Tribunal Penal Internacional para Ruanda

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 1

2- CONTEXTO HISTÓRICO E ORIGEM DE RUANDA 2

3- OS CONFLITOS ÉTNICOS E O GENOCÍDIO DE 1994 4

4- A ATUAÇÃO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL E A OMISSÃO DA ONU 5

5- O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA 7

5.1- Organização e Composição do TPIR 8

5.2- Fases dos Julgamentos e Crimes da Competência do Tribunal Penal Internacional Para Ruanda 9

5.3- Julgamento dos Principais responsáveis pelo Genocídio 11

5.4- Análise da Atuação do Tribunal Penal Internacional Para Ruanda 16

6- O MOVIMENTO FEMINISTA E O CENÁRIO POLÍTICO E ECONÔMICO ATUAL 18

7- CONSIDERAÇÕES FINAIS 21

8- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 23

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho descreve o contexto histórico do genocídio ocorrido em Ruanda no ano de 1994 e faz uma análise da atuação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR), criado pela ONU para julgar os mentores e executores de um dos maiores massacres da história da humanidade. Além disso, busca-se fazer uma análise da atuação da Sociedade Internacional no conflito, mostrando por que o Conselho de Segurança e as potências ocidentais como Estados Unidos e França demoraram tanto para agir e impedir a morte de aproximadamente 800 mil pessoas.

A metodologia utilizada baseia-se na pesquisa bibliográfica, análise de filmes e documentários, vídeos, pesquisa em sites de domínio amplo e músicas que tratam sobre o tema. Para melhor entendimento das origens do conflito, suas consequências e os motivos que levaram à criação do TPIR, torna-se necessária uma breve apresentação do contexto histórico e da origem de Ruanda, bem como dos fatos que antecederam o genocídio ocorrido em 07 de abril de 1994.

Ruanda, país do continente africano com cerca de 26.338 km2, era formado basicamente por três etnias, originárias de pontos diferentes da África: twas, tutsis e a grande maioria hutus, que representavam cerca de 85% da população e protagonizaram um dos mais violentos e mortais ataques aos seus compatriotas tutsis. O evento ocorrido entre os meses de abril e julho do ano de 1994, com o apoio de órgãos governamentais do país e incentivo midiático culminou com o extermínio em massa de aproximadamente oitocentos mil pessoas, sem distinção de faixa etária, gênero, grau de parentesco e afinidades pessoais. Sendo assim, o genocídio brutal no país africano pode ser considerado uma das maiores violações aos direitos humanos da contemporaneidade.

Para melhor compreensão dos desdobramentos históricos e do papel desempenhado pelo Direito Internacional Público no conflito, o trabalho foi dividido em seis capítulos. O primeiro tem o objetivo de mostrar a formação de Ruanda, suas origens coloniais, seu processo de povoamento, a independência do país e os antecedentes do conflito étnico.

O segundo capítulo descreve a situação de tensão em Ruanda após a derrubada do avião que matou o então presidente Habyarimana. Depois desse episódio, o ódio entre as duas etnias cresceu e deu-se início ao massacre da população tutsi. Nesse período destaca-se o papel desempenhado pela mídia local, em especial a rádio RTML e o jornal Kangura no incitamento aos atos de genocídio e discriminação do grupo minoritário.

O terceiro capítulo aborda a função da Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda (UNAMIR) criada em 1993, os motivos que levaram ao fracasso do embargo de armas imposto pela ONU em maio de 1994, o polêmico papel desempenhado pela França e por organizações privadas de origem francesa na cumplicidade ao genocídio e a inércia da Sociedade de Estados para atuar e impedir a continuidade dos crimes.

O quarto capítulo apresenta as características, organização, composição e competências do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, a jurisdição temporal e material da Corte, as fases dos julgamentos e a jurisprudência aplicada ao tribunal com destaque para o processo de julgamento dos principais responsáveis pelo genocídio. A partir de uma descrição detalhada da dinâmica do tribunal, este capítulo analisa também a morosidade e falhas na organização do TPIR, os custos para manutenção da Corte, as penas aplicadas e a evolução do Direito Internacional Penal.

