A Reclamação nº 49.890 e a interpretação do Tema 793 de Repercussão Geral: da necessária aplicação das regras de litisconsórcio necessário previstas no CPC/2015

Resumo:


  • A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Reclamação nº 49.890 trouxe novos contornos à solidariedade entre os entes federativos nas demandas relacionadas à saúde.

  • Segundo a interpretação da Suprema Corte, a União deve integrar o polo passivo da demanda nos casos de fornecimento de medicamentos não padronizados no SUS, juntamente com o estado e/ou município.

  • Apesar do entendimento do STF, há divergências quanto à inclusão da União no polo passivo de forma automática, sendo necessário observar as regras de litisconsórcio necessário e a participação dos entes federativos de acordo com suas competências.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

 

As demandas relacionadas à consagração do direito fundamental à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição Federal, ganharam novo delineamento com o recente julgamento da Reclamação nº 49.890, em que se argumentava ter havido afronta à autoridade do Supremo Tribunal Federal e à eficácia do julgado no RE nº 855.178/SE (Tema 793 da repercussão geral). A questão da solidariedade entre os entes federativos, imposta pelo texto constitucional, não é afastada, mas adquire novos contornos, especialmente no que se refere a pleitos de fornecimento de medicamentos que não se encontram incorporados no Sistema Único de Saúde.

Na Reclamação em comento, o Estado reclamante assevera que, em que pese haver a solidariedade, haveria a necessidade de a União integrar a lide como litisconsorte passivo necessário, o que daria azo ao deslocamento do feito para a Justiça Federal, com arrimo na orientação do Tema 793 do STF, diante da competência administrativa da União para o fornecimento dos fármacos requisitados, que não se encontram padronizados na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME)[1]. Este argumento tem sido frequentemente utilizado pelos Estados e Municípios em geral, mas vinham sendo, até então, rechaçado pela jurisprudência pátria, com base no entendimento de que a obrigação seria solidária.

Antes de analisar o julgado em referência, cumpre fazer um breve apontamento acerca do direito à saúde. Como é sabido, o direito subjetivo à saúde está, no ordenamento jurídico pátrio, garantido por meio de norma programática insculpida no art. 196 da Constituição da República, que assim dispõe:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Ademais, o art. 198, §1º, da Constituição Federal, enuncia que o Sistema Único de Saúde será financiado por recursos da seguridade social, da União, dos Estados, do DF e dos Municípios, o que evidencia, pois, a responsabilidade de todos os entes da Administração Pública nessa seara. Dessa forma, resta claro que o dever do Estado, contido no art. 196 da CF/88, compreende tanto a obrigação da União, quanto dos Estados e Municípios, sendo a responsabilidade pela realização do direito à saúde compartilhada por todos os entes federativos, dentro de uma gradação de atribuições e competências.

Com efeito, o Sistema Único de Saúde - SUS é descentralizado, competindo aos Estados, por exemplo, sem prejuízo das competências da União e dos Municípios, a responsabilidade quanto à prestação de serviços hospitalares de alto custo e à disponibilização de medicamentos indispensáveis à sobrevivência do cidadão que não possui condições de adquiri-los.

Por oportuno, saliente-se que a existência de um sistema unificado, com acesso integral, universal e gratuito para toda a população brasileira tem existência bastante recente. Foi implementado através da Lei nº 8.080/1990, caracterizando-se como um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo[2]. Antes da Constituição de 1988, que instituiu o sistema, apenas quem contribuísse para a Previdência Social tinha acesso ao sistema público de saúde no Brasil, sendo esse sistema centralizado e de responsabilidade federal, sem a participação dos usuários:

O sistema público de saúde no Brasil antes de 1988 atendia a quem contribuía para a Previdência Social. A saúde era centralizada e de responsabilidade federal, sem a participação dos usuários. A população que poderia usar recebia apenas o serviço de assistência médico-hospitalar. Antes da implementação do SUS, saúde era vista como ausência de doenças. Na época, cerca de 30 milhões de pessoas tinham acesso aos serviços hospitalares. As pessoas que não tinham dinheiro dependiam da caridade e da filantropia.[3]

O SUS surge, desse modo, como uma concretização do dever estatal de propiciar o atendimento à saúde de toda a população, sendo regido pelos princípios da universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação social (artigos 196 e 198, CF/88).

