O direito à mentira como autodefesa do acusado no processo penal.

06/05/2022 às 14:31
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"O direito a mentira como autodefesa do acusado no processo penal constitucional brasileiro: (im)possibilidade, alcance e dimensão."

Paper apresentado à disciplina Direito Processual Penal II, como parte dos requisitos para primeira avaliação.

Resumo: este estudo sobre a existência de um suposto direito a mentira como elemento de defesa do acusado, proposto como primeira avaliação da disciplina de Direito Processual Penal II, tem como objetivo discutir o uso deste direito seu alcance e dimensão no processo penal.

Palavras-chave: ampla defesa; interrogatório; nemo tenetur se detegere.

I INTRODUÇÃO

A publicação pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman de suas observações sobre a liquidez das interações humanas na Modernidade tardia, também denominada Pós-Modernidade, com relacionamentos menos duradouros, indivíduos inseguros e autocentrados, buscada no prazer imediato que o consumo pode oferecer, no isolamento voluntário e no distanciamento dos diferentes também revelou uma realidade onde as mentiras têm fluído cada vez mais de um extremo a outro. Onde os fatos são cada vez mais noticiados e menos conhecidos pelo público e todo mundo pode produzir conteúdo para ser transmitido sem nenhum compromisso em elucidar ou simplesmente para enganar.

Neste contexto, de muita informação e pouco conhecimento, a verdade é esquecida e a mentira ganha força. Não seria nada demais se não houvessem consequências intimamente ligadas com o Direito, com a Política e com a Justiça.

Derrida (2002, p. 34) conceitua a mentira como um ato deliberado, intencional, em que um interlocutor se dirige a outrem narrando algo que sabe ser total ou parcialmente falso. Portanto, a mentira não é um erro. Se o interlocutor não tem consciência da falsidade de sua asserção, ele não está mentindo, está incorrendo em erro ao acreditar que algo falso é veraz e transmitir a outrem essa falsidade como se veraz fosse. Concluímos, assim, que o sujeito que mente precisa conhecer a verdade sobre o que está mentindo.

A questão da mentira não é uma discussão do século XXI. Juristas e filósofos como Kant, Benjamin Constant, Hanna Arendt, Jacques Derrida, Alexandre Koyré, são apenas alguns dos que se propuseram a discorrer sobre a mentira, tendo como ponto em comum o fato de a considerarem a partir de uma perspectiva jurídico-política, isto é, trabalharam a temática da mentira sob o pano de fundo do encontro do direito com o político, ou da justiça com a política.

Voltando ao passado, mais precisamente ao ano de 1797, a discussão sobre um pretenso direito de mentir já foi travada entre Kant e Constant. No ensaio Das Reações Políticas, fascículo VI, no1 da revista A França, Benjamin Constant afirma:

O princípio moral, por exemplo, que dizer a verdade é um dever, se fosse considerado de uma maneira absoluta e isolada, tornaria impossível toda sociedade. Temos a prova disso nas consequências muito diretas que um filósofo alemão tirou desse princípio, chegando até mesmo a pretender que a mentira fosse um crime em relação a assassinos que vos perguntassem se o vosso amigo, perseguido por eles, não está refugiado em vossa casa. (2002, p. 6)

Também em 1797 Kant responde ao filósofo francês no ensaio Sobre um Pretenso Direito de Mentir em Amor aos Homens, reafirmando a inexistência desse direito, que seria incapaz de realizar os ideais de justiça a que se pretende.

Se dizer a verdade é um dever e inexiste o direito de mentir, nos questionamos qual a origem deste suposto direito?

Muitos dizem não ser possível identificar a origem deste suposto direito, que se confunde com o princípio do NEMO TENETUR SE DETEGERE. Trata-se de uma construção histórica que acompanha a evolução do Direito Penal.

