prorroga, logo, se acabar no domingo, por exemplo, não se estende para segunda-feira, devendo a queixa ser distribuída na sexta-feira anterior ou no plantão de domingo.

Caso uma pessoa seja vítima de um crime de injúria preconceituosa e não exerça seu direito de representação decai e, por conseguinte, extingue a punibilidade.

Nesse caso deve o Delegado instaurar o inquérito policial?

Nossa posição é pela impossibilidade da instauração do inquérito policial, tendo em vista a consequência do não exercício tempestivamente, independentemente da imprescritibilidade do crime de injúria preconceituosa. E explico!

A investigação preliminar possui diversas finalidades, dentre elas a função de filtro processual que tem por escopo evitar inquéritos policiais abusivos, temerários e desnecessários.

O processo penal é uma pena em si mesmo, pois não é possível processar sem punir e tampouco punir sem processar, pois é gerador de estigmatização social e jurídica (etiquetamento) e sofrimento psíquico. Daí a necessidade de uma investigação preliminar para evitar processos sem suficiente fumus commissi delicti.

A atividade como filtro processual resta plenamente concretada se levarmos em consideração três fatores: o custo do processo, o sofrimento que causa para o sujeito passivo (estado de ânsia prolongada) e a estigmatização social e jurídica que gera o processo penal.

Instaurar um inquérito policial sem a menor chance de exercício da ação penal, seria incongruente, gerando custo ao judiciário, papel, servidores, pautas, que sequer poderia o Ministério Público ingressar com a demanda tendo em vista faltar uma das condições da ação que é a representação.

Somado a isso, devemos analisar sob o ponto de vista do investigado, que teria seu estado de ânsia prolongada sabendo que feriria o princípio da segurança jurídica, uma vez que o crime está extinta a punibilidade pelo decurso do tempo.

A investigação preliminar deve excluir elementos informativos inúteis, filtrando e deixando em evidência aqueles elementos de convicção que interessem ao elemento da causa e que as partes devem solicitar a produção no processo, como também deve servir de filtro processual, evitando que as acusações infundadas prosperem. Evitando um processo penal infundado e temerário.

A investigação preliminar está destinada a fornecer elementos de convicção que permitam justificar o processo e o não-processo.

Sendo que tem um de seus escopos a evitação de um processo, obviamente a porta de entrada do judiciário perpassaria pela investigação preliminar, desenvolvida por um órgão oficial do Estado, que nesse caso, impede a deflagração da investigação natimorta.

Qual seria a razão do Delegado de Polícia instaurar um inquérito policial presente a causa extintiva de punibilidade? Nenhuma das hipóteses do funcionalismo da investigação estaria presente.

A imprescritibilidade preconizada pelo Supremo Tribunal Federal só poderia ser a prescrição intercorrente, ou seja, aquela modalidade de prescrição que ocorre no curso da persecução penal.

Sabemos que a pena prevista no art. 140, §3° CP é de reclusão de um a três anos, sendo assim deveríamos observar a regra do art.109, IV do CP:

Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:(Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).

IV - em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;

Isto é, o crime de injúria preconceituosa prescreveria em oito anos, mas como o STF deu interpretação pela imprescritibilidade não ocorre mais no caso do crime em análise.

Após a interpretação do Supremo, a única interpretação pela imprescritibilidade é após o exercício do direito de representação, pois se a vítima não se manifestar tempestivamente ocorrerá a decadência, ainda que o fato seja imprescritível.

Como vimos, são institutos distintos, mas que possuem a mesma natureza jurídica, que é a causa extintiva de punibilidade.

O indivíduo não é mais objeto de investigação dentro do cenário da investigação preliminar e sim sujeito de direitos, não pode a segurança jurídica ser abalada em razão de um escambo do Supremo ao elevar à imprescritibilidade e nada dizer sobre a especie de ação penal, que como sabemos, o crime de injúria é de ação penal pública condicionada à representação.

A interpretação do Processo Penal moderno deve ser a interpretação prospectiva, que é aquela trazida com dogmas, valores e princípios da Constituição para dentro do Processo Penal.

Bibliografia:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal: STF. Plenário. HC 154248/DF, Rel. Min. Edson Fachin.

Código de Processo Penal. decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.

Aury Lopes Jr. Direito Processual Penal, 2021 - 17ª Ed.

Sobre o autor
Tiago Baltazar Ferreira Dantas

Delegado de Polícia Civil no Estado do Paraná, Pós-graduado em Penal e Processo Penal pela Faculdade Estácio de Sá, Pós-graduado em Direito Público, Pós graduado em Gestão de Segurança Pública pela Escola Superior de Polícia Civil do Estado do Paraná/PR, Graduado em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA) no Estado do Rio de Janeiro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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