INTRODUÇÃO
O presente artigo funda-se no intento de apresentar o estudo realizado acerca das questões que constituem a temática referente ao preconceito e a culpabilização da vítima de estupro. Trata-se de um tema de cunho predominantemente social, que para ser devidamente examinado requer análise tão quanto regressista social e historicamente, visto que a sociedade brasileira fincou-se em raízes históricas questionáveis que podem responder sua posição disparatada mediante fatos sociais como o estupro.
Hodiernamente, qualquer crime que viole a dignidade sexual do indivíduo é punível penalmente. Não obstante o amparo legal dado à vítima diante esses crimes, é inescusável acentuar que tal acolhimento não é corroborado quando o fato se faz conhecido pela sociedade. Eis que ao ouvir notícia de estupro, alhures se houve indagações deste modelo: Mas onde ele/ela estava quando foi estuprado (a)?
A recolocação dessa vítima na sociedade pelo que se examina requer uma reestruturação psicossocial do indivíduo que dependendo do contexto social em que vive, terá que lidar com o massivo preconceito e culpa socialmente imposta. Nesse esteio, é concernente concatenar com o presente artigo o estudo da longametragem Preciosa, que pranteadamente expõe a realidade do indivíduo que teve sua dignidade sexual profanada e ainda sim lidou com as aleivosias e detrações existentes.
1 O ESTUPRO FAZ PARTE DA HISTÓRIA DESTE PAÍS. O PRECONCEITO E A CULPABILIZAÇÃO SÃO COADJUVANTES.
O estupro, juridicamente reconhecido como crime não se limita apenas na natureza penal, antes tal delito tivesse apenas essa proporção. Essa prática acompanha a sociedade, no bom português, desde que o mundo é mundo, o patriarcado e a força física foram imperantes para a contínua realização deste ato. Numa escala nacional e sob cunho histórico vale trazer a lume a tão conhecida miscigenação que marca a história brasileira. Ora, esta mistura de povos e etnias não se limita apenas na forma de como esta nação foi composta, mas traz consigo obscuramente a prática massiva e impiedosa do estupro, porque de fato foi assim que ocorreu.
Foram as índias, as negras e tão quantas outras que estivessem à frente que forçosamente caiam no laço e então ocorria a reprodução do cativeiro. O pensamento de domínio sob a mulher trazido pelo patriarcado, por longos anos e erroneamente empoderou os homens e os encorajaram a realizar a recorrentes práticas sexuais forçadas que se deram neste país.
Entretanto, não se pode perder de mente que esta tipificação penal atual não determina quem é vítima de estupro, como antigamente se fazia. Hoje, como de fato deve ser, qualquer indivíduo é reconhecidamente vítima de estupro se mediante violência ou grave ameaça é obrigado a manter ato libidinoso. Por outro lado, a sociedade parece não acompanhar a evolução penal e quando se fala em estupro permeia na mente da maioria das pessoas a análise do binômio responsabilidade da vítima x culpa do criminoso e a partir daí sobrevém os prejulgamentos
Por ser criança vulnerável e estar tarde na rua obviamente está concorrendo com um estupro? A mulher por está de minissaia está concorrendo com um estupro? Por ser gay e está voltando à noite de uma balada sozinho concorre com o estupro? Para todos esses questionamentos a resposta é não. Não há culpa e nem mesmo preconceito que justifique a prática de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso forçado que desflore um indivíduo.
Ora, não se trata apenas de necessidade de adequação penal, mas de ajuste social. É inegável o preconceito e a culpabilização da vítima quando ocorre crime, assim é que se reconhece a Cultura do Estupro, trazida pela segunda onda feminista no anos 70 que reconhece também a objetificação sexual da mulher, a crença em mitos do estupro, trivialização do estupro, a negação de estupros, a recusa de reconhecer o dano causado por algumas formas de violência sexual, ou a combinação entre esses comportamentos.
2 A SOCIEDADE DIANTE O CRIME DE ESTUPRO
Em pleno século XXI, em uma sociedade dita pós-moderna, verifica-se inúmeras posturas marcadas pelo sentimento machista acoplado na figura masculina. Nesta realidade, brota a ideia de que o corpo feminino é propriedade exclusiva do homem, emanando a relação de poder e domínio. O estado patriarcal, como também, o sentimento de superioridade enraizado na figura masculina, é um processo contínuo que perpassa de geração em geração, na perspectiva de impor um arquétipo de conduta a ser seguido pela mulher, a fim de impor sobre esta, um estado de obediência e submissão.
A expansão deste pensamento sobrepôs influência no meio cultural, social e familiar, de modo que, o aspecto do machismo retratado pela figura masculina, acabou sendo contornando por ideologias, crenças e moral religiosa. Neste aspecto, a questão da sexualidade, acabou tendo relações intrínsecas com o estado de submissão, ressignificando o entendimento para se referir as questões sexuais, impondo um saber culturalmente equivocado, excluindo o conceito da manifestação do desejo nas relações de afeto (CHAUI, 1985; FOUCAULT, 1988; MOTTIER, 2008).
Nesta realidade, o fator violência passa a se sobrepor, manifestando-se por meio de diversas facetas ocasionando relações desiguais. Cabe notar, que tal realidade se materializa principalmente nos segmentos populacionais que se encontram em situação de vulnerabilidade, correlata com as desvantagens socioeconômicas, acentuando o maleficio principalmente na figura feminina. A partir deste contexto e, dentre outros a violência contra a mulher nas últimas décadas, tornou-se um dos problemas públicos de maior visibilidade social e, o estrupo sufocado no silencio da vítima, está inserido neste contexto.
Mediante tal cenário, o Estado como figura primordial para tutelar direitos, se insere em um estado de escassez de políticas sociais, com direitos formais insuficientes para garantir a dignidade humana das mulheres. Desta realidade, o silêncio e o sentimento de vergonha carregado pelas vítimas, são fortalecidos pelo senso de incompreensão, descaso e culpabilidade, já que a vítima pela violência sofrida, é estigmatizada pela sua postura.
Destarte, não se nega a existência de alguns avanços na política de atendimento à mulher, como se pode destacar a figura da DEAM. No entanto, embora os avanços alcançados e serviços disponibilizados, as vítimas ainda necessitam de uma estrutura adequada e de programas com corpo técnico que supram todas as suas necessidades frente a violência sofrida.
3 O PAPEL DO DIREITO PENAL ALÉM DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME
O Diploma Penal em seu art. 213 assim preceitua o crime de estupro: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Não obstante a citada tipificação penal e a rigorosa pena aplicada ao criminoso, a prática deste delito é recorrente. Sob análise do 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em setembro de 2019, verifica-se que é alarmante o fato de que no âmbito nacional a maioria das vítimas, 53,8% foram meninas de até 13 anos e 50,9% mulheres negras.
O crime em sua redação atual não particulariza quem é a vítima, entretanto, os dados supra informados instigam o questionamento de como a sociedade se comporta perante este fato social e qual a justificativa dos números demonstrados. Os dados evidenciados nas pesquisas do 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, demostra que a maioria dos casos ocorre dentro da esfera familiar, ou seja, quem as deveria proteger, acabam se tornando as principais ameaças à sua integridade física, sexual e psicológica. É evidente que o preconceito marcado pelo patriarcado e machismo, é o principal seguimento que imputa a vítima uma culpabilidade cruel e descabida.
Partindo desse pressuposto e diante de alarmantes estáticas, o código penal brasileiro tem buscado se adequar e normatizar condutas que ferem a liberdade sexual, e caracterizar de forma individual cada atuação criminosa, como violência sexual mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual e estupro em sua forma ampla, fazendo com que os criminosos sejam punidos de acordo com a sua conduta específica.
Outrossim, considera-se também para fins de rigor da pena o dano causado a vitima, seja ele físico ou emocional. Em suma, a nova roupagem da legislação penal contra a violação da liberdade sexual é o principal caminho na efetivação da luta contra qualquer ramificação de preconceito, prejulgamento ou repreensão social infundada que atribui indevidamente à vítima dos crimes multicitados, culpa e marginalização.
Forçoso é concluir que se faça constante o amparo penal diante do crime e da pessoa violada sexualmente. Concomitantemente, politicas públicas de conscientização e segurança também auxiliam nessa diligência, obstando o silêncio da vítima, dizimando o preconceito e a culpabilização que é constante, adequando à sociedade a este fato social para que se atente aos inúmeros pedidos de socorro, silenciados sob o temor de julgamentos convertidos em olhares e falas ofensivas. Assim, se faz necessário que essa intolerância se torne em acolhimento e busca incessante por justiça eficaz.
4 ESTUDO DA LONGAMETRAGEM PRECIOSA. PRECONCEITO. CULPABILIZAÇÃO.
Clarice Preciosa, criada no Harlen, nos Eua em 1987sofria diversos preconceitos tanto de cunho moral, racial, familiar e estético, uma menina de 16 anos de pele negra vitimizada pela sociedade taxativa em uma época de retrocesso em seu país. Preciosa, é o exemplo factual do total descaso e repulsa de uma sociedade que seleciona alguns, os adequados às suas exigências, para serem os bonitos, honestos, e outros para serem escarnecidos, tratados com indiferença.
Isso é o que acontece com Preciosa e muitas meninas adolescentes na sociedade atual. Em seu lar sua mãe lhe trata com total desprezo com relação à sua saúde, educação, enche-lhe de desaforos e como ocorre com muitas vítimas, culpa sua filha pelos abusos sexuais sofridos pelo pai, como se ela tivesse provocado ou estimulado o abusador para tal ato, agindo com total negligência com relação às violências perpetradas pelo pai.
A sociedade na qual vivia, tanto na escola, como os seus professores, colegas, diretores, não se importavam com o porquê de Preciosa ser introspectiva, distante. Contudo, um detalhe perdido no quesito de não buscar saber os motivos que geraram esse comportamento de isolamento em Preciosa, é o que recorrentemente acontece com as vítimas de violência sexual.
Igualmente, é a postura da sociedade com relação a essas situações. Na qual se coloca, na maioria das vezes, de forma omissa, como a mãe da jovem no filme, com conceitos pré-impostos que primeiro julga para posteriormente ajudar. Em muitos casos ocorre porque o Estado não garante a segurança devida para que a vítima se sinta à vontade para denunciar os tipos de violência, tanto contra mulher e contra a criança e o adolescente condicionado também ao medo da retaliação do agressor.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Exsurge clara e insofismável que o tema tratado não se dar por concluído apenas no texto legal e na punição cabível. A sociedade que já tem perpetrado em seu DNA histórico-cultural ideologias tendenciosas ao segregamento seja étnico, cultural, sexual, social, necessita vislumbrar que ao passo em que se evolui uma geração, certamente evolui seus anseios e a premência de buscar inconstantemente o bem social.
Ora, não se trata de conquistar um mundo utópico, mas que desenvolva no seio da sociedade práticas que corroborem com a racionalidade humana e a execução da justiça conforme a lei, já que nada adianta punir o criminoso e marginalizar a vítima. O papel do Estado é decisivo tão quanto à ação individual de cada sujeito, vez que quando se tem articulações do judiciário para reprimir esses crimes, políticas públicas para conscientizar, quebrar o silencio e fazer ser conhecido esse delito, a população por sua vez precisa se abster de práticas arcaicas, desumanas e retrógradas.
O preconceito e a culpabilização da vítima não explica o estupro, apenas troca o opressor de lugar com a pessoa violada sexualmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bourdieu, P. (1999). A dominação masculina (M. H. Kühner, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des) conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DANIELA CARASCO (Brasil). Culpa e vergonha: Vítimas de estupro acham que não acontece com mais ninguém, diz especialista: Individualizar e internalizar o trauma de uma violência sexual pode afetar o emocional das vítimas de maneira crônica. Por isso a importância do tratamento e do acolhimento adequado. A luta também ajuda a superar, acrescenta psicóloga ouvida pela Marie Claire. 2016. Marie Claire. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2016/06/culpa-e-vergonha-vitimas-de-estupro-acham-que-nao-acontece-com-mais-ninguem-diz-especialista.html. Acesso em: 08 mar. 2020.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PðBLICA, 19837364., 2019, [s.i]. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. [s.i]: Seepix Dlippi, 2019. 218 p. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/03/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf. Acesso em: 08 mar. 2020.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 1988.
GILBERTO COSTA (Brasília). Estupro bate recorde e maioria das vítimas é de meninas até 13 anos: Anuário de Segurança Pública aponta aumenta de feminicídio. 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-09/estupro-bate-recorde-e-maioria-das-vitimas-sao-meninas-de-ate-13-anos. Acesso em: 08 mar. 2020.
MENEZES, Cynara. A cultura do estupro não só existe como está em nosso DNA enquanto nação: nossa nação foi engendrada sob o signo do estupro cotidiano, corriqueiro e impune de indígenas e africanas. Nossa nação foi engendrada sob o signo do estupro cotidiano, corriqueiro e impune de indígenas e africanas. 2016. Disponível em: https://www.socialistamorena.com.br/cultura-do-estupro-no-brasil-em-nosso-dna/. Acesso em: 08 mar. 2020.
MOTTIER, Véronique. Sexuality a very short introduction. New York: Oxford university press, 2008.
Oliveira, E. N. (2007). Pancada de amor dói e adoece: violência física contra mulheres. Sobral, CE: Edições da Universidade Estadual Vale do Acaraú
Saffioti, H. J. B. (2004). Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
SILVA, Vânia dos Santos. Patriarcado e a cultura do estupro no Brasil. 2017. Disponível em: https://diplomatique.org.br/cultura-do-estupro-no-brasil/. Acesso em: 08 mar. 2020.
Teles, M. A. & Melo, M. (2003). O que é violência contra a mulher (Coleção Primeiros Passos, 314). São Paulo: Brasiliense.
ANEXO
É fácil apontar o dedo
É fácil julgar sem saber
É fácil dizer de quem é o erro
Mas é muito difícil viver no silêncio e continuar a sofrer
A pele preta que não tem voz
Ainda mais sendo de uma mulher
Mas quem acredita que seu protetor é seu algoz
Que dentro de casa chora sem ter nada além da sua fé
É difícil ter o corpo que não pediu
É difícil ter as curvas que não queria
Desesperar-se todas as noites pelo mal que todos os dias a corrompia
Animais insaciáveis que se deleitam com o desespero
Pedir socorro a quem ? Ser culpada é o seu pior medo
Mas ela não tem culpa
Quando o monstro que paga as contas
A puxa pelos cabelos a segura com força e a estupra
O desejo carnal não justifica
O álcool no sangue tabém não
Uma criança de saia os excita
Desejo que essa maldita raça entre em extinção
Pedir socorro a quem ?
Já vi mãe sentir ciúmes da própria filha
O que fazer nesse pesadelo ?
De lado nenhum ajuda vem
É como um sufoco eterno onde algumas
Se canção do amargor dessa triste vida
O trauma que prevalece na mente de quem não desistiu de lutar
É no mesmo nível da sua raiva
Tenha fé um dia tudo isso irá passar
E o fim dele será a penitencia eterna em brasa
Toda mulher é única como o brilho de uma joia
E se ficou curioso sobre o sofrimento de uma mulher
Assista ao filme Preciosa
POESIA AUTORAL:
POETA MAVERICK