Na república Romana vigorava a garantia da vedação da autoincriminação compulsória, prevalecendo até a ascensão do Império Romano. Ao tornar-se império a tortura começou a ser utilizada nos interrogatórios, mantendo-se durante toda a Idade Média, atingindo seu ápice na Inquisição. Neste período vigorava o sistema inquisitório, onde governos autoritários, sob alegação da busca da verdade real, faziam do interrogatório e do acusado um meio de prova, obrigando-o a declarar sua culpa, impedindo seu silêncio, punindo-o, torturando, na hipótese de se constatar alguma inverdade em seu interrogatório.

Com o surgimento do Iluminismo surge um rol de direitos tidos com universais. Em 1789 foi aprovado pelo povo francês, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte um documento de inspiração iluminista, conhecido como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O surgimento e posterior do Estado Democrático de Direito, muda definitivamente as características do processo penal. Agora o sistema é acusatório, o interrogatório serve como meio de defesa ao acusado, busca-se, por intermédio das provas e contraprovas da acusação e defesa, a verdade processual.

Uma das primeiras obras do Iluminismo que aponta nesta direção, é do pensador do direito Beccaria que escreveu a clássica obra Dos Delitos e das Penas, buscando humanizar o Direito Penal. Beccaria acredita na presunção de inocência e se posicionou contra o emprego da tortura. A ideia do princípio foi evoluindo e com isso proporcionou o direito do acusado de permanecer em silêncio, no interrogatório.

O princípio NEMO TENETUR SE DETEGERE, garantia processual do sistema acusatório, foi enunciado pela primeira vez por Hobbes, em Leviatã:

É igualmente inválido o pacto em que uma pessoa acusa a si mesma, sem garantia de perdão, pois, na condição natural, em que todo homem é um juiz, ele não pode acusar a si mesmo, e, num Estado civil, a acusação é sempre seguida de uma punição, que, sendo uma força, não somos obrigados a tolerar.

II PRINCIPIO DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA

O processo penal é regido por uma série de princípios e regras que, na verdade, são postulados fundamentais da política processual penal de um Estado, ou seja, quando mais democrático for um regime, o processo penal mais se apresenta como notável instrumento a serviço da liberdade individual.

Compreende na verdade uma expressão de cultura, de civilização, que reflete determinado momento político, assim tem que o processo penal em nosso ordenamento tem sofrido várias mudanças ocorridas nos regimes políticos a exemplo das considerações das razões do Estado, num Estado democrático, a liberdade individual, como expressão de um valor absoluto, deve ser tida como inviolável pela constituição, tanto que deste a promulgação do CPP de 1942, quando vivíamos sob a égide de um arremedo de constituição, até hoje temos passado por várias mudanças no nosso processo penal, sempre procurando, buscar a tutela dos direitos e interesses do acusado, amparando-lhe e salvaguardando-lhe as legítimas expectativas, para preservar a instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal.

Temos então com princípios garantidos pela Constituição Federal 1988: Princípio do Devido Processo Legal; Principio do Contraditório e da Ampla Defesa, Princípio da Legalidade; Princípio da Indisponibilidade; Princípio da Imparcialidade do Juiz; Princípio da Publicidade; Princípio da Presunção de Inocência; Princípio do Juiz Natural. Alguns destes princípios constitucionais apresentam desdobramentos ou subprincípios em outras etapas do processo penal.

Especificamente nos interessa, no presente trabalho, a Ampla Defesa que é mencionada como um único princípio junto ao Contraditório, por força da redação do texto constitucional. São princípios distintos, mas indissociáveis.

O Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa é uma garantia consagrada no texto constitucional, em seu art. 5º, LV, que dispõe que LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Princípio do Contraditório

O Princípio do Contraditório assegura ao denunciado o direito de contrariar a acusação e documentos que a embasa, tem diretrizes como a audiência bilateral, a igualdade das partes no processo (isonomia no tratamento das partes), a ampla defesa, a possibilidade de ambas as partes carrearem dados probatórios para os autos, entre outras faculdades processuais, sendo que no processo penal, ao contrário do processo civil, o contraditório tem que ser pleno (durante todo o processo) e efetivo (propiciar as partes condições reais de contrariar a imputação e documentos), e exige-se que, de fato, haja o exercício do contraditório efetivando a ampla defesa.

Ampla defesa

A Ampla Defesa, com os meios inerentes, decorre da necessidade de defesa técnica ao acusado, devendo a mesma se dar efetivamente, ainda que contra a vontade do acusado (art. 261, CPP), tanto é verdade que a sua falta acarretará nulidade absoluta e a sua deficiência a nulidade relativa, neste caso depende de prova de prejuízo efetivo (Súmula 523 STF).

Art. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.

Parágrafo único. A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)

Súmula 523

No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.

Além da perspectiva da defesa técnica fornecida ao acusado, um reflexo da Ampla Defesa é encontrado na fase do interrogatório no processo penal. Trata-se do princípio do NEMO TENETUR SE DETEGERE. Em tradução seria o equivalente a ninguém é obrigado a se descobrir, ninguém é obrigado a se auto acusar.

Antes de tentarmos entender a extensão deste princípio se faz necessário entender como se processa a fase do interrogatório no processo penal brasileiro.

III INTERROGATÓRIO

O interrogatório é ato processual no qual o juiz ouve o acusado, perguntando acerca dos fatos que lhe são imputados, dando a ele a oportunidade para que, se quiser, deles se defenda, e, optando pelo silêncio, o réu estará assegurado constitucionalmente, não sendo tomado como prova.

O interrogatório está no CAPÍTULO III, dó Código de Processo Penal (DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941), artigos 185 a 196.

Há três posições, quanto à natureza jurídica do interrogatório:

a) O interrogatório é meio de prova: fornece ao juiz elementos de convicção;

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b) O interrogatório constitui meio de defesa: o acusado expõe a sua versão dos fatos, contestando a acusação, podendo constituir como fonte de prova;

c) O interrogatório é meio de prova e de defesa: Assim, tem natureza mista, pois fornece ao juiz elementos de convicção e também expõe sua versão dos fatos, de modo a contestá-lo em juízo.

O interrogatório é constituído por duas partes (art.187, CPP):

(1ª) versa sobre a pessoa do acusado (interrogatório de classificação)

(2ª) traz questões sobre os fatos apurados (interrogatório de mérito)

A evolução da natureza jurídica do regime legal do interrogatório, ao longo dos tempos, em muito refletiu a própria visão do sistema processual penal.

Inicialmente a compreensão de que o crime consistia num ataque à ordem social e o julgamento desse crime, por conseguinte, trazia preocupação de questão popular, de questão de Estado e de tarefa autoritária. Em verdade, as garantias e direitos do acusado, num modelo dessa natureza, são visualizadas como verdadeiros óbices à realização da justiça penal.

O jurista italiano Vincenzo Manzini (1932, p. 159), na década de 1930, sustentava que o interrogatório era dever indeclinável do juiz, que ouviria o réu, perguntando a ele sobre o fato (interrogatório propriamente dito) e sobre os dados pessoais (qualificação). Manzini (1932, p. 158 e 161) ainda sustentava a impossibilidade de participação do acusador ou mesmo do advogado do réu.

Essa compreensão foi superada com a promulgação da Constituição de 1988.

A Constituição de 1988 incorpora um conjunto de normas e princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e orientados a partir do principal princípio: o princípio acusatório (PRADO, 2001, p. 125).

Tal princípio, evidencia algumas características que podem ser assim enumeradas: distinção entre as atividades de acusar e julgar; a iniciativa probatória há de ser das partes; o juiz mantém-se como um terceiro imparcial, alheio ao trabalho investigatório e passivo no que diz respeito à colheita da prova; o tratamento das partes se dá de modo igualitário, de sorte a bem configurar uma igualdade de oportunidades no processo; o procedimento é em regra ou predominantemente oral; assegura-se a plena (ou majoritária) publicidade ao procedimento; consagram-se o contraditório e a possibilidade de resistência (defesa); afasta-se a prova tarifada e a convicção judicial passa a ser construída pelo livre convencimento motivado; institui-se, mediante a observância de critérios de segurança jurídica e social, a coisa julgada; asseguram-se a possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição (LOPES JR., 2007, p. 60).

Atualmente a compreensão da natureza jurídica do interrogatório tenta equilibrar, de um lado, a máxima proteção dos direitos fundamentais e, de outro lado, a efetividade da tutela penal.

Informado o acusado/investigado do postulado da presunção de inocência, e de seu direito de permanecer em silêncio, o interrogatório torna-se o principal meio de defesa.

Isto será visto no próximo tópico ao analisarmos o princípio do NEMO TENETUR SE DETEGERE e seus corolários - a proibição de juramento do imputado (ele não presta compromisso de dizer a verdade); o direito ao silêncio, que abarcaria a faculdade do imputado de faltar com a verdade em suas respostas; a proibição, por conta do respeito devido à pessoa do imputado e à inviolabilidade de sua consciência, não apenas de obter a confissão mediante violência, mas também de obtê-la mediante manipulações de sua psique, por meio de drogas ou práticas hipnóticas; a consequente negação do papel decisivo da confissão, tanto pelo rechaço de qualquer prova legal como pelo caráter indisponível da defesa penal; o direito do acusado à assistência e, em todo caso, à presença de seu defensor no interrogatório para impedir abusos ou quaisquer violações das garantias processuais.

IV NEMO TENETUR SE DETEGERE

Por conta desse princípio, o acusado não é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Veda a chamada autoincriminação.

É o famoso direito ao silêncio. Tem fundamento na Constituição Federal de 1988, no Art. 5º, inciso LXIII, que versa: o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. A partir daí, prescreve o código de processo penal, em seu Art. 186: Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas., ressaltando, em seu parágrafo único, que o silêncio não pode ser interpretado em prejuízo do réu. 

Do disposto no texto do mencionado Art. 186 do código de processo penal, poder-se-ia inferir que, ao prever expressamente que o réu pode permanecer calado e não responder as perguntas que lhe forem formuladas, automaticamente estaria previsto que, caso optasse por falar, deveria fazê-lo com a verdade.

No entanto, tal afirmação não parece verdadeira. Ora, se o réu não é obrigado a formular provas contra si mesmo, como poderia ele ser obrigado a dizer a verdade caso optasse por falar no processo? Ainda, o ônus da prova recai totalmente sobre a acusação, sendo a ela, portanto, a responsável por provar se a afirmação do acusado é verdadeira ou falsa. Fernando Capez (2016, p.465) afirma que a lei processual estabelece ao acusado a possibilidade de confessar, negar, silenciar ou mentir. Argumenta, ainda, que tal direito, o de mentir, decorre do fato de que o acusado não presta compromisso de dizer a verdade, portanto não há sanção prevista para sua mentira, como há para as testemunhas, por exemplo, em razão do crime de falso testemunho. Ora, se não há sanção para sua mentira, por não ser crime, porque estaria ele proibido de fazê-lo?

Pode-se imaginar, inclusive, que a proibição à mentira, neste caso, está muito mais ligada a questões morais do que propriamente ao direito, já que inexiste lei que a proíba, sendo, inclusive, o princípio da legalidade um dos princípios mais rígidos do direito penal. Não se pode confundir direito, moral e ética.

A respeito do direito ao silêncio, ensina Aury Lopes Jr. (2020, p. 715) que

O direito ao silêncio é uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito ao silêncio quando do interrogatório.

Observe, por exemplo, que uma pessoa seja acusada de ter furtado um bem. Sua defesa alega que o acusado não praticou o referido ato. No entanto, sabe-se que ele o fez. Ao ser interrogado e perguntado se praticou tal ato, e responder que não, estaria o acusado infringindo alguma norma? Notadamente não. Tampouco estaria prejudicando o dever da acusação de provar o contrário. Está, apenas, exercendo sua defesa.