Em aplicação desses princípios, é farta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, comprovada a necessidade do tratamento associada à falta de condições de adquirir o medicamento, tratamento ou outra medida necessária à saúde, o cidadão poderá, sim, buscar proteção junto ao Poder Judiciário para que sejam disponibilizados pelos entes públicos os meios necessários ao adequado tratamento da enfermidade.

Perceba-se, ainda, que a ordem constitucional vigente, em seu art. 196, ao consagrar o direito à saúde como dever do Estado, o faz no sentido de que deve aquele, por meio de políticas sociais e econômicas, propiciar aos necessitados não "qualquer tratamento", mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento. Neste sentido, os seguintes precedentes do C. STJ: ROMS 20335/PR; RMS 17449/MG DJ 13.02.2006; RMG 17425/MG, DJ 22.11.2004; RMS 13452/MG, DJ 07.10.2002.

Uma vez que tais medicamentos, tratamentos ou quaisquer outras medidas ou pleitos relacionados à saúde se encontrem incorporados ao SUS, as orientações a seguir pelo Judiciário, na análise das demandas relacionadas à saúde, se encontram um pouco mais facilitadas. No entanto, caso não tenha havido ainda a referida incorporação, o caminho se revela mais tortuoso, sendo preciso observar com atenção regras de repartição de competências administrativas e enfrentar argumentos estatais tais como de violação à isonomia ou ao princípio constitucional da separação de poderes, ou mesmo a sempre invocada Teoria da Reserva do Possível, cuja aplicação se dá apenas em casos excepcionais e justificáveis, não servindo de fundamento para o Poder Público se eximir do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando puder aniquilar o direito à saúde, consectário do mínimo existencial.

E, nessa tentativa de uniformizar a jurisprudência, foram definidos parâmetros, por exemplo, no julgamento do REsp 1657156-RJ (Tema 106), apreciado sob a sistemática dos Recursos Repetitivos, em que restou consignado que a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exigiria a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

1) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

2) Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e 

3) Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), observados os usos autorizados pela agência.

A tese em referência estabeleceu, dessa forma, critérios para os casos em que os medicamentos não são fornecidos pelo SUS.

Por sua vez, a Suprema Corte, no julgamento do Tema 793 de Repercussão Geral, concluiu pela existência de solidariedade entre os entes da Federação, fixando a seguinte tese:

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro" (Tema 793 - RE 855.178, Rel. Min. Luiz Fux).

A interpretação da tese fixada no Tema 793 supracitado era de que seria possível ajuizar a demanda contra quaisquer dos entes federativos, sendo compreendida como solidária a responsabilidade dos entes políticos para fornecer medicamentos aos cidadãos carentes que deles necessitem, sob o fundamento de que a Constituição da República de 1988 não estabelece competência privativa ou exclusiva de qualquer dos entes federativos. Assim, entendia-se lícito ao prejudicado demandar de qualquer deles, sem que se impusesse um litisconsórcio passivo necessário, podendo ser determinado o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. Note-se que, no caso de medicamento que não detém registro na ANVISA, já se compreendia que era impositiva a formação de litisconsórcio necessário com a União, nos termos do julgamento do Tema 500 de Repercussão Geral (Tema 500 RE 657718 AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 24.10.2019).

Desse modo, o entendimento acerca do Tema 793 de Repercussão Geral, em conjunto com a aplicação do Tema 106, julgado sob a sistemática de Recursos Repetitivos, oferecia parâmetros para as decisões em demandas de saúde, especialmente nos casos de pleitos de fornecimento de medicamentos não ofertados pelo Sistema Único de Saúde SUS.

Ocorre que, com o recente julgamento da Reclamação nº 49.890[4], em que se argumentava ter havido afronta à autoridade do Supremo Tribunal Federal e à eficácia do julgado no RE nº 855.178/SE (Tema 793 da repercussão geral), a questão adquire novos contornos.

No referido julgado, a Turma, por unanimidade, julgou procedente a Reclamação para cassar a decisão reclamada, determinar a inclusão da União no polo passivo da ação e o envio dos autos à Justiça Federal, mantida a medida liminar concedida na origem até que o direito seja apreciado pelo Juízo competente, nos termos do voto do Relator. Presidência da Ministra Cármen Lúcia. Primeira Turma, 22.03.2022[5].

Destaque-se, por oportuno, o seguinte excerto do esclarecedor voto do Exmo. Relator Ministro Dias Toffoli:

() Dessa óptica, tenho que a Constituição Federal, ao estabelecer a competência comum de cuidar da saúde (art. 23, inciso II), não  estipulou uma obrigação indivisa, mas, ao contrário, definiu uma responsabilidade estruturada em níveis de atuação consentâneos com as atribuições próprias da repartição federativa, elemento essencial à construção do modelo de atenção à saúde reformador propugnado pela Constituição.

Nesse passo, tenho que se pode vislumbrar a Federação como uma figura formada por dois círculos concêntricos, em cujo centro está a União. O círculo concêntrico mais próximo do centro representa os estados e o Distrito Federal, o mais distante, os municípios. Nesse contexto, em matéria de saúde, quanto mais se caminha em direção ao ente central do sistema (direção centrípeta), maior a responsabilização técnico-financeira identificada, ao passo que, quanto mais se caminha no sentido oposto, maior a obrigação de execução das políticas de saúde.

Embora a responsabilidade seja una, no sentido de que todos têm o dever inafastável de garantir saúde a seus cidadãos, a divisão de responsabilidades no SUS segue uma gradação em duas orientações: a centrípeta, no que tange ao financiamento e à responsabilidade técnica; e a centrífuga, no que tange à execução das ações e dos serviços de saúde.

() A meu ver, ao definir a responsabilidade como solidária, esta Corte, baseando-se na previsão da saúde como obrigação comum (art. 23, II), pretendeu apenas atribuir a todos os entes responsabilidade na garantia do direito à saúde. Tenho que há de se avançar nessa questão para se preservar, conforme ficou claro nos autos da STA nº 175, a possibilidade de, na condenação dos entes, se realizar a repartição de atribuições traçada em âmbito legal ou mesmo infralegal (especialmente, acrescento, se tal repartição estiver consentânea com as orientações constitucionais centrípeta quanto à cooperação técnica e financeira e centrífuga quanto à própria prestação do direito à saúde).

Atualmente, no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos, verifica-se que, no SUS, o atendimento ao cidadão (a dispensação de fármacos) é feito: i) pelos municípios, no menor nível de complexidade (que corresponde ao componente básico da assistência farmacêutica e à parte do componente especializado); e ii) pelos estados (nos demais medicamentos do componente especializado e ainda no componente estratégico). Nunca, todavia, esse atendimento deverá ser feito diretamente pela União.

() Traçados esses parâmetros, sigo a ordenação já traçada nos autos da STA nº 175:

- Primeira grande espécie: pretensão que veicula medicamento, material, procedimento ou tratamento constante nas políticas públicas. Entendo que deva ser demandada no polo passivo a pessoa política com  competência administrativa para o fornecimento do respectivo medicamento, material, procedimento ou  tratamento, podendo o juiz determinar a correção do polo passivo da demanda, ainda que isso signifique o deslocamento da competência para processá-la e julgá-la a
outro juízo;

- Segunda grande espécie: pretensão que veicula pedido de medicamentos, tratamentos, procedimentos ou materiais não constantes das políticas públicas instituídas.

Como disposto na STA nº 175, há três subespécies em tal caso: (i) omissão legislativa ou administrativa; (ii) decisão administrativa de não fornecimento; (iii) vedação legal a sua dispensação. Em tais casos, entendo que a União obrigatoriamente deve figurar no polo passivo, uma vez que a direção técnica nacional do Sistema lhe pertence, estando a decisão sobre a incorporação da tecnologia medicamentosa a cargo do
Ministério da Saúde, com apoio da CONITEC (art. 19-Q, da Lei 8080/90).

A presença da União no polo passivo, todavia, não prescinde da presença do estado e/ou do município, seja porque são os entes executores do sistema (princípio da descentralização), e, assim, eventual ordem de fornecimento direto ao paciente deve sobre um deles recair (conforme a
complexidade do atendimento); seja porque o financiamento do Sistema é tripartite e, em se tratando de medicamentos não padronizados, fatalmente, não terá sido objeto de deliberação no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (art. 19-U, da Lei nº 8080/90), não se podendo, a princípio, afirmar a exclusão de responsabilidade financeira de qualquer deles, cabendo em tais casos ao magistrado ponderar (novamente com base na complexidade do atendimento) a responsabilidade de cada ente pelo financiamento do atendimento.

() Entendo que esse entendimento emana do Tema 793 da sistemática da repercussão geral, porquanto, ao enunciar a possibilidade de o polo passivo ser composto por qualquer ente federativo, isolada ou conjuntamente, preconiza que cabe ao Poder Judiciário, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências[6].

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É importante esclarecer que, até o julgamento da Reclamação nº 49.890, o entendimento vigente era de que poderia ser demandado qualquer dos entes federativos, e aquele que arcasse com o custeio poderia, em regresso, demandar do ente efetivamente competente, sem necessidade de litisconsórcio passivo necessário.

Note-se que o que foi decidido na Reclamação nº 49.890 não é o afastamento da regra da solidariedade, como bem disse o Min. Dias Toffoli, mas um esclarecimento acerca de como deve ser compreendida a solidariedade entre os entes.

Repita-se, nas palavras do Exmo. Ministro: embora a responsabilidade seja una, no sentido de que todos têm o dever inafastável de garantir saúde a seus cidadãos, a divisão de responsabilidades no SUS segue uma gradação em duas orientações: a centrípeta, no que tange ao financiamento e à responsabilidade técnica; e a centrífuga, no que tange à execução das ações e dos serviços de saúde.

Destarte, deve se seguir, na condenação dos entes, a repartição de atribuições traçada em âmbito legal ou mesmo infralegal, inclusive com a possibilidade de se determinar a correção do polo passivo da demanda, ainda que isso signifique o deslocamento da competência para processá-la e julgá-la a outro juízo.

Portanto, passa a ser imposto o litisconsórcio passivo necessário nos mencionados casos de competência da União, especialmente diante de não previsão do medicamento ou outras ações no SUS, sendo certo que a presença da União no polo passivo, todavia, não prescinde da presença do estado e/ou do município, pois o fornecimento nunca () deverá ser feito diretamente pela União.

Haveria, portanto, interesse e responsabilidade da União Federal, dentro do entendimento explanado pelo Exmo. Ministro Dias Toffoli na Reclamação nº 49.890, ao se referir a uma repartição de competências no cuidado com a saúde de ordem centrípeta quanto à cooperação técnica e financeira e centrífuga quanto à própria prestação do direito à saúde.

