O órgão público como titular de marca registrada

28/04/2022 às 09:52
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RESUMO

O registro de marca por órgãos públicos é um tema ainda pouco comentado ou pensado dentro dos estudos da Propriedade Industrial, bem como pelo Direito Administrativo. Contudo, este é um assunto de relevância já que há interesse público no registro de nomes e símbolos da administração pública. Inclusive, foi o que demonstrou o Conselho Nacional de Justiça CNJ ao protocolar pedidos de registro de sua marca em diversas classes.

Cada vez mais se faz necessário pensar sobre o tema não apenas sob a ótica do pedido de registro em si, mas também em como utilizar esse registro em favor da coletividade. E é justamente a isso que propõe o presente artigo: lançar luz sobre a importância do registro de marca por órgãos públicos.

Palavras-chaves: órgão público, administração pública direta, marca registrada, interesse público, INPI.

1) INTRODUÇÃO

No cenário de administração pública digital e de demandas da sociedade por desenvolvimento econômico, sustentabilidade e qualidade de vida - que se tornaram ainda mais urgentes pela pandemia de COVID-19 -, inúmeras são as iniciativas governamentais criadas e disponibilizadas cujo tratamento distintivo proporcionado pelo registro de marca é de interesse público.

Diante disso, defende-se que os órgãos públicos deveriam realizar os registros de suas marcas e das marcas de seus projetos e atividades.

Com efeito, o artigo 124, inciso IV, da Lei 9.279/1996 proíbe o registro de marca que represente designação ou sigla de entidade ou órgão público, quando não requerido o registro pela própria entidade ou órgão, o que já garante proteção legal para tais signos.

Contudo, o registro é conveniente e até mesmo necessário para evitar que particulares se apropriem do signo criado para atender a coletividade, uma vez que seria inviável aos servidores do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) conhecerem os nomes de todos os órgãos e programas públicos existentes em um país continental como o Brasil.

E é justamente sobre essa questão que o presente trabalho pretende lançar luz, abordando sobre a legitimidade dos órgãos públicos para requerer o registro de marca e sobre a importância desse registro até como forma de resguardar o interesse social envolvido em uma marca criada para desenvolvimento coletivo.

2) DA LEGITIMIDADE DO ÓRGÃO PÚBLICO PARA O REQUERIMENTO DO REGISTRO DE MARCA

Tradicionalmente, quando se fala em marca registrada, pensa-se nos direitos empresariais e patrimoniais envolvidos, havendo uma forte vinculação entre marca e a distinção de produtos ou serviços de empresas. Inclusive, sob a ótica da propaganda, a marca tem a finalidade de incitar ao consumo ou valorizar a atividade empresarial do titular[2].

Entretanto, a marca também pode ser associada com atividades não empresariais.

Segundo a lei brasileira, marca é todo sinal distintivo, visualmente perceptível, não compreendido nas proibições legais (art. 122, da Lei 9.279/1996), sendo certo que não há vedação ao registro de marca por órgãos públicos.

Ao contrário, o legislador dispôs expressamente no artigo 124, incisos IV e XIII, e no artigo 128 sobre a possibilidade de o requerimento de registro de marca ser realizado por pessoa jurídica de direito público.

Inclusive, os órgãos públicos possuem desconto nas retribuições cobradas pelo INPI, assim como pessoas físicas, associações sem fins lucrativos e pequenas empresas.

Ademais, conforme registrado por Pedro Marcos Nunes Barbosa e Walter Godoy dos Santos no artigo Partido políticos e conflitos de marcas para o site Jota[3], órgãos despersonalizados da administração pública direta também podem requerer seus pedidos de marca, como é o recente caso do Conselho Nacional de Justiça CNJ (ex: pedido n.º 923780246).

3) DA IMPORTÂNCIA DO REGISTRO DA MARCA POR ÓRGÃOS PÚBLICOS

Confirmada a legitimidade dos órgãos públicos, a pergunta que surge é: seria conveniente para Administração Pública registrar como marca os nomes de seus programas ou ferramentas, ao menos os de maior impacto social?

A resposta é direta: é conveniente e até mesmo necessário.

Conveniente, porque a marca registrada pode ser utilizada para estimular o desenvolvimento local, beneficiando economia e turismo, por exemplo.

Necessário, quando se considera que evitará que particulares se apropriem ou se aproveitem do signo criado, já que a inserção da marca na base de dados do INPI permite que seus examinadores tenham condições de negar eventual pedido de registro de marca igual ou semelhante formulado por particular.

Inclusive, o exposto por Paulo Armando Innocente de Souza e Rafael Marques Rocha no artigo A proteção aos nomes e símbolos de eventos oficialmente reconhecidos se enquadra perfeitamente também para a proteção de nomes e símbolos dos órgãos públicos:

O magnetismo comercial exercido pelos elementos identificadores desses megaeventos é provado, inclusive, com o surgimento de problemas que não apenas o de pedidos ou usos indevidos de marcas, símbolos ou nomes próprios destes. Trata-se da prática de ambush marketing, ou marketing de emboscada, em que um particular, sem copiar ou imitar o nome ou símbolos do evento, busca estabelecer uma associação com o aludido evento junto ao consumidor, seja em campanhas publicitárias ou em intrusão no próprio evento, de forma a captar clientela já fidelizada pela sua realização, em aproveitamento parasitário. Tal conduta não é permitida, pois além das vedações legais específicas, há também o fato de que o particular que se utiliza deste expediente não realizou investimentos para associar sua marca ao evento, ao contrário de patrocinadores oficiais, que envidaram esforços financeiros que, inclusive, ajudam a alavancar a organização e a realizar e ter sucesso com o evento[4].

Assim, está presente o interesse público necessário no agir da Administração Pública enquanto sujeito de direitos e obrigações, já que este princípio se relaciona com a necessidade de satisfação de pautas coletivas por meio do desempenho de atividades administrativas, inclusive relacionadas ao patrimônio público.

Por consequência, e considerando também os princípios da publicidade e da eficiência, o registro da marca de serviço ou programa público teria como objetivo aumentar a sua proteção fática, concedendo maior distintividade em relação a serviços semelhantes prestados por particulares e, por que não, gerar patrimônio para o Erário Público.

É claro que, nesse caso, a marca não exerceria a função comercial existente nas marcas empresariais, mas ainda manteria as funções de identificação, distintiva, de associação ao nível de qualidade, social e até mesmo econômica, sob a ótica do desenvolvimento social.

De acordo com Pedro Marcos Nunes Barbosa e Walter Godoy dos Santos, o exercício de atividade empresária é irrelevante para a concessão do registro, visto que a única exigência da Lei é que o signo distintivo seja empregado efetiva e licitamente (art. 128, da Lei 9.279/96)[5].

4) CASOS PRÁTICOS

É interessante mencionar alguns casos que demonstram as possibilidades criadas pelo registro de marca em favor do poder público e, por outro lado, os problemas que podem surgir da inércia das autoridades competentes e do desconhecimento sobre o tema no âmbito da administração pública.

4.1 A marca registrada NATAL LUZ GRAMADO:

A marca Natal Luz Gramado é registrada pela Prefeitura Municipal de Gramado, RS, NCL(9)41, para atividades relativas, em resumo, a organização de eventos e espetáculos (processos n.º 903319098 e 904046621).

Quem já teve a oportunidade de estar na cidade durante o Natal Luz de Gramado consegue entender bem a força dessa marca. Ela envolve inúmeros patrocinadores e mobiliza o turismo nacional e internacional, gerando relevantes investimentos na cidade.

O Natal Luz de Gramado é reconhecido nacionalmente e, apesar de outros municípios utilizarem a expressão Natal Luz, inclusive em outras marcas registradas, ela já está associada aos eventos promovidos na cidade de Gramado/RS.

4.2 A marca registrada CANELA PAIXÃO NATURAL:

O município de Canela/RS, vizinho a Gramado, também está protegendo sua marca Canela Paixão Natural. Repleta de belezas naturais, a cidade está investindo no turismo natural e de aventura e já obteve êxito no registro da marca nas classes 03, 18, 21, 25 e 35, todas voltadas para fabricação e comercio de produtos locais (processos 920964745, 920964559, 920964516, 920964435, 920964400), fomentando a sua economia.

4.3 A marca registrada SOU + SÃO CHICO:

A Prefeitura de São Francisco do Sul/SC, também providenciou o registro da marca criada para valorização da cidade e potencialização do sentimento de pertencimento da população Sou + São Chico (processos 918600880 e 918601002).

De acordo com informações divulgadas pela própria Prefeitura em seu site[6], o Município publicou uma chamada pública de credenciamento para licença de uso da marca (Edital 002/2020[7]), o que permitiria que interessados comercializassem produtos com o signo. Contudo, o Edital foi anulado[8], o que pressupõe a existência de algum vício insanável ou ilegalidade no ato.

Com efeito, o instituto do chamamento público é o procedimento que tem por objetivo selecionar organização da sociedade civil (entidades privadas sem fins lucrativos) para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, envolvendo ou não transferências de recursos.

A utilização desse instituto para o licenciamento da marca da administração pública pode ser uma ferramenta interessante para promover o desenvolvimento através das organizações da sociedade civil.

Por outro lado, o credenciamento, previsto expressamente pela Nova Lei de Licitações (artigo 6º, XLIII da Lei 14.133/2021) é o processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados.

No caso do credenciamento para utilização da marca pública, o objeto poderia ser a promoção e divulgação do signo registrado através de parâmetros fixados pela própria administração pública, inclusive com a comercialização de produtos.

4.4 A marca CAMPINA GRANDE O MAIOR SÃO JOÃO DO MUNDO

O município de Campina Grande/PB, por outro lado, não registrou a marca dos festejos de São João que realiza.

Considerado o maior São João do mundo, o evento movimenta o turismo e injeta, aproximadamente, 175 milhões de reais na economia do Município de acordo com o site Paraíba Debate[9].

Contudo, a empresa que realiza o evento em parceria com o Município desde 2019 decidiu registrar a marca, que foi concedida pelo INPI no processo 919561284, o que surpreendeu a Prefeitura[10]. Diante da polêmica gerada, a empresa desistiu do pedido e a Prefeitura protocolou novo pedido de registro para a marca São João de Campina Grande (processo 923903135).

4.5 A marca EU AMO CAMPOS DO JORDÃO

A marca Eu Amo Campos do Jordão, com o símbolo do coração substituindo a palavra amo, foi registrada por um particular e gerou até disputa com uma empresa do Município de Campos do Jordão/SP.

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De acordo com a matéria divulgada pelo UOL[11], a titular da marca deseja regulamentar o uso do signo registrado e notificou um empresário da cidade turística que utilizava um letreiro com a frase.

O que surpreende neste caso é que, de acordo com a matéria, a Prefeitura de Campos do Jordão preferiu não se manifestar sobre o assunto alegando que se trata de um processo judicial que não envolve o poder público, o que demonstra total desinteresse ou desconhecimento dos gestores públicos locais sobre o tema, já que o particular poderia tentar obstar o uso da expressão registrada pelo próprio Município.

5) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, é inegável que a Administração Pública deve prestigiar o registro de suas marcas.

Como legitimado para realizar o requerimento de registro, o órgão público, através de seus gestores, deve realizá-lo, garantindo proteção marcária para seus nomes e símbolos e, por consequência, gerando confiabilidade e evitando que particulares se apropriem ou se aproveitem dos signos públicos, já que a proteção legal disposta pelo artigo 124, da Lei 9.279/1996 não é suficiente, conforme demonstrado anteriormente, para prestigiar o interesse público envolvido.

6) REFERÊNCIAS

BARBOSA, Pedro Marcos Nunes; SANTOS JÚNIOR, Walter Godoy dos. Partidos políticos e conflitos de marcas. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/partidos-politicos-e-conflitos-de-marcas-08092021#_ftn5>. Acesso em 21 de fevereiro de 2022.

BORGES, Renato Campolino. O conceito de marca e sua relação com a administração pública. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/61303/o-conceito-de-marca-e-sua-relacao-com-a-administracao-publica>. Acesso em 21 de fevereiro de 2022.

BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Segunda Edição Revista e Atualizada. Disponível em <https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/introducao_pi.pdf>. Acesso em 26/02/2022.

BRASIL. Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.

DA SILVA, Américo Luís Martins. Registro Público da Atividade Empresarial Volume 2: Registro Público da Propriedade Industrial. 2ª Edição Revista e Atualizada. Editora Forense.

DE SOUZA, Paulo Armando Innocente; ROCHA, Rafael Marques. A proteção aos nomes e símbolos de eventos oficialmente reconhecidos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-18/opiniao-protecao-aos-nomes-simbolos-eventos-oficiais. Acesso em 21 de fevereiro de 2022.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9. Ed.,- Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021.

Prefeitura providencia registro da marca Sou + São Chico. Disponível em: <https://www.saofranciscodosul.sc.gov.br/noticia/7079/prefeitura-providencia-registro-da-marca-sou-sao-chico>.Acesso em 21 de fevereiro de 2022.

  1. .........

  2. BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Segunda Edição Revista e Atualizada. Disponível em <https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/introducao_pi.pdf>. Acesso em 26/02/2022. Página 698.

  3. BARBOSA, Pedro Marcos Nunes; SANTOS JÚNIOR, Walter Godoy dos. Partidos políticos e conflitos de marcas. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/partidos-politicos-e-conflitos-de-marcas-08092021#_ftn5>. Acesso em 21 de fevereiro de 2022.

  4. DE SOUZA, Paulo Armando Innocente; ROCHA, Rafael Marques. A proteção aos nomes e símbolos de eventos oficialmente reconhecidos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-18/opiniao-protecao-aos-nomes-simbolos-eventos-oficiais. Acesso em 21 de fevereiro de 2022.

  5. BARBOSA, Pedro Marcos Nunes; SANTOS JÚNIOR, Walter Godoy dos. Partidos políticos e conflitos de marcas. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/partidos-politicos-e-conflitos-de-marcas-08092021#_ftn5>. Acesso em 21 de fevereiro de 2022.

  6. Disponível em https://www.saofranciscodosul.sc.gov.br/noticia/7079/prefeitura-providencia-registro-da-marca-sou-sao-chico. Acesso em 28/02/2022.

  7. Disponível em https://www.saofranciscodosul.sc.gov.br/editais-arquivos?edital=3591. Acesso em 28/01/2022.

  8. Disponível em https://www.saofranciscodosul.sc.gov.br/editais-arquivos?edital=3641. Acesso em 28/01/2022.

  9. Disponível em https://paraibadebate.com.br/2021/06/09/folha-destaca-impacto-da-nao-realizacao-do-sao-joao-de-campina-grande-com-publico-no-parque-do-povo/. Acessível em 28/02/2022.

  10. Disponível em < https://www.portalintelectual.com.br/empresa-registra-marca-com-nome-do-sao-joao-de-campina-grande-prefeitura-diz-ter-sido-pega-de-surpresa-com-acao/>. Acesso em 28/02/2022.

  11. Disponível em < https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2020/08/17/casal-alega-ser-dono-da-marca-eu-amo-campos-do-jordao-caso-vai-a-justica.htm>. Acesso em 28/02/2022.

Sobre a autora
Lívia França Silva Leon

Sou advogada com ampla experiência na administração pública, adquirida ao longo de quase 10 anos como assessora jurídica no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e como Procuradora Legislativa, cargo que ainda ocupo. Além disso, atuo na advocacia privada com propriedade intelectual no escritório França e Leon advocacia, do qual sou cofundadora.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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