É de ressaltar, que, neste caso, a afirmação enganosa do acusado diz respeito somente a si mesmo, à sua própria defesa, devendo ele responder por suas declarações falsas caso elas ensejem outros delitos, como calúnia, por exemplo. Não seria razoável admitir que em seu direito de defesa o réu possa praticar outros crimes ou infringir direitos de terceiros.

V VISÃO DO STF e STJ

Em pesquisa rasa, sem o viés de exaurir, mas, tão somente, visando aclarar o debate, pode-se observar que no geral não há um enfrentamento objetivo quanto ao Direito de Mentir na instância dos Tribunais.

Por ocasião da pesquisa da jurisprudência nos tribunais, considerável quantidade das referências remetem a aplicação da Súmula nº 522 do STJ, da qual tratar-se-á no próximo tópico. A fim de ilustrar, podemos citar o as Apelações Criminais nº 0040652-54.2020.8.21.7000-RS, nº 0001931-35.2018.8.13.0498-MG e nº 1501797-67.2019.8.26.0196-SP, todas com decisão prolatada no corrente ano e com aplicação do epítomo suso mencionado.

Apesar do reiterado, obviamente pelo caráter imperativo, emprego do enunciado sumular, denota-se também o dissenso quanto a matéria. Em decisão da 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Território TJDFT evidencia-se o entendimento de que a garantia da Ampla Defesa, corolária e elementar do Direito ao Silêncio, se cristaliza, inclusive, na prerrogativa de mentir:

O interrogatório é manifesta expressão das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa porque é a oportunidade que tem o réu de se dirigir diretamente ao juiz, trazendo à tona a sua versão a respeito dos fatos que lhe são imputados pela acusação, podendo, inclusive, indicar meios de prova, confessar ou até mesmo permanecer em silêncio. 2. O réu está protegido pelo princípio de que não é obrigado a se auto incriminar; logo, em seu interrogatório, para se defender, pode mentir e declarar o que bem entender ao juiz. É direito seu amparado pela garantia constitucional da ampla defesa. 3. O juiz deve conduzir o interrogatório de forma neutra, imparcial e equilibrada, não lhe sendo lícito, sob pena de constrangimento ao exercício da autodefesa e de nulidade absoluta, confrontar o réu com veemência, deixando-o acuado e sugerindo ser a sua versão falsa ou inverossímil. 4. Recurso de apelação conhecido e provido.

(TJDFT 20130810080348 0007863-60.2013.8.07.0008, Relator: Waldir Leôncio Lopes Júnior, Data de Julgamento: 02/02/2017, 3ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE: 08/02/2017.)

Arguindo quanto a tese diametralmente oposta, decisão da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, expressa que o Direito de Mentir não está ínclito, tampouco sedimentado no Direito ao Silêncio, este sim positivado e inequívoco, conforme segue:

Por fim, tem-se que a afirmação do acusado no sentido de que não cometeu o crime, quando todas as provas apontam para ele leva a conclusão inarredável de que mentiu, no intuito de induzir os jurados a erro e, assim, se furtar à condenação. Sustento que o direito ao silêncio (art.186 do CPP) não confere ao réu o direito a mentir. Ao mentir, o réu demonstra personalidade reprovável.

(TJMG - APR: 10498180001931001 Perdizes, Relator: Cássio Salomé, Data de Julgamento: 10/02/2021, 7ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 12/02/2021).

Na seara dos tribunais superiores, de igual monta, não é pacífico o entendimento quanto ao Direito a Ampla Defesa alcançar e sedimentar o Direito de Mentir. Por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.362.524-MG, ainda em 2014, o STJ decidiu que, balizado em jurisprudência da Corte Maior, o Princípio Constitucional da Autodefesa, previsto no Artigo. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, não infere qualquer tutela àquele que apresenta falsa identidade perante autoridade policial. No caso, o Egrégio Tribunal considerou que a conduta que se subsuma a qualquer fato típico não pode receber tratamento diverso do poder público, senão o previsto no Direito Penal.