O quinto capítulo descreve as características do movimento feminista que surgiu em Ruanda após o genocídio, enfatizando o cenário político e econômico atual e em quais aspectos a população ruandesa foi favorecida, sob o ponto de vista de gênero, da redução das diferenças e retomada do diálogo entre os grupos sociais. Por fim é feita uma análise crítica da atuação da Sociedade Internacional no conflito e o papel do Tribunal Internacional para Ruanda na punição dos principais responsáveis.

2- CONTEXTO HISTÓRICO E ORIGEM DE RUANDA

Reconstituindo a história do país, verifica-se que os povos que compuseram basicamente sua população, vieram de pontos diferentes da África. Os pioneiros twas, de baixa estatura eram caçadores e coletores, habitavam nas florestas e representavam uma parcela mínima da população (1%). Lentamente, foram migrando para o território, os hutus (85%), agricultores provenientes do sul da África e os tutsis (14%), vindos do leste africano, se dedicavam a pecuária. Geneticamente se parecem, pois, hutus e tutsis eram descendentes do mesmo povo originário: os bantus.

A princípio a sociedade em Ruanda se organizou em forma de clãs, composto por pessoas dos 3 grupos da população, alguns desses agrupamentos familiares se aliaram, expandiram e posteriormente formaram reinos locais. Um dos que mais se destacou foi o reino que tinha o mesmo nome do atual país: Ruanda, governado pelos tutsis, passou a ser a força que predominava política, econômica e socialmente dentre os reinos da época. Gradualmente, os tutsis sobrepuseram os hutus e as diferenças sociais se destacaram entre os grupos. A dominação europeia na região tem início ao final do século XIX e o país não atraiu de imediato o interesse dos colonizadores, devido a sua localização e pouco metais preciosos. A Alemanha foi a primeira metrópole a assumir o controle local, porém, após a primeira guerra mundial, a Bélgica toma posse da região e a partir daí recrudesce as diferenças entre tutsis e hutus, que se elevam do âmbito social para étnico.

A colonização belga se baseava em políticas econômicas e raciais violentas. Embasados em pseudos com a teoria de diferenciações físicas, a população foi dividida e identificada a partir de características como formato nasal, tonalidade da pele, identificando-os por raça e sendo registrado em seu documento de identidade a sua origem. Aos tutsis foram dados privilégios extras, principalmente o acesso à educação, limitando ainda mais o crescimento social da maioria hutu, que lentamente foram organizando grupos reacionários.

Em 1962 Ruanda conquista a sua independência, vencendo o projeto político almejado pelos hutus, que passam a dominar politicamente o país e desse modo ocorre uma inversão do poder e os tutsis perdem seu predomínio, passando a ser discriminados e até mesmos humilhados publicamente.

Sob o argumento que eram maioria, os hutus passaram a governar Ruanda e a substituir líderes e políticos tutsis pelos hutus. Ao mesmo tempo em que o grupo extremista poderoso ganhava espaço o exército rebelde formado por tutsis que fugiram para o Uganda invadiu Ruanda, exército este que se chamava Frente Patriótica Ruandesa (FPR) formado por milhares de tutsis que haviam fugido do país em massacres anteriores, liderado por Paul Kagame que mais tarde se tornaria presidente do país. Kagame havia estudado estratégia militar no exército americano e usou seus conhecimentos para comandar o grupo.

A FPR avançou pelo nordeste de Ruanda para tentar derrubar o então presidente hutu Juvenal Habyarimana, o ataque foi a desculpa definitiva para a perseguição aos tutsis, apesar da irritação dos Hutus, o presidente cedeu às pressões internacionais e aceitou a negociar um tratado de paz com a FPR em 1994. O tratado enfureceu líderes hutus, mas sem hesitar o presidente foi para a Tanzânia para assiná-lo, uma viagem que acabou em tragédia, pois o avião em que estava o presidente foi abatido por um míssil e todos os passageiros a bordo morreram. Ainda não se sabe a autoria do atentado: extremistas tutsis ou hutus radicais que viam na moderação política do presidente uma ameaça ao poder recém conquistado.