Portanto, conforme a regra de repartição de competência, nos termos do supramencionado voto do Exmo. Ministro Dias Toffoli, no caso de:

demanda para fornecimento de fármacos não constantes das políticas públicas instituídas, a União deve integrar, necessariamente, o polo passivo da lide, sem prejuízo da presença do estado e/ou do município na relação processual; harmonizando-se, assim, a responsabilidade solidária dos entes federados nas demandas prestacionais na área da saúde - decorrente da competência comum para cuidar da saúde (CF/88, art. 23, II) - aos postulados constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CF/88, art. 5º, LV) - viabilizando, assim, que o ente competente manifeste-se acerca de eventual omissão legislativa ou administrativa, decisão administrativa de não fornecimento ou vedação legal a sua dispensação e à competência originária da Justiça federal comum (CF/88, art. 109, I).[7]

E, por fim, sob esses fundamentos, na Reclamação nº 49.890, o Exmo. Ministro Relator votou por julgar procedente a presente reclamação para cassar a decisão reclamada e determinar a inclusão da União no polo passivo do Processo nº 0801074-76.2019.8.12.0003 e o envio dos autos à Justiça federal, ficando mantido o fornecimento dos medicamentos determinado pelo juízo estadual até que o direito seja apreciado pelo juízo competente (CPC, art. 64, § 4º).[8]

Esse entendimento foi observado nos diversos julgamentos que se sucederam àquele da Reclamação nº 49.890, como se pode observar, por exemplo, nas Rcls 50.481-AgR, 49.909-AgR-ED, 49.919-AgR-ED, 50.458-AgR, 50.649-AgR, 50.726-AgR, 50.866-AgR e 50.907-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes; Rcl 50.414-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli; Rcl 52.741, Rel. Min. Roberto Barroso; RE 1374929 e Rcl 52.862, Rel. Min. Cármén Lúcia; RE 1331005, RE 1338906, RE 1377271, RE 1377737, RE 1375223, RE 1377510, Rel. Min. Alexandre de Moraes.

Destaque-se, a fim de esclarecer os parâmetros fixados, a recentíssima decisão na Reclamação nº 53.068[9], de Relatoria do Exmo. Ministro Roberto Barroso:

DECISÃO: 1. Trata-se de reclamação, com pedido liminar, proposta pelo Estado de Mato Grosso do Sul em face de acórdão do Tribunal de Justiça local proferido nos Autos nº 0807957-42.2019.8.12.000. A parte reclamante alega má aplicação do Tema 793 da repercussão geral, em processo relativo a fornecimento de medicamento oncológico. 2. É o relatório. Decido o pedido liminar. 3. No julgamento do RE 855.178-RG, Rel. Min. Luiz Fux, paradigma do Tema 793, o Plenário do Supremo Tribunal Federal fixou tese nestes termos: o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, sendo responsabilidade solidária dos entes federados, podendo figurar no polo passivo qualquer um deles em conjunto ou isoladamente. 4. Ao julgar os embargos de declaração opostos no RE 855.178-RG, a Corte complementou a orientação, para fazer constar da redação da tese o seguinte: Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro" (Red. p/o acórdão o Min. Edson Fachin, grifou-se). 5. A Primeira Turma desta Corte, em razão de inúmeras reclamações propostas sobre a matéria, analisou controvérsia sobre a forma de aplicação da tese firmada no Tema 793-RG, estabelecendo que, não obstante a solidariedade entre os entes da federação nas demandas prestacionais na área da saúde, o juiz deve observar o direcionamento necessário do feito àquele responsável pela prestação específica pretendida, permitindo-se que o cumprimento seja direto e, eventual ressarcimento, eficaz. Neste caso, a União deve ser incluída no polo passivo da demanda quando for o ente legalmente responsável pela obrigação principal, como nas hipóteses em que o medicamento ou o tratamento pleiteado: (i) não tem registro na Agência Nacional de Vigilância - ANVISA (vide Tema 500-RG); (ii) não for padronizado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS CONITEC e incluído na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais RENAME ou na Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde RENASES; (iii) embora padronizado, não foi acrescentado ao Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas - PCDT ou recomendado por Relatório do CONITEC para a moléstia específica do requerente; (iv) tiver seu financiamento, aquisição e dispensação atribuídos à União, segundo as regras de repartição de competência; (v) for para enfermidade oncológica. 6. Na ocasião, foram julgadas as seguintes reclamações: Rcls 50.481-AgR, 49.909-AgR-ED, 49.919-AgR-ED, 50.458-AgR, 50.649-AgR, 50.726-AgR, 50.866-AgR e 50.907-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, e as Rcls 49.890-AgR e 50.414-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli. 7. O caso concreto versa sobre o fornecimento do medicamento Ibrutinibe 140mg (imbruvica), utilizado para tratamento oncológico, especificamente, de linfoma de células do manto (LMC) - (CID10: C85.7 - Outros tipos especificados de linfoma não-Hodgkin), com registro na ANVISA. 8. Nesse cenário, ao menos em cognição sumária, parece não ter sido observada a parte final da tese de repercussão geral, por ausência de direcionamento da ação ao ente legalmente responsável pela obrigação principal. 9. Assim, há plausibilidade nas alegações da parte reclamante. Considero igualmente presente o periculum in mora diante da fase avançada em que se encontra o feito de origem. 10. Do exposto, com base no art. 989, II, do CPC/2015, defiro a medida liminar pleiteada, para suspender os efeitos da decisão reclamada, mantendo, no entanto, os efeitos da tutela de urgência deferida na origem, de forma a garantir a continuidade de fornecimento do medicamento (Processo nº 0807957-42.2019.8.12.000).

É de suma importância salientar que não há descontinuidade na prestação do atendimento à saúde, ou seja, em todos os casos, foram mantidos os efeitos da tutela de urgência deferida, mesmo que contra um ente supostamente não responsável pela dispensação do medicamento/medida, de forma a garantir a continuidade de fornecimento e direito à saúde (art. 64, § 4º, do CPC).

Veja-se, ainda, o esclarecido pelo Exmo. Min. Alexandre de Moraes, Relator do RE 1331005[10]:

Após profícuos debates acerca da aplicação da tese fixada no Tema 793 da repercussão geral, a qual foi ratificada no julgamento dos Embargos de Declaração opostos nesse paradigma, a TURMA, por maioria, assentou que a demanda pode ser proposta em face de qualquer dos entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal, Municípios), isolada, ou conjuntamente; entretanto, deve-se atentar para as seguintes diretrizes: a) tratando-se de medicamento não padronizado/incorporado no RENAME/SUS, a UNIÃO deve necessariamente compor o polo passivo da lide; assim, a competência para julgar a lide é da Justiça Federal; b) no caso de medicamento padronizado no RENAME/SUS, porém cuja distribuição/financiamento está sob a responsabilidade exclusiva a UNIÃO, por exemplo, em razão dos altos custos dos medicamentos ou tratamentos oncológicos, a UNIÃO deve necessariamente compor o polo passivo da lide; assim, a competência para julgar a lide é da Justiça Federal; c) medicamentos não registrados na ANVISA, devem ser postulados necessariamente em face da UNIÃO, consoante fixado no Tema 500 da repercussão geral; e d) em todos os casos analisados, manteve-se a liminar deferida na origem a fim de preservar a saúde do paciente. Na ocasião, esclareceu-se, ainda, que, no que toca à parte final da tese, onde se lê que - a autoridade judicial tem o dever de determinar ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro tem incidência quando o Juízo concede a cautelar estabelecendo que um determinado ente federado cumpra obrigação que, na verdade, é de responsabilidade de outro. Nessa hipótese, assegura-se para o primeiro o direito de se compensar juntamente ao segundo das despesas decorrentes do cumprimento da cautelar. A ratio dessas conclusões decorre da letra da Lei 8.080/1990, que estabelece que o SUS atua de forma federalista, e estabelece as competência de cada ente federado, e também das seguintes premissas adotadas no julgamento das Reclamações supracitadas: 1) a inobservância das diretrizes elencadas nos itens a, b, e c acima têm o condão de desequilibrar as finanças dos entes subnacionais que, na maioria das vezes, não tem disponibilidade financeira para fazer frente aos custos dos medicamentos não incorporados ao SUS, ou, mesmo quando estão incorporados, a competência para distribuição ou o financiamento é da UNIÃO; 2) o direito de regresso contra a UNIÃO, quando essa não participou da lide, compromete o planejamento do orçamento federal, criando descompasso entre a previsão orçamentária e as despesas na área de saúde; e 3) a ausência da UNIÃO na lide, quando o fornecimento do medicamento está sob sua responsabilidade, impede que o ente federal exerça o direito constitucional ao contraditório e ampla defesa.

Portanto, em síntese, a União deve necessariamente compor o polo passivo da demanda, quando o medicamento ou o tratamento pleiteado:

1)      não tem registro na Agência Nacional de Vigilância - ANVISA (vide Tema 500-RG);

2)      não for padronizado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS CONITEC e incluído na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais RENAME ou na Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde RENASES;

3)      embora padronizado, não foi acrescentado ao Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas - PCDT ou recomendado por Relatório do CONITEC para a moléstia específica do requerente;

4)      tiver seu financiamento, aquisição e dispensação atribuídos à União, segundo as regras de repartição de competência;

5)      for para enfermidade oncológica.

Porém, com a devida vênia, entendo que cumpre fazer algumas observações ao entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal nos referidos casos.

 Nas situações em que a parte autora não indica a União Federal no polo passivo da demanda, é preciso seguir específico procedimento previsto no CPC/2015 relativo às regras de litisconsórcio. Ora, ninguém pode ser obrigado a demandar contra outrem, não é dado ao Juízo alterar, de ofício, o polo passivo. Desse modo, entendo que não poderia, de ofício, ser corrigido o polo passivo da demanda para incluir a União Federal e, em seguida, remeter o feito à Justiça Federal.

Dessa forma, revela-se obrigatória a obediência ao artigo 115, CPC, senão vejamos:

Art. 115 - A sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório, será:

I - nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos que deveriam ter integrado o processo;

II - ineficaz, nos outros casos, apenas para os que não foram citados.

Parágrafo único - Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo.

Uma vez não atendido o disposto no parágrafo único, não há outro caminho senão a extinção do feito, cumprindo ao autor a correção do polo passivo, não a alteração de ofício.

Observe-se, por fim, que o contorno dado pelo julgado da Suprema Corte indica que a União deve integrar, necessariamente, o polo passivo da lide, sem prejuízo da presença do estado e/ou município, nos referidos casos, o que parece implicar, como dito, a presença simultânea da União e de um dos outros entes, que são entendidos como executores diretos do Sistema Único de Saúde.

Poder-se-ia pensar, com efeito, que a presença simultânea da União e do Estado e/ou Município no litígio não é uma imposição imprescindível do ordenamento jurídico nacional, mas sim uma construção jurisprudencial, embora existente a solidariedade entre os entes federados nas demandas prestacionais na área da saúde, face à competência comum (art. 23, II, CF), o que poderia, portanto, justificar o seu enquadramento como um litisconsórcio meramente facultativo.

No entanto, nos termos do voto do Exmo. Ministro Relator da Reclamação nº 49.890, a presença da União no polo passivo, todavia, não prescinde da presença do estado e/ou do município, pois o fornecimento nunca () deverá ser feito diretamente pela União, o que leva à conclusão de que a Suprema Corte adota a orientação de que se trata de um litisconsórcio passivo necessário.

E, uma vez sendo necessário, são possíveis dois efeitos da ausência de participação do litisconsorte. Se a relação for unitária (exigência de conteúdos uniformes para todos os litisconsortes), haverá a anulação da sentença (art. 115, I, CPC/2015), para que o juízo determine ao autor que requeira a emenda da inicial para incluir a União, sob pena de extinção do processo. Por outro lado, se estivermos diante de um litisconsórcio necessário simples, a sentença apenas será ineficaz em relação àqueles que não participaram da relação jurídico-processual, nos termos do artigo 115, II, do CPC/2015.

Em outras palavras, se estivéssemos diante de um litisconsórcio necessário simples, seria plenamente eficaz a sentença em relação ao Estado, mas ineficaz no que tange à União, que não integrou a relação jurídico-processual e, portanto, não exerceu o contraditório.

Por outro lado, sendo o caso de relação unitária, como parece ter sido o posicionamento do STF no julgamento do referido tema 793, haverá nulidade, uma vez não promovida a citação do litisconsorte.

Anote-se, por pertinente, que o parágrafo único do art. 115 conserva, em substância, a regra do parágrafo único do art. 47 do CPC/1973: cabe ao autor providenciar a citação dos litisconsortes necessários (unitários ou simples, isto é indiferente) faltantes, sob pena de extinção do processo. O dispositivo, evidentemente, tem como destinatário o magistrado do processo em curso. Encerrado o processo e verificada a ausência de litisconsorte, aplica-se, então, o regime disposto nos incisos I e II do caput do art. 115.

Por fim, note-se que, até que seja atendido o disposto no artigo 115, CPC, e, havendo a inclusão da União Federal no polo passivo, deve ser dada solução de continuidade até sua apreciação pelo juízo competente, em aplicação do disposto no artigo 64, §4º do CPC. Dessa forma, cumpre manter a determinação de fornecimento do medicamento, como de fato tem sido a orientação da Corte de Uniformização da Jurisprudência Constitucional, até porque, caberá, possivelmente, ao Estado a sua dispensação e distribuição, ainda que tal advenha, eventualmente, de recursos repassados pelo Ministério da Saúde. Como já destacado, nos termos do voto do Exmo. Ministro Relator da Reclamação mencionada, a presença da União no polo passivo, todavia, não prescinde da presença do estado e/ou do município, pois o fornecimento nunca () deverá ser feito diretamente pela União.

É de se concluir, portanto, que, apesar do acertado entendimento da Suprema Corte, no sentido de que, não obstante a solidariedade entre os entes da federação nas demandas prestacionais na área da saúde, o juiz deve observar o direcionamento necessário do feito àquele responsável pela prestação específica pretendida, permitindo-se que o cumprimento seja direto e, eventual ressarcimento, eficaz, em atendimento às regras de repartição de competências administrativas, não se pode descurar da obediência aos ditames do Diploma Processual Civil no tocante às regras de litisconsórcio necessário, seja ele entendido como unitário ou simples. Daí por que se diverge, nesse ponto, da inclusão de ofício da União Federal no polo passivo da demanda, cumprindo apenas ao autor a sua alteração, nos termos do art. 115, CPC.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Presidência da República. Acessível em: www.gov.br

_______. Presidência da República. Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos 2022 RENAME. Acessível em: www.gov.br

STF. Supremo Tribunal Federal. Acessível em www.stf.jus.br


[1] BRASIL. Presidência da República. Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos 2022 RENAME. https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sctie/daf/20210367-rename-2022_final.pdf Acesso em 01.04.2022.

[2] BRASIL. Presidência da República. Disponível em https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/setembro/sus-completa-30-anos-da-criacao . Acesso em: 01.04.2022.

[3] Idem, ibidem.

[4] STF. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 49.890. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6276166 Acesso em 10.04.2022.

[5] Idem, ibidem.

[6] STF. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 49.890. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6276166 Acesso em 10.04.2022.

[7] STF. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 49.890. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6276166 Acesso em 10.04.2022.

[8] Idem, ibidem.

[9] STF. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 53.068. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1301433/false Acesso em 09.05.2022.

[10] STF. Supremo Tribunal Federal. RE 1331005. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1298817/false Acesso em 09.05.2022.

Sobre o autor
Jorge Américo Pereira de Lira

Diretor-Geral da Escola Judicial de Pernambuco (ESMAPE). Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco – TJPE. Membro titular da 1ª Câmara de Direito Público do TJPE. Professor da Escola Judicial de Pernambuco (ESMAPE). Ex-Promotor de Justiça do Estado de Pernambuco.

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