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. DIREITO PENAL. ART. 307 DO CP. PRISÃO EM FLAGRANTE. FALSA IDENTIFICAÇÃO PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. AUTODEFESA. INEXISTÊNCIA. TIPICIDADE DA CONDUTA DE FALSA IDENTIDADE. SUBMISSÃO AO RITO   PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC E NA RESOLUÇÃO N. 8/2008 DO STJ. 1. Típica é a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa (art. 307 do CP). 2. O Supremo Tribunal Federal ao julgar a repercussão geral no RE n. 640.139/DF, DJe 14/10/2011 reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria controvertida, no sentido de que o princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, LXIII, da CF) não alcança aquele que se atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). 3. Recurso especial provido exclusivamente para restabelecer a condenação do recorrido pelo delito de falsa identidade (art. 307 do CP), consoante o decisum de primeiro grau, mantido, no que não contrariar este voto, o acórdão a quo. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução n. 8/2008 do Superior Tribunal de Justiça.

(STJ - REsp 1.362.524-MG, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Data do Julgamento: 23/10/2013, 3ª Seção, Data da Publicação: 02/05/2014).

Calha ressaltar que, inclusive, o entendimento supracitado restou consolidado em enunciado vinculante, a Súmula nº 522 do STJ, que antevê: "A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa".

Ao ponto em que consolidou uma expressa limitação ao uso da mentira como autodefesa, em contrapartida, o Superior Tribunal de Justiça também já teve oportunidade de se manifestar para pacificar o alcance dessa modalidade de salvaguarda. No julgamento do Habeas Corpus nº 98013/MS, o entendimento asseverado foi quanto a tutela, com base na garantia de que não cabe ao acusado o ônus de produzir elemento probatório contra si, daquele que se nega a assumir conduta criminosa, não sendo, ainda, possível valorar essa ação negativamente.

É cediço que a pena-base deve ser fixada concreta e fundamentadamente (art. 93, IX, CF), de acordo com as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito. 2. O fato do agente mentir acerca da ocorrência delituosa, não assumindo, desta maneira, a prática do crime, está intimamente ligado ao desejo de se defender e, por isso mesmo, não pode representar circunstância a ser valorada negativamente em sua personalidade, porquanto a comprovação de tais fatos cabe a acusação, desobrigando, por conseguinte, que essa mesma comprovação seja corroborada pela defesa. 3. Ordem parcialmente concedida para reduzir a pena de 15 (quinze) anos de reclusão para 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses, a ser cumprida inicialmente em regime fechado.

(STJ - HC 98.013/MS, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 20/09/2012, 6ª TURMA, Data da Publicação: 01/10/2012)

Em matéria que tangencia o Direito de Mentir, cuja menção é pertinente a essa dissertação, o STJ abordou a tese da má-fé no âmbito penal. Ora, se a boa-fé é reiteradamente fomentada em todas as esferas processuais, como conceber que o mesmo direito que a promove, poderia tutelar a mentira?

O notório Artigo 80 do Código de Processo Civil define as condutas consideradas como litigância de má-fé. O Processo Penal não dispõe de previsão nesse sentido. A jurisprudência do STJ mostra-se taxativa quanto a inviabilidade de extensão da previsão da litigância de má-fé na esfera penal, nada obstante o processo penal ter a boa-fé como princípio basilar.

4. Esta Corte Superior firmou o entendimento de que não é cabível a imposição de multa por litigância de má-fé no âmbito do processo penal, porquanto sua aplicação constituiria indevida analogia in malam partem, haja vista ausência de previsão expressa no Código de Processo Penal. Precedentes. 5. Ordem parcialmente concedida somente para afastar a multa por litigância de má-fé aplicada pelo Tribunal de origem.

(STJ - HC 401.965/RJ, Relator: Ministro Ribeiro Dantas, Data do Julgamento: 26/09/2017, 5ª Turma, Data da Publicação: 06/10/2017).

O entendimento foi ratificado pela 5ª Turma, quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 44.129/PE, ocasião em que se reforçou o descabimento de multa por litigância de má-fé. Ao exposto, resta manifesto que não cabe sanção o processo penal não comporta sanção nesses casos, o que denota, em hermenêutica extensiva, que a mentira do réu da ação penal não poderia ser penalizada, de igual forma.