3- OS CONFLITOS ÉTNICOS E O GENOCÍDIO DE 1994

O atentado ocorrido em 7 de abril de 1994 provocou o acirramento das rivalidades e grupos extremistas, em especial os INTERAHAMWE (homens que lutam), a ampla população hutu que difundem ainda mais o discurso de ódio. A França conduziu uma investigação visando averiguar e apontar o culpado pelo atentado ao presidente, porém o resultado foi inconclusivo, e os hutus atribuíram aos tutsis a responsabilidade dos atos.

Em poucas horas teve início aos ataques, ou seja, ao plano de extermínio dos tutsis, incentivado por políticos locais, milícias e pela mídia, que contribuíram de forma definitiva para que as questões étnicas e sociais se intensificassem e evoluíssem para a situação de extermínio da maioria hutus sobre a minoria tutsis. Os meios de comunicação através da fala e escrita em Ruanda, ampliaram as diferenças entre os grupos, com mensagens diretas e simples coordenavam e incitavam a violência. Os hutus eram conclamados a execução dos tutsis, transformando o conflito em um verdadeiro massacre generalizado. As armas comumente usadas eram facões e estima-se que em 3 meses, entre abril e julho de 1994 pouco mais de 800 mil cidadãos tutsis tenham sido mortos, de um total de cerca de 1 milhão e 250 mil habitantes, na época.

Pelo anseio dos colonizadores belgas em controlar os descendentes tutsis e hutus, eles reforçaram a rivalidade entre os dois grupos através da identificação via documento que constava sua origem étnica e com obrigatoriedade de ser apresentado nas fronteiras e barreiras montadas por todo o país. Por fim os hutus que fossem contrários ao extermínio em curso, também passaram a ser atacados e mortos.

Diante do quadro de terror que se apresentava, os estrangeiros foram estrategicamente retirados do país. Mais organizada e disciplinada que soldados e milícias hutus, a FPR avançou, ganhando territórios e venceu a guerra dando fim ao genocídio. Milhares de pessoas da etnia hutu temendo revanche tutsis, fugiram para os países vizinhos e entre os refugiados estavam integrantes dos grupos que promoveram o massacre. Muitos desses assassinos só foram julgados muitos anos depois quando voltaram para Ruanda ou foram capturados.

Ruanda estava devastada economicamente após o conflito, e uma das ações imediatas foi a retirada dos termos tutsi e hutu das carteiras de identidade, ficando também proibido negar o genocídio. Ruanda criou tribunais especiais chamados de Gacacas para julgar os acusados do extermínio. Entre 2002 e 2011, julgaram cerca de 2 milhões de pessoas, sendo 30% delas absolvidas, 10% condenadas a prisão perpétua e cerca de 60% sentenciadas a penas que variavam entre 5 a 25 anos de prisão, porém muitas críticas foram feitas em relação a eficiência das Gacacas pelos órgãos internacionais que apontavam a falta de profissionalismo, visto que a maioria dos juízes eram membros das comunidades sem qualquer formação em direito.

A FPR assumiu o poder com o fim da guerra e promoveu as primeiras eleições diretas em 2003, Paul Kagame que já havia sido eleito pelo parlamento no ano 2000, vence a disputa. Sendo reeleito em 2010 com 93% dos votos, o que levantou a hipótese de possível fraude nas eleições, mas nada foi comprovado.

4- A ATUAÇÃO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL E A OMISSÃO DA ONU

Em 1993 a ONU cria a Missão das Nações Unidas para Assistência à Ruanda (UNAMIR) com o objetivo de monitorar a paz entre os dois grupos étnicos do país: hutus e tutsis, após a assinatura de um acordo de paz para pôr fim aos conflitos entre os rebeldes da Força Patriótica Ruandesa (FPR) e o regime de maioria hutu. Chefiada pelo general canadense Romeo Dallaire, a UNAMIR também tinha a função de colaborar para a formação de um governo com a participação dos dois grupos. Contudo, a missão de paz da ONU possuía um número pequeno de veículos e soldados para atuar em Ruanda (MATTOS, 2007).

Em dezembro de 1993, antes do massacre iniciar, o Conselho de Segurança das Nações Unidas foi comunicado sobre o plano de extermínio dos hutus pelos tutsis, sobre o treinamento de milícias pelo governo e os depósitos de armas para promover o genocídio, mas o órgão da ONU não concordou com os pedidos de reforço de mais soldados para compor a UNAMIR e também a proibiu de intervir no conflito. É preciso ressaltar que a única ação tomada pelos países ocidentais na primeira semana do conflito foi o fechamento de suas embaixadas na capital Kigali e a retirada de estrangeiros que ainda se encontravam em Ruanda.

Outro fator que contribuiu para o enfraquecimento da UNAMIR foi o assassinato de treze soldados belgas pelas milícias enquanto eles faziam a segurança da primeira ministra Uwilingiyiamana, após a queda do avião que matou o presidente Juvenal Habyarimana. O objetivo dos hutus extremistas era fazer com que a Bélgica retirasse todos os seus soldados de Ruanda para facilitar o extermínio dos tutsis. Diante desse quadro de terror, forças internacionais interviram, porém de forma diplomática e pouco efetiva diante do quadro que se apresentava em Ruanda.

A Organização das Nações Unidas (ONU) agiu com morosidade e cuidados excessivos na tomada das decisões e o envolvimento dos membros em outros conflitos que decorria ao mesmo tempo no mundo, de certa forma favoreceu a ocorrência do extermínio tutsi. Quanto aos Estados Unidos da América (EUA), optaram por não se envolver em mais um conflito africano, pois haviam sido malsucedidos em uma intervenção na Somália.

A França enviou tropas que de certa forma apoiaram os grupos de extermínio e que atualmente uma instituição bancária Francesa responde a um processo por colaborar financeiramente com o genocídio, no período antes do ataque aos tutsis. A historiadora Cíntia Ribeiro Araújo, destacou em sua tese de mestrado, publicado em 20 de agosto de 2012, que Ruanda não despertava o mesmo interesse nas grandes potências por se tratar de um pequeno país na África Central, não possuía recursos minerais e que cuja missão de intervenção e pacificação não se fez urgente. Em suma, as grandes potências mundiais não reagiram eficaz e eficientemente na prevenção impedindo o massacre.

De acordo com Maia (2013), por meio da Resolução Nº 918 de 17 de maio de 1994, a ONU impõe um embargo de armas e materiais à Ruanda e autoriza o envio de mais soldados para o país, entretanto, os militares só chegam no continente africano em outubro de 1994, após a morte de quase um milhão de cidadãos tutsis. O embargo de armas não irá funcionar porque países como a França e Reino Unido continuaram a fornecer armamentos para o regime de maioria hutu.

Na interpretação de Mattos (2007), a França possuía uma relação muito próxima com o governo do ditador Habyarimana, segundo a autora:

Todavia, o interesse da França era em salvar seus investimentos feitos em Ruanda e também possuía forte ligação com o governo do presidente hutu Habyarimana, ou seja, França enviou armas e também treinou as milícias. Dois meses após o início do genocídio, o governo francês teve a ideia de programar uma expedição e oferecer uma zona de segurança em Ruanda. Em 22 de junho de 1994, o Conselho de Segurança autorizou o envio das tropas francesas, Operátion Turquoise a qual recebeu autorização para utilização da força caso fosse necessário. (MATTOS, 2007, pág. 34)

Maia (2013) afirma que os atos de violência e graves violações ao direito humanitário, ocorridos em Ruanda no período de abril a julho de 1994 eram tratados pela mídia internacional e pelas potências mundiais como uma mera guerra civil decorrente de conflitos étnicos, ignorando os preceitos contidos na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio aprovada pelas Nações Unidas em 1948. Para a autora, a demora da Sociedade de Estados para impedir o massacre em Ruanda demonstra uma certa seletividade do Conselho de Segurança para autorizar intervenções humanitárias, o que acaba por esconder reais interesses políticos e econômicos das grandes potências mundiais.

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Por que durante a Guerra do Golfo, ocorrida poucos anos antes do genocídio em Ruanda, o mesmo órgão da ONU aprovou uma intervenção militar no Kuait coordenada pelos Estados Unidos?

