O ANPP e sua celebração em crimes culposos com resultado violento

13/05/2022 às 11:27
Leia nesta página:

O presente artigo aborda o ANPP como instrumento moderno da justiça negociada, elencando seus diversos requisitos objetivos e causas impeditivas a fim de discorrer e defender a aplicação de tal instrumento nos crimes culposos com resultado violento.

O ANPP

Corriqueiramente lembrada como Pacote Anticrime, a Lei Federal nº 13.964/19 começou a vigorar no dia 23/01/2020. Dentre os objetivos desta lei, o aumento na efetividade do combate à criminalidade, por meio da modificação de diversos dispositivos do Códex Penal e Processual Penal, é o principal.

Sem nos estendermos na dita legislação anticrime, temos que, com sua entrada em vigor, foi regularizado o ingresso do ANPP no sistema processual pátrio. Isso porque o nascimento desse instituto ocorre com a Resolução nº 181 do CNMP, em 2017, mas em via inadequada.

Trata-se de via, de proposição do MP, na qual o mesmo deverá chegar a um acordo com a Defesa do imputado, considerando cláusulas adequadas, suficientes e ponderadas, gerando extinção da punibilidade em caso de cumprimento antes mesmo do início da persecução penal. Em concordância com jurisprudência pátria solidificada nos tribunais superiores, o momento oportuno para a proposição do ANPP é até o recebimento da denúncia.

Repara-se que é um poderoso instrumento de negociação processual penal que requer uma postura diferenciada por parte dos atores judiciários, antes forjados no confronto, que agora precisam abrir-se para uma lógica negocial, estratégica, que demanda uma análise do que se pode oferecer e do preço a ser pago (prêmio), do timing da negociação, da arte negocial [1].

Adjetivo de tamanha envergadura como poderoso justifica-se porque, nas palavras verdadeiras de Aury Lopes Jr:

Se fizermos um estudo dos tipos penais previstos no sistema brasileiro e o impacto desses instrumentos negociais, não seria surpresa alguma se o índice superasse a casa dos 70% de tipos penais passíveis de negociação, de acordo. Portanto, estão presentes todas as condições para um verdadeiro desentulhamento da justiça criminal brasileira, sem cairmos na abertura perversa e perigosa de um plea bargaining sem limite de pena, como inicialmente proposto pelo Pacote Moro e, felizmente, rechaçada pelo Congresso Nacional. (LOPES JR, 2020, p. 315)

Ainda, a homologação do ANPP será feita em audiência, devendo o julgador apurar a voluntariedade do investigado, ouvindo-o formalmente, na presença do seu defensor, em clara valoração do princípio da oralidade. Vale ressaltar que, em caso de propositura de cláusulas iminentemente abusivas, inadequadas ou insuficientes, pode o julgador devolver os autos ao MP para que reformule a proposta. Na hipótese de o Ministério Público não reformular a proposta, pode o juiz recusar a homologação do acordo. Além disso, caso não preenchidos os requisitos legais para celebração do ANPP, também é possível a recusa da homologação pelo julgador.

Uma vez formalizado o acordo e cumpridas as condições estabelecidas, será extinta a punibilidade, não gerando reincidência ou maus antecedentes, registrando-se apenas para o fim de impedir um novo acordo no prazo de 5 anos (inciso III do § 2º) [2]. Todavia, em caso de descumprimento deve o MP informar o juiz para fins de rescisão, observado o contraditório que deverá ser assegurado mediante audiência oral e pública na qual o imputado deve apresentar sua justificativa acerca de tal descumprimento.

Requisitos

Quanto aos requisitos, objetivos e cumulativos, para a celebração do acordo de não persecução penal, temos: (1) Não deve ser caso de arquivamento, devendo estar presentes as condições de admissibilidade da acusação (viabilidade acusatória); (2) O imputado deve confessar formal e circunstancialmente a prática de crime, podendo essa confissão ser feita na investigação ou mesmo quando da realização do acordo (o que consideramos verdadeira afronta à imunidade à autoacusação, considerando possível descumprimento do ANPP); (3) O crime praticado deve ter pena mínima inferior a 4 anos e ter sido praticado sem violência ou grave ameaça, salvo exceção que será evidenciada adiante. Para aferição dessa pena, deve-se levar em consideração as causas de aumento (como o concurso de crimes, por exemplo) e de redução (como a tentativa), devendo incidir no máximo nas causas de diminuição e no mínimo em relação as causas de aumento, pois o que se busca é a pena mínima cominada; (4) O acordo e suas condições devem ser suficientes para reprovação e prevenção do crime, ou seja, adequação e necessidade (proporcionalidade).

Ainda, existem circunstâncias que, se presentes, de forma inversa aos requisitos, impedem a celebração do ANPP. Tais circunstâncias carregam a denominação de causas impeditivas e, diferente dos requisitos supracitados, são alternativas, ou seja, basta a existência de apenas uma dentre elas para que obstado o acordo. São elas: (1) Quando cabível a transação penal, uma vez que antecede o ANPP, prevalece sobre o mesmo e configura instituto mais benéfico ao imputado; (2) O imputado ser reincidente e haverem elementos probatórios que comprovem a habitualidade delitiva, exceto se insignificantes as infrações pretéritas; (3) O imputado ter se beneficiado, nos últimos 5 anos anteriores ao crime, de acordo de não persecução, transação penal ou suspensão condicional do processo; (4) Infração ter sido praticada no âmbito da violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher em razão do sexo feminino.

É possível a celebração em crimes com resultado violento?

O Código de Processo Penal prevê, em seu Art. 28-A, caput, que o Ministério Público poderá propor o acordo de não persecução penal se o imputado confessar formal e circunstancialmente a prática de infração penal praticada sem violência ou grave ameaça. 