Por fim, partindo para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência apresenta um notório julgado, no qual o Ministro Celso de Mello, em sede de relatoria, celebrizou a assertiva quanto a no Direito ao Silêncio incluir-se, mesmo que implicitamente, a prerrogativa processual de o acusado negar a autoria da prática da infração penal arrematando, ainda, que ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O fundamento foi exarado no julgamento do Habeas Corpus nº 68929/SP.

Cabe acentuar referência ao suso mencionado Recurso Extraordinário nº 640139/DF, arrimo à Sumula nº 522 do STJ, no qual alicerçou-se que o princípio constitucional da autodefesa também alcança o agente que atribui falsa identidade, por caracterizar o delito previsto no Artigo 307 do Código Penal, falsa identidade.

O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes.

(STF - RG no RE 640.139/DF - Relator: Ministro Dias Toffolli, Data de Julgamento: 22/09/2011, Data de Publicação: 14/10/2011).

Nessa toada, em sede do Habeas Corpus nº 92763, o STF já pronunciava o entendimento de que o cometimento de um crime não tem amparo no Direito a Ampla Defesa, sob alegação de autodefesa.

O fato de o paciente ter apresentado à polícia identidade com sua foto e assinatura, porém com impressão digital de outrem, configura o crime do art. 304 do Código Penal. Havendo adequação entre a conduta e a figura típica concernente ao uso de documento falso, não cabe cogitar de que a atribuição de identidade falsa para esconder antecedentes criminais consubstancia autodefesa. Ordem denegada.

(STF - HC 92763/MS - Relator:  Ministro Eros Grau, Segunda Turma, Data do Julgamento: 12/02/2008, Data da Publicação: 24/04/2008)

Em suma, o que se extrai da jurisprudência é que a Ampla Defesa e o Direito ao Silêncio não cristalizam um pleno Direito de Mentir ou de não autoincriminação. O limite mais evidente é o cometimento de delito no seu exercício: o Direito pátrio não consente. Destarte, não há vedação explícita à mentira, impedimento, sequer cominação de sanção, contudo, tampouco se tutela essa possibilidade.

VI CONCLUSÃO

Toda sociedade é construída entorno de princípios que regem as interações humanas, as instituições e a sociedade de maneira geral. Nas sociedades modernas estes princípios são tidos como a base da democracia, mesmo quando ainda não completamente efetivados.

Um princípio que, em especial deve ser protegido é o da igualdade. Qualquer direito que não respeite esse princípio básico de igualdade deixa de ser um direito e torna-se um privilégio. Este seria um dos principais argumentos contra a possibilidade do uso do direito a mentira.

Apesar disto, podemos chegar à conclusão de que a garantia ao silêncio ou o direito a fornecer versão que melhor aproveite ao acusado em depoimentos oficiais, no transcurso de um processo penal, é uma faculdade que pode ser utilizada no tocante à preservação do princípio da ampla defesa e do devido processo legal.

Acreditamos que, mesmo com limites indefinidos dentro da aplicação do direito, ou com divergências doutrinárias, os limites de tal faculdade se encontram quando tal situação implique a imputação de fatos tipificados como crimes por exemplo, difamantes ou mesmo caluniosos em face de terceiros, ou falsidade ideológica, como apresentado acima.

Tal direito se encontra consoante com a visão de um processo penal garantista onde o interrogatório é um meio de defesa do acusado que luta para preservar seu bem jurídico da liberdade.

VII REFERÊNCIAS

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LOVATTI, Sheila Mayra Lustoza de Souza. A garantia da vedação a autoincriminação compulsória. Revista Eletrônica de Direito Processual REDP. Volume VIII. Periódico da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ.

SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. O regime jurídico do interrogatório no Projeto de Código de Processo Penal. Revista de Informação Legislativa - Brasília a. 46, no 183 julho/set. 2009.

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