RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITO GARANTIDO POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM PERTENCENTE A TERCEIRO

28/04/2022 às 10:15
Leia nesta página:

Em 05/08/2015 publiquei um pequeno texto jurídico intitulado Microrreforma da Lei de Recuperação e falência[1], salientando alguns porquês da necessidade de revisão do texto legal. Houve modificações.

O enunciado do art. 49, §3º da Lei 11.101/05 não foi alterado pela Lei 14.112/2020, como também restou mantido meu entendimento acerca do palpitante tema, não obstante sedimentada a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça e doutrina majoritária.

De fato, talvez seja bastante raro um devedor mergulhado em crise que não tenha em suas listas de credores dívidas perante instituições financeiras (alienação fiduciária[2] [3]) e débitos fiscais[4].

Com efeito, se não desconhece a importância das instituições financeiras, porquanto têm papel preponderante na economia nacional, na justa medida em que fomentam o crédito [abertura de linhas de crédito; financiamento de capital de giro e empréstimo de recursos financeiros a fim de que sejam realizados empreendimentos ou adquiridos bens duráveis para fins de desenvolvimento da atividade econômica organizada, v.g.).

Contribuem, sem dúvida, para que haja produção e circulação de bens e serviços (exato sentido econômico expresso no art. 966 do Código Civil - inspirado no art. 2082 do Código Civil Italiano[5]), de modo que sua importância é colocada em degrau superior.

O grande problema, especialmente em período de pandemia sanitária mundial (que ainda não se findou) é que a crise empresarial [ao menos no Brasil] é crônica e vem retirando várias entidades do mercado, por variados fatores, sendo insolventes.

A Lei 11.101/05, salvo melhor juízo, não contribui com a amplitude almejada para fins de soerguimento da entidade mergulhada em crise e efetivo cumprimento das diretrizes previstas em seu artigo 47.

Entrementes, esse tema poderá ser analisado em outro artigo acadêmico, no futuro.

Retornando ao presente artigo, consabido que o art. 49, §3º da Lei 11.101/05 está em vigência e há de ser interpretado de forma sistemática e teleológica.

Em linhas gerais, a lei, neste dispositivo específico, busca conferir proteção ao credor com garantia fiduciária [a denominada extraconcursalidade], mas esta garantia não é plena, sobre todo o débito objeto do contrato, como será visto a seguir.

Em primeiro lugar, consoante assentado no Recurso Especial n. 1.933.995-SP[6], relatoria da Senhora Ministra Nancy Andrighi, o afastamento do crédito dos efeitos do processo de reestruturação judicial independe da titularidade do bem entregue em garantia fiduciária.

Dito de outro modo, de somenos importância se a coisa móvel ou o bem imóvel pertence ao próprio devedor recuperando ou a terceiro garantidor da obrigação.

De fato, a regra legal não ingressou em pormenores (e quiçá nem poderia), ou seja, não esclareceu se haverá distinção entre devedor/fiduciante ou terceiro/fiduciante, quanto a propriedade do bem entregue ao credor fiduciário.

A proteção concedida ao credor se estende a bens oferecidos por terceiros - não recuperandos -, deixando de se sujeitar ao regime recuperacional.

Em segundo, a extraconcursalidade prevista no art. 49, §3º do diploma legal de 2005 limita-se tão somente ao valor do bem dado em garantia[7], sendo que eventual saldo devedor que venha a extrapolar o limite há de ser habilitado na categoria quirografária.

Em terceiro, o art. 49, §3º da Lei 11.101/05, efetivamente não afasta a totalidade do crédito garantido com alienação fiduciária, muito embora o enunciado seja de certa forma omisso quanto a tal aspecto.

Diz o texto legal: seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais.

A interpretação hermenêutica teleológica é no sentido de que o crédito é justamente a parcela do débito garantido pelo bem, tão somente.

O Senhor Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva fez constar que:

Portanto, não parece correto concluir que o referido dispositivo legal afasta por completo dos efeitos da recuperação judicial não apenas o bem alienado fiduciariamente, mas o próprio contrato por ele garantido. Isso porque o que está fora dos efeitos da recuperação judicial não é o contrato de alienação fiduciária em garantia, mas, sim, a parcela da dívida garantida pela propriedade fiduciária. Em outras palavras, é a parcela da dívida garantida que traça os limites da extraconcursalidade do crédito[8]

Prossegue:

Diante disso, se a alienação do bem dado em garantia for suficiente para quitar o débito, extingue-se a obrigação. Por outro lado, se o valor apurado com a venda do bem não for o bastante para extinguir a obrigação, o restante do crédito em aberto não mais poderá ser exigido fora da recuperação judicial do devedor, pois não mais existirá a característica (patrimônio em separado) que diferenciava o credor titular da posição de proprietário fiduciário dos demais[9]

Portanto, no que se refere ao art. 49, §3, da Lei 11.101/05, o Superior Tribunal de Justiça vem firmando entendimento de que irrelevante a titularidade do bem alienando em garantia fiduciária.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