Entretanto, aqui existe um elemento implícito, nascente de divergência quanto à aplicação prática. Trata-se da celebração do acordo de não persecução penal em crimes culposos com resultado violento.

Partindo da premissa que existe ampla diferença entre um ato violento doloso e outro que gera violência culposamente, impossível trata-los de forma idêntica.

Ante a existência de duas linhas de raciocínio, a favor (maioria) e contra (minoria) a celebração do ANPP nestes casos, essencial trazer à tona os principais argumentos de ambas.

Quem se posiciona de forma contrária à possibilidade do ANPP nesta hipótese, caso do Ministério Público do Paraná, o faz fundamentando que não cabe ao órgão acusador delimitar a natureza da violência a qual o requisito objetivo do ANPP faz menção, uma vez que a própria lei não delimita.

De forma divergente, os que sustentam ser possível sua celebração, sustentam que o ANPP não é cabível somente quando a conduta violenta é dolosa uma vez que, em caso de violência culposa, o resultado não é querido e nem mesmo aceito pelo agente, sendo apenas violação de dever de cuidado objetivo. É o que defendem o Conselho Nacional de Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União [4], bem como do Ministério Público dos Estados de São Paulo [5], Goiás [6], e Mato Grosso do Sul [7] por exemplo.

Não existe entendimento dos tribunais superiores acerca do assunto, porém, na doutrina pátria, o ilustre Renato Brasileiro discorre sobre o tema da seguinte forma:

"Sem embargo do silêncio do art. 28-A, caput, parece-nos que a violência ou grave ameaça aí citada necessariamente deverá ter sido praticada a título doloso, daí por que há de se admitir a celebração do acordo na hipótese de eventual crime culposo com resultado violento (v.g., lesão corporal culposa), desde que presentes os demais requisitos. A violência que impede a celebração do acordo, portanto, é aquela presente na conduta, e não no resultado."

Em nossa perspectiva, soa ilógico comparar conduta de natureza dolosa, ou seja, com intenção de produzir o resultado e aceitando os riscos, com outra conduta, com o mesmo resultado, mas de natureza culposa.

Isso, leitores, porque, nesta última conduta, o agente procede sempre involuntariamente. Não tem intenção na ação, descaracterizando a vontade de cometer ato violento para com outrem, não tem consciência do risco e não o assume.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Parece sensato, sob nosso ponto de vista, afirmar que a atitude culposa merece menor reprovabilidade estatal, sob pena, inclusive, de ser atingido o princípio da proporcionalidade, um dos norteadores do direito penal.

Ainda, negar tal distinção é negar a letra da lei penal que, em seu Art. 18, caput, define o que seria o crime culposo, em visível discrepância, em termos de natureza e gravidade, quanto ao crime cometido com dolo.

Também, nota-se que se trata de norma penal de natureza mista visto que, com o cumprimento integral do Acordo de Não Persecução Penal, é extinta a punibilidade do agente.

Nesse diapasão, tal norma deve ser interpretada de maneira extensiva em razão de caracterizar limitação do poder punitivo estatal e direito do acusado. Isso de maneira que se estenda o sentido da norma até que sua real acepção seja alcançada.

Infere-se, portanto, que é cabível a celebração do ANPP nestes crimes no quais os resultados são violentos, mas inexiste dolo na conduta, se preenchidos os demais requisitos.

Por fim, se a ideia é obstar a celebração de ANPP em crimes culposos com resultado violento, parece claro que o esforço argumentativo terá que superar, em muito, o fundamento argumentativo de que "a violência da ação não difere da violência do resultado", a qual é plenamente distante da correta intepretação, extensiva, da norma penal mista, da letra da lei pátria, doutrinas que distinguem crimes dolosos e culposos e do próprio objetivo do acordo de não persecução penal, desvirtuando seu objetivo de um direito penal de intervenção mínima, bem como de sua natureza, como instituição de desencarceramento, dando vez à justiça negociada.

Referências Bibliográficas

[1] (Lopes Junior, Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. 17. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2020. p. 315)

[2] (IBID, p. 316)

[3] "Em suma, com relação ao requisito objetivo, em que se nega a possibilidade da celebração do acordo de não persecução quando o delito for cometido com violência ou grave ameaça, a interpretação deve, a nosso sentir, abarcar todas as hipóteses que se adéquem a esses conceitos (é dizer, não se deve delimitá-los quando a lei os não delimitou), inclusive como forma de evitar que injustos mais graves possam ser resolvidos sem passar pelo crivo de um julgamento plenário, mesmo porque deles muitas vezes resulta, em caso de condenação, a aplicação de pena privativa de liberdade". Parecer do CAOP Criminal do Ministério Público do Paraná.

[4] ENUNCIADO 23 CNPG - É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível..

[5] ENUNCIADO 74 CAO-CRIM MPSP - É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, pois, nesses delitos, a violência não está na conduta, mas no resultado não querido ou não aceito pelo agente, incumbindo ao órgão de execução analisar as particularidades do caso concreto.

[6] Recomendação nº 1/2020-PGJ, art. 1º, §5º - Caberá o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que, nos delitos desta natureza, a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pelo(a) agente, apesar de previsível.

[7] ENUNCIADO 32 GNCCRIM MPGO - É cabível o ANPP nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível.

Sobre o autor
Guilherme Vieira Belens

Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia na PUC/RS. Membro da ABRACRIM, sendo Presidente da Comissão de Acadêmicos de Direito e Estágio Profissional "Professor Osvaldo Serrão" da ABRACRIM do Estado de Santa Catarina. Membro da AACRIMESC.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos