Em 05/08/2015 publiquei um pequeno texto jurídico intitulado Microrreforma da Lei de Recuperação e falência[1], salientando alguns porquês da necessidade de revisão do texto legal. Houve modificações.
O enunciado do art. 49, §3º da Lei 11.101/05 não foi alterado pela Lei 14.112/2020, como também restou mantido meu entendimento acerca do palpitante tema, não obstante sedimentada a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça e doutrina majoritária.
De fato, talvez seja bastante raro um devedor mergulhado em crise que não tenha em suas listas de credores dívidas perante instituições financeiras (alienação fiduciária[2] [3]) e débitos fiscais[4].
Com efeito, se não desconhece a importância das instituições financeiras, porquanto têm papel preponderante na economia nacional, na justa medida em que fomentam o crédito [abertura de linhas de crédito; financiamento de capital de giro e empréstimo de recursos financeiros a fim de que sejam realizados empreendimentos ou adquiridos bens duráveis para fins de desenvolvimento da atividade econômica organizada, v.g.).
Contribuem, sem dúvida, para que haja produção e circulação de bens e serviços (exato sentido econômico expresso no art. 966 do Código Civil - inspirado no art. 2082 do Código Civil Italiano[5]), de modo que sua importância é colocada em degrau superior.
O grande problema, especialmente em período de pandemia sanitária mundial (que ainda não se findou) é que a crise empresarial [ao menos no Brasil] é crônica e vem retirando várias entidades do mercado, por variados fatores, sendo insolventes.
A Lei 11.101/05, salvo melhor juízo, não contribui com a amplitude almejada para fins de soerguimento da entidade mergulhada em crise e efetivo cumprimento das diretrizes previstas em seu artigo 47.
Entrementes, esse tema poderá ser analisado em outro artigo acadêmico, no futuro.
Retornando ao presente artigo, consabido que o art. 49, §3º da Lei 11.101/05 está em vigência e há de ser interpretado de forma sistemática e teleológica.
Em linhas gerais, a lei, neste dispositivo específico, busca conferir proteção ao credor com garantia fiduciária [a denominada extraconcursalidade], mas esta garantia não é plena, sobre todo o débito objeto do contrato, como será visto a seguir.
Em primeiro lugar, consoante assentado no Recurso Especial n. 1.933.995-SP[6], relatoria da Senhora Ministra Nancy Andrighi, o afastamento do crédito dos efeitos do processo de reestruturação judicial independe da titularidade do bem entregue em garantia fiduciária.
Dito de outro modo, de somenos importância se a coisa móvel ou o bem imóvel pertence ao próprio devedor recuperando ou a terceiro garantidor da obrigação.
De fato, a regra legal não ingressou em pormenores (e quiçá nem poderia), ou seja, não esclareceu se haverá distinção entre devedor/fiduciante ou terceiro/fiduciante, quanto a propriedade do bem entregue ao credor fiduciário.
A proteção concedida ao credor se estende a bens oferecidos por terceiros - não recuperandos -, deixando de se sujeitar ao regime recuperacional.
Em segundo, a extraconcursalidade prevista no art. 49, §3º do diploma legal de 2005 limita-se tão somente ao valor do bem dado em garantia[7], sendo que eventual saldo devedor que venha a extrapolar o limite há de ser habilitado na categoria quirografária.
Em terceiro, o art. 49, §3º da Lei 11.101/05, efetivamente não afasta a totalidade do crédito garantido com alienação fiduciária, muito embora o enunciado seja de certa forma omisso quanto a tal aspecto.
Diz o texto legal: seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais.
A interpretação hermenêutica teleológica é no sentido de que o crédito é justamente a parcela do débito garantido pelo bem, tão somente.
O Senhor Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva fez constar que:
Portanto, não parece correto concluir que o referido dispositivo legal afasta por completo dos efeitos da recuperação judicial não apenas o bem alienado fiduciariamente, mas o próprio contrato por ele garantido. Isso porque o que está fora dos efeitos da recuperação judicial não é o contrato de alienação fiduciária em garantia, mas, sim, a parcela da dívida garantida pela propriedade fiduciária. Em outras palavras, é a parcela da dívida garantida que traça os limites da extraconcursalidade do crédito[8]
Prossegue:
Diante disso, se a alienação do bem dado em garantia for suficiente para quitar o débito, extingue-se a obrigação. Por outro lado, se o valor apurado com a venda do bem não for o bastante para extinguir a obrigação, o restante do crédito em aberto não mais poderá ser exigido fora da recuperação judicial do devedor, pois não mais existirá a característica (patrimônio em separado) que diferenciava o credor titular da posição de proprietário fiduciário dos demais[9]
Portanto, no que se refere ao art. 49, §3, da Lei 11.101/05, o Superior Tribunal de Justiça vem firmando entendimento de que irrelevante a titularidade do bem alienando em garantia fiduciária.
NOTAS
Jornal Bem Paraná, 05/08/2015, p. 11. Do meu texto consta: Dificilmente uma pessoa jurídica não possui contratos bancários, onde são oferecidas numerosas garantias (alienação fiduciária, aval, penhor, hipoteca e assim por diante). Mais do que isso, é comum o uso, por parte dos bancos, da assim denominada trava bancária, isto é, a cessão fiduciária de créditos recebíveis, operação essa que tem por escopo reter os valores a que tem direito a empresa junto aos seus clientes, mas que ficam retidos junto à instituição financeira enquanto a obrigação para com ela não seja quitada. Dito de forma mais simplista, o banco, avaliados os riscos, capacidade de pagamento e custo do dinheiro, concede crédito, mas retém os recebíveis da empresa. Destarte, a regra do art. 49, §3º da Lei 11.101/05, por criar superprivilégio aos bancos, há de ser urgentemente alterada, na medida em que está contribuindo para o fracasso das recuperações judiciais e a consequente falência de muitas empresas. Não obstante os tribunais pátrios, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, venham entendendo que legal é a trava bancária, esse bloqueio de recursos (recebíveis) faz com que as operações empresariais não tenham êxito. Necessário, então, rever tais questões, a fim de prever a inclusão de tal crédito bancário no plano de recuperação, bem como que ocorra a imediata liberação de pelo menos 50% dos valores retidos pelo banco. Grifos no original.
Consoante ensinamento de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, o contrato de fidúcia de origem romana traduz a ideia de um acordo de boa-fé, bilateral e gratuito, pelo qual uma pessoa - o fiduciário - recebia da outra - o fiduciante - uma coisa imóvel, mediante uma mancipatio (venda) ou um in jure cessio, assumindo a obrigação de lhe dar uma certa destinação e de restituí-la quando exigida, como a conceituou Benevides de Rezende. Garantia fiduciária: direitos e ações: manual teórico e prático com jurisprudência. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 25. Grifos no original.
Ensina Pontes de Miranda: Sempre que a transmissão tem um fim que não é a transmissão mesma, de modo que ela serve a negócio jurídico que não é o de alienação àquele a quem se transmite, diz-se que há fidúcia ou negócio fiduciário. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Tomo III. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, pp. 115-116. Destaques no original.
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Aliás, bem pondera o jurista Carlos Henrique Abrão, ao assentar que: A sanha arrecadatória incomum provocou um sistema tributário anômalo, e a propalada reforma não encontra denominador comum do parlamento, razão pela qual o fisco, descontente com a flexibilização feita pela jurisprudência em atenção ao Decreto nº 11.101/05, não obrigatoriedade da apresentação de certidão negativa de débito tributário, partiu para uma reforma na qual todo e qualquer devedor, ao buscar a recuperação judicial, em primeiro lugar, deve se comportar para o saneamento da empresa e de seu endividamento tributário.
O ressignificado permite concluir que o superprivilégio do Fisco, além de reduzir o número de recuperações judiciais, dados estatísticos recentes, também, paralelamente, permite o crescimento da recuperação extrajudicial e para tanto sempre existirá a possibilidade da renegociação com todo o tipo de classe de credores, porém, a figura do Fisco constitui forte embaraço para que o instituto da recuperação judicial possa firmemente irradiar seus efeitos, inclusive sob o prisma de visão da preservação da empresa e da continuidade dos negócios.
Não andou bem o legislador, principalmente em tempo de pandemia, desaceleração da economia, diminuição do crescimento, a beira da estagflação de consolidar todo o passivo tributário, União, estados e municípios, para que o devedor propusesse um cronograma, sob pena de não fazer aprovar o plano e ficar submetido no incumprimento da obrigação tributária ao regime falimentar. Disponível: https://www.conjur.com.br/2022-mar-23/carlos-abrao-empresas-aereas-recuperacao-judicial.
Art. 2082 Imprenditore - E' imprenditore chi esercita professionalmente un'attività economica organizzata (2555, 2565) al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi (2135, 2195).
Não o valor total do(s) contrato(s) garantido(s) com alienação fiduciária. Haverá, eventualmente, crédito afastado da recuperação judicial - valor equivalente ao bem, cuja propriedade resolúvel foi transferida ao credor - e crédito a ela adstrito, na linha dos quirografários, decorrente do excedente da dívida.
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Destaques no original. Lei 9.514/1997, art. 24:
Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:
I - o valor do principal da dívida;
II - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário;
III - a taxa de juros e os encargos incidentes;
IV - a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição;
V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária;
VI - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão;
VII - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27.