NOTAS

  1. Jornal Bem Paraná, 05/08/2015, p. 11. Do meu texto consta: Dificilmente uma pessoa jurídica não possui contratos bancários, onde são oferecidas numerosas garantias (alienação fiduciária, aval, penhor, hipoteca e assim por diante). Mais do que isso, é comum o uso, por parte dos bancos, da assim denominada trava bancária, isto é, a cessão fiduciária de créditos recebíveis, operação essa que tem por escopo reter os valores a que tem direito a empresa junto aos seus clientes, mas que ficam retidos junto à instituição financeira enquanto a obrigação para com ela não seja quitada. Dito de forma mais simplista, o banco, avaliados os riscos, capacidade de pagamento e custo do dinheiro, concede crédito, mas retém os recebíveis da empresa. Destarte, a regra do art. 49, §3º da Lei 11.101/05, por criar superprivilégio aos bancos, há de ser urgentemente alterada, na medida em que está contribuindo para o fracasso das recuperações judiciais e a consequente falência de muitas empresas. Não obstante os tribunais pátrios, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, venham entendendo que legal é a trava bancária, esse bloqueio de recursos (recebíveis) faz com que as operações empresariais não tenham êxito. Necessário, então, rever tais questões, a fim de prever a inclusão de tal crédito bancário no plano de recuperação, bem como que ocorra a imediata liberação de pelo menos 50% dos valores retidos pelo banco. Grifos no original.

  2. Consoante ensinamento de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, o contrato de fidúcia de origem romana traduz a ideia de um acordo de boa-fé, bilateral e gratuito, pelo qual uma pessoa - o fiduciário - recebia da outra - o fiduciante - uma coisa imóvel, mediante uma mancipatio (venda) ou um in jure cessio, assumindo a obrigação de lhe dar uma certa destinação e de restituí-la quando exigida, como a conceituou Benevides de Rezende. Garantia fiduciária: direitos e ações: manual teórico e prático com jurisprudência. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 25. Grifos no original.

  3. Ensina Pontes de Miranda: Sempre que a transmissão tem um fim que não é a transmissão mesma, de modo que ela serve a negócio jurídico que não é o de alienação àquele a quem se transmite, diz-se que há fidúcia ou negócio fiduciário. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Tomo III. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, pp. 115-116. Destaques no original.

  4. Aliás, bem pondera o jurista Carlos Henrique Abrão, ao assentar que: A sanha arrecadatória incomum provocou um sistema tributário anômalo, e a propalada reforma não encontra denominador comum do parlamento, razão pela qual o fisco, descontente com a flexibilização feita pela jurisprudência em atenção ao Decreto nº 11.101/05, não obrigatoriedade da apresentação de certidão negativa de débito tributário, partiu para uma reforma na qual todo e qualquer devedor, ao buscar a recuperação judicial, em primeiro lugar, deve se comportar para o saneamento da empresa e de seu endividamento tributário.

    O ressignificado permite concluir que o superprivilégio do Fisco, além de reduzir o número de recuperações judiciais, dados estatísticos recentes, também, paralelamente, permite o crescimento da recuperação extrajudicial e para tanto sempre existirá a possibilidade da renegociação com todo o tipo de classe de credores, porém, a figura do Fisco constitui forte embaraço para que o instituto da recuperação judicial possa firmemente irradiar seus efeitos, inclusive sob o prisma de visão da preservação da empresa e da continuidade dos negócios.

    Não andou bem o legislador, principalmente em tempo de pandemia, desaceleração da economia, diminuição do crescimento, a beira da estagflação de consolidar todo o passivo tributário, União, estados e municípios, para que o devedor propusesse um cronograma, sob pena de não fazer aprovar o plano e ficar submetido no incumprimento da obrigação tributária ao regime falimentar. Disponível: https://www.conjur.com.br/2022-mar-23/carlos-abrao-empresas-aereas-recuperacao-judicial.

    Acesso: Às 10h44min, dia 27/04/2022.

  5. Art. 2082 Imprenditore - E' imprenditore chi esercita professionalmente un'attività economica organizzata (2555, 2565) al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi (2135, 2195).

  6. STJ, 3ª Turma, julg. 25/11/2021.

  7. Não o valor total do(s) contrato(s) garantido(s) com alienação fiduciária. Haverá, eventualmente, crédito afastado da recuperação judicial - valor equivalente ao bem, cuja propriedade resolúvel foi transferida ao credor - e crédito a ela adstrito, na linha dos quirografários, decorrente do excedente da dívida.

  8. Destaques no original. Lei 9.514/1997, art. 24:

    Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:

    I - o valor do principal da dívida;

    II - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário;

    III - a taxa de juros e os encargos incidentes;

    IV - a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição;

    V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária;

    VI - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão;

    VII - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27.

  9. Conforme original.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos