1. INTRODUÇÃO
A relação entre língua e coletividade como forma poder vem desde os primórdios da humanidade quando o ser humano percebe que a melhor forma de sobrevivência é ele se comunicando em seu grupo. A língua sobre-excede a sistemática que representa a constituição de palavras e regras que quando combinadas em frases ou orações torna-se o principal meio de comunicação de uma comunidade linguística, seja ela falada ou escrita. A linguística como ciência afirma que a língua tem uma natureza social, política e psíquica; e no momento que agregamos esse poder que a língua transpassa e o inserimos num convívio social, ou seja, a sociedade necessita regulamentações para gerir ou prevenir os conflitos nas diferentes esferas dos ordenamentos sociais.
No desenvolver entre as relações da humanidade houveram alguns fenômenos históricos que envolveram a língua em conflitos plurilíngues que geraram alguns desfechos sociais, entre eles veremos: a narrativa judaica contida no livro do Pentateuco (Torá)[3] e a relação entre homens:
Houve um tempo em que todos os habitantes do mundo falavam a mesma língua e usavam as mesmas palavras. Ao migrarem do Leste, encontraram uma planície na terra da Babilônia, onde se estabeleceram. Começaram a dizer uns aos outros: “Venham, vamos fazer tijolos e endurecê-los no fogo”. Naquela região, era costume usar tijolos em vez de pedras, e betume em vez de argamassa. Depois, disseram: “Venham, vamos construir uma cidade com uma torre que chegue até o céu. Assim, ficaremos famosos e não seremos espalhados pelo mundo”. O Senhor, porém, desceu para ver a cidade e a torre que estavam construindo. “Vejam!”, disse o Senhor. “Todos se uniram e falam a mesma língua. Se isto é o começo do que fazem, nada do que se propuserem a fazer daqui em diante lhes será impossível. Venham, vamos descer e confundi-los com línguas diferentes, para que não consigam mais entender uns aos outros.” Assim, o Senhor os espalhou pelo mundo inteiro, e eles pararam de construir a cidade. Ela recebeu o nome de Babel, pois ali o Senhor confundiu as pessoas com línguas diferentes e as espalhou pelo mundo. (Torá, Gêneses, 2020, cap. 11).
A narrativa religiosa judaica mostra o plurilinguismo como um castigo divino e os primeiros conflitos linguísticos até então registrados pelo homem, também uma perspectiva do uso da língua numa relação de poder político e social. No segundo fenômeno histórico temos as Guerras Médicas[4], veremos a narrativa do historiador grego Heródoto:
Entre os laços que união os gregos contra os povos bárbaros estava o fato de todos terem o mesmo sangue e a mesma língua. (Heródoto).
Heródoto foi de fundamental importância, pois ele conseguiu identificar que a língua e os laços sanguíneos uniram os povos gregos contra um inimigo comum dando notoriedade bélica e materialidade política.
As conquistas romanas em suas expansões territoriais temos a aplicabilidade da língua latina como imposição de uma linguística politica aos povos dominados e suas fronteiras com esses métodos se estenderam de forma imensurável, todavia, tanto com os povos gregos quanto com os povos romanos a linguística política os gerou inúmeros conflitos com os povos dominados pois, os povos chamados de bárbaros tinham sua língua, cultura e organização social.
O fenômeno histórico mais recente está ligado diretamente com o fortalecimento dos Direitos Humanos ainda na primeira metade do século XX, com esse fortalecimento os Direitos Linguístico elevam-se a mesma categoria de Direitos Humanos que trás para dentro do ordenamento jurídico brasileiro algumas reflexões sobre a temática dos direitos dos povos minoritários, direito das línguas e suas bases Constitucionais.
2. AS ORIGENS DOS DIREITOS LINGUÍSTICOS
As origens dos Direitos Linguísticos quanto estudos sociais podemos classificar em três categorias ou momentos distintos: a Protoposivada, a Positivada e a Pós-Positivada. Essas categorias estão ligadas aos processos históricos que influenciaram a evolução do ser humano quanto ser social e suas relações de poder e política nos âmbitos internacionais, nacionais e locais, a Sociolinguística e as Ciências Jurídicas se incumbem de estudar estes fenômenos entre língua e normas constitucionais.
2.1. A PROTOPOSITIVAÇÃO DOS DIREITOS LINGUÍSTICOS
A Protopositivação dos Direitos Linguísticos remete ao período que o ser humano está formando as concepções de valores para viver num ambiente harmônico e favorável, neste período não se tinha nada escrito, nem indícios de positivação (legalização) de como se relacionar com novas sociedades que também estavam deixando a vida nômade para fixar os primeiros modelos de cidades que conhecemos, todavia, já tinha suas primeiras diversidades a serem vencidas como a língua, cultura, religião, politica e acumulo de riquezas; as ideias de normas para tratar os povos que vinham agregando-se ainda era conceitos abstratos, só eram vinculantes de forma subjetiva.
Quando pensamos no ser humano e no uso língua como ferramenta de comunicação é automático associar que o homem está inserido em um meio social com suas multiformes de cooperação social e a comunicação durante alguns milênios foi a principal ferramenta para sobrevivência do homem em seus agrupamentos usou para avisar uns ao outro do perigo que se aproximava podendo ser perigo de predadores como de outros povos inimigos se aproximando.
Este também é o posicionamento do historiador Yuval Noah Harari:
De acordo com essa teoria, o Homo sapiens é antes de mais nada um animal social. A cooperação social é essencial para a sobrevivência e a reprodução. (HARARI, 2020, pag. 36).
O crescimento dos agrupamentos humanos com um vínculo também familiar sobre o globo terrestre, Yuval Harari[5] (2020), denomina esses laços de cooperação social, que quando alcançados outros agrupamentos humanos são compartilhadas então, outras línguas, outras culturas, outras realidades geográficas eles estão formando uma rede de interação entre si, tendo momentos pacíficos, mas, momentos conflitantes quando ultrapassa interesses comuns, contudo, quando há cooperam entre povos distintos nasce um novo produto, ou seja, uma consciência reflexiva, uma partícula dialetal linguística, uma apropriação da cultura de outrem, ou até mesmo unificação nacional e normas políticas são estabelecidas pelos governantes.
Com o fortalecimento dos grupos familiares se unindo a outros pequenos grupos de famílias que cooperavam para o acumulo riquezas eles se distinguiram dos demais e tornaram cidades, contudo, neste período já não tinha mais uma vida nômade, mas compartilhavam um interesse comum.
Na antiguidade clássica, Heródoto, narra as Guerras Médicas onde os gregos lutaram unidos contra a invasão dos Persas, pois, de forma clara a língua e os laços de sangue foi o marco histórico principal que uniu estes povos para cooperarem num mesmo proposito proteger suas Cidades-Estados[6].
Conforme Heródoto:
"Se nos oferecessem todo o ouro do mundo, ou a terra mais bela e fértil que se possa imaginar, nunca estaríamos dispostos a juntar-nos ao nosso inimigo comum e participar da escravidão da Grécia (...) há a nossa herança grega, os laços de sangue e idioma, nossos altares sagrados e nosso modo de vida comum, e trair tudo isso não ficaria bem para Atenas... enquanto sobreviver um único ateniense, não haverá acordo com Xerxes" (Heródoto, VIII – 144).
As Guerras Médicas mobilizaram de forma solidaria os gregos, que neste período já tinham a percepção de identidade cultural. As guerras contra os persas fortaleceram o uso da língua, a percepção de identidade nacional e preveniu outras formas de segregação, até mesmo havendo conflitos interno entre os próprios gregos nunca deixou negar que sua língua, filosofia social e cultura era maior que seus inimigos externos, na sociedade grega a guerra sempre foi um divisor de águas que faziam homens livres e homens escravos. Estamos diante da construção da etnicidade grega através da língua e da sanguinidade e esses registros narrados ganham força somente no século V d.C.
O Império Romano (27 a.C. – 476 d.C.), por sua vez usou sua língua como artificio bélico, em todas suas investidas militares ampliaram suas terras e propagaram sua língua por onde passaram, as expansões por diversas regiões do mundo antigo tornaram o Império Romano, uma das maiores civilizações do mundo e tal crescimento levou a adotar uma moeda comum, uma generalização do Direito Romano, criação de novas estradas, adoção do Latim como Língua-Mater[7].
Quanto mais os agrupamentos humanos cresciam até chegar ao patamar de nação Soberana e buscavam novas conquistas territoriais agregando outros povos com línguas, costumes e culturas diferentes iniciava então os conflitos linguísticos e etnoculturais. O Império Romano adotou a política de um Estado monolíngue e monocultural, mas esqueceu que como os gregos tinham um conceito de laços comum que faziam cooperar entre si, muitos povos bárbaros também compartilhavam desta ideia grega.
Mesmo não havendo normas positivadas (legalizadas) sobre as questões linguísticas, já havia um entendimento que a língua está ligada a identidade social dentro de diversas civilizações e crenças religiosas; e seu uso como poder político e bélico.
2.2. A POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS LINGUISTICOS
A Positivação dos Direitos Linguísticos, seus primeiros registros apontam para fim da segunda guerra mundial, as nações se encontram abaladas com a recente barbárie da guerra, agora, inicia uma corrida para garantir um futuro onde os seres humanos gozem de um mundo de paz alicerçados por ideologias e não pela força da guerra. Então é elaborada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.
A Declaração de 1948, salvaguarda, os direitos básicos do homem como a vida, sua dignidade, a liberdade, acesso à educação, saúde e ao trabalho de forma honesta. Os Direitos da língua vão nortear a partir deste marco histórico as discussões referentes aos direitos humanos, e a língua esta ligada diretamente a cultura e identidade pertencente ao ser humano.
No entendimento de Ricardo Nascimento Abreu:
Por ser uma resolução da Organização das Nações Unidas, e não um tratado internacional, a Declaração Internacional dos Direitos Humanos não possui força vinculante em relação à comunidade internacional. No entanto, a DUDH é vista como matriz da gênese de um conjunto de tratados, pactos e conversões internacionais que se ocupam de diversas temáticas afeitas aos direitos humanos, sendo capaz também de promover diretamente a positivação de suas normas no direito interno da maioria dos países do globo terrestre (ABREU, 2015, pag. 170).
A Declaração de 1948, abriu novos caminhos para se discutir a elaboração de novas Constituições, tratados e pactos que garantirão ao homem uma vida mais digna e mais igualitária, contudo, nos anos seguintes novos instrumentos normativos vêm surgindo e o Direito Linguístico das pessoas pertencentes a grupos de minorias avançam.
Contido no Art. 27 do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos:
Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas de ter, conjuntamente, com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.
Em abril de 1992, entra em vigor no Brasil o Decreto nº 592/92, é aprovado pelo Congresso Nacional, o texto do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos. O Brasil pela primeira vez reconhece que há minorias linguísticas em seu território após a criação da Constituição Federal de 1988. Contudo, no Brasil, o Direito Linguístico discorre de forma tardia trazendo divergências doutrinarias por sua natureza interdisciplinar.
2.3. A PÓS-POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS LINGUÍSTICOS
A Pós-Positivação dos Direitos Linguísticos ganha notoriedade na década de 1990, como a adoção doutrinaria do pós-positivismo jurídico possibilitando estabelecer uma relação com o direito, a ética e a moral. Operadores do direito conseguem ver que não é satisfatório concluir uma ação apenas analisando a letra da lei, inicia a busca pela materialização dos valores e regras pensando na dignidade da pessoa humana.
Barroso 2014, a doutrina pós-positivista se inspira na valorização da razão pratica e na legitimação da democracia. E necessário empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafisicas.
No caso do Brasil, o seu ordenamento jurídico com o novo texto da Constituição Federal de 1988, sofre com algumas lacunas no entendimento plurilíngue ou até mesmo situações controversas e ao tentar entender o que levou a esta ausência de normas nos remete ao passado quando o marques do Pombal institui reformas pedagógicas e um Estado monolíngue.
Tânia Xucuru-Kariri:
Em 17 de agosto de 1758, a língua portuguesa se tornou idioma oficial do Brasil, através de um decreto do marquês de Pombal que proíbe o uso de todas as línguas indígenas e da língua geral[8]. Pombal ainda proibiu os nomes maternos e sendo obrigados a trocar por nomes portugueses (Xucuru-Kariri, 2010)
O mito do Estado monolíngue e da unidade linguística se sobrepôs ao tempo e foi recepcionada anos depois pela Constituição Federal de 1988, mesmo com território nacional com aproximadamente 260 línguas faladas sendo entre elas mais de 180 línguas indígenas formando um paradoxo. A maioria das línguas faladas no Brasil é indígena e em números de habitantes contabilizando todas as etnias é minoria absoluta 897 mil indígenas no Brasil.
Indício de controversa da CF88 está no Art. 13:
A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil (Brasil, grifo nosso).
Essa nova onda renovatória do entendimento jurídico pós-positivista sobre as normas, valores e o fato em trânsito sendo analisado a luz da ética e da moral dá caminhos novos entendimentos aos casos discriminatórios, ou seja, quando se comete um ato de preconceito linguístico.
No caso Art. 3º que prever um cunho de igualdade entre os cidadãos natos ou estrangeiros em solo brasileiro.
Vejamos o Art 3º:
IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF 88, grifo nosso).
No entendimento da leitura do paragrafo IV da CF 88, deixa-se ao entendimento do operador do direito aplicar a discriminação linguística como está aberta a possibilidade do dispositivo a ser interpretado caso haja um conflito e a lei precise ser aplicada.
No século XXI, inicia um período onde a busca por garantias dos direitos coletivos daqueles grupos que passaram a ser de minoria nacional possam ter sua dignidade e qualidade de vida asseguradas, por isso, a pós-positivação dos Direitos Linguísticos busca interpretar as leis a luz da ética e da moral, deixando de lado o pensamento positivista que visava apenas a letra da lei.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na História da humanidade sempre houve uma relação de poder entre a língua e as relações humanas, a língua foi uma ferramenta na evolução e na sobrevivência da espécie. Os estudos relacionados a língua e as normas jurídicas que a estabelecem-na como poder normativo em diversas civilizações ainda são tardios, todavia, na segunda metade do século XX, percebemos um interesse significativo pela temática por diversos pesquisadores.
Após a segunda guerra mundial, inicia uma corrida para formação de Constituições onde vimos apenas uma língua como oficial e poucos casos de países com mais de um idioma oficial; a ideia de um estado monolíngue pode preservar a unidade identitária do país tornando-o mais homogêneo, contudo, há um apagamento dos grupos pertencentes a minorias étnicas e linguísticas.
O Direito Linguístico dentro do ordenamento jurídico brasileiro ainda é visto dentro dos hard cases[9] equiparados aos casos de poliamor, união homoafetiva, aborto acefálico, células tronco. Um país plurilíngue como o Brasil necessita de políticas linguísticas que atinjam as comunidades em um todo, as ondas renovatórias pós-positivistas estão humanizando as decisões das jurisprudências tentando preencher as lacunas e controversas contidas na Constituição Federal de 1988, já que, a sociedade evolui mais rápido do que as leis que já foram estabelecidas por muitas vezes em um período que a sociedade tinha outro formato.
O Direito Linguístico compartilha varias naturezas podendo ser encontrado no Direito Civil, Direito Internacional, Direito Penal, Direito Constitucional, etc. cabendo ao pesquisador encontrar caminhos para trazer a explicação que por muitas vezes está ausente.
Referências
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ESQUILO. Prometeu acorrentado. Trad. Mario da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993.
CALVET, Louis-Jean. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola, 2007.
FREIRE, José Ribamar Bessa; ROSA, Maria Carlota. Línguas gerais: política linguística e catequese na América do Sul no período colonial. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2003.
GALVES, Charlotte; GARMES, Helder; RIBEIRO, Fernando Rosa. África-Brasil: caminhos da língua portuguesa. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009.
GUERRA, Sidney. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Atlas, 2012.
________. Direitos humanos: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2013.
________. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o controle de convencionalidade. São Paulo: Atlas, 2013.
HERÓDOTO, História. trad. de Mário da gama Kury. Brasília: Ed. Universidade de Brasília. 1998.
HESÍODO. Teogonia. Trad. João Torrano. 3º ed. São Paulo: Ed. Iluminuras, 1995.
HOMÉRE. Iliade, Paris: société d’édition, 1965. HOMÉRE. A Odisséia, Paris: société d’édition, 1965.
LAGARES, Xoán Carlos; BAGNO, Marcos (Orgs). Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola, 2011.
Notas
[3] É uma expressão grega que significa “cinco rolos” ou livros. Compreende também na Bíblia Sagrada do cristianismo, os cincos primeiros livros do Antigo Testamento.
[4] Termo histórico derivados de medos, um dos povos que habitavam a Pérsia e formaram o Império Persa.
[5] Especializou-se primeiro em História medieval e História militar, antes de completar seu doutorado no Jesus College, Universidade de Oxford, em 2002.
[6] Eram cidades independentes que desenvolveram seu governo próprio, suas leis, seu calendário, sua moeda. Em grego também chamada de “polis”.
[7] Língua imposta para todos os povos dominados.
[8] Língua falada no Brasil entre o final do século XVII e início do século XIX.
[9] Vem da doutrina americana podendo ser entendido como “casos difíceis”.