Diante desses fatos, pode-se concluir que houve uma falha da Sociedade Internacional para impedir que um grupo étnico fosse quase totalmente dizimado. Por outro lado, questiona-se a falta de interesse das nações ocidentais: França e Estados Unidos para intervir no conflito e evitar que milhões de vidas fossem perdidas.

5- O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA

Segundo Paula (2014), o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) foi criado no dia 08 de novembro de 1994 por meio da Resolução Nº 955 do Conselho de Segurança da ONU. A Corte foi criada com o objetivo de processar e julgar os responsáveis pelo genocídio, pelos crimes de guerra e graves violações ao Direito Internacional Humanitário. Foi definida que a sede do tribunal seria na cidade de Arusha na Tanzânia e este teria competência para julgar os crimes ocorridos em Ruanda no período de 1º (primeiro) de janeiro de 1994 a 31 de dezembro de 1994.

No que se refere à legislação aplicável ao TPIR, o Estatuto do tribunal estabeleceu as competências, os crimes que seriam julgados, as regras do direito processual aplicadas aos julgamentos e a organização da Corte. De acordo com Paula (2014), o estatuto do tribunal é baseado principalmente na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, nas quatro Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais. O autor afirma ainda que as regras processuais estão contidas no Regulamento Processual (RP) do TPIR e em seu próprio estatuto.

Cumpre destacar que o Tribunal Internacional para Ruanda é um tribunal ad hoc, ou seja, um tribunal criado de forma excepcional pela ONU para julgar os graves crimes ocorridos no país africano durante o ano de 1994 quando ocorreu o genocídio. Embora seja uma Corte autônoma, o TPIR não foi criado para ser um tribunal permanente e suas atividades estavam previstas para encerrar tão logo fossem julgados os acusados e os recursos apresentados pela defesa dos réus.

5.1- Organização e Composição do TPIR

Conforme o Artigo 10 do seu Estatuto, o TPIR é formado por três órgãos:

1) as Câmaras de Julgamento, local onde são realizados os julgamentos de primeira instância e a Câmera de Apelação, sediada em Haia (julgamento em segunda instância);

2) a Promotoria, responsável pelas investigações e acusações, chefiada por um promotor;

3) a Secretaria, responsável pelo apoio administrativo e jurídico às Câmaras e à Promotoria.

As despesas do Tribunal são custeadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e os idiomas utilizados são o inglês e o francês (Paula, 2014).

Os juízes do TPIR foram eleitos pela Assembleia Geral da ONU para um mandato de 4 anos. E cada Câmara de Julgamento pode ser dividida em seções, compostas por três juízes cada. Já a Câmara de Apelação possui sete juízes permanentes e cinco em cada apelação. Pelo critério de representatividade não pode haver dois nacionais do mesmo Estado no tribunal.

É preciso ressaltar que a competência temporária do TPIR está restrita aos crimes cometidos entre 1º de janeiro de 1994 e 31 de dezembro de 1994. A jurisdição do tribunal abrange os cidadãos de Ruanda que tenham praticado crimes da mesma espécie em estados vizinhos e as pessoas responsáveis por graves violações do Direito Humanitário no país africano.

Até abril de 2014, o Tribunal Internacional para Ruanda julgou 75 casos, 63 deles resultaram em condenação e 12 em absolvição dos réus. De acordo com Paula (2014), 14 processos não foram julgados porque 10 casos foram transferidos para a jurisdição nacional, houve duas desistências da promotoria e dois réus foram mortos antes do julgamento.

5.2- Fases dos Julgamentos e Crimes da Competência do Tribunal Penal Internacional para Ruanda

O processo criminal no Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi dividido nas fases de pré-julgamento, julgamento e apelação. A fase de pré-julgamento inclui as etapas de investigação, acusação e indiciamento, anterior à remessa do processo para o órgão judicial de primeira instância. As investigações são conduzidas com base em informações fornecidas pelos governos de outros Estados, órgãos das Nações Unidas e organizações não governamentais. Caso haja fundamentos para abertura de uma ação, o promotor elaborará um indiciamento contendo o resumo dos fatos e dos crimes e o encaminhará para uma das Câmaras de Julgamento. Confirmado o indiciamento o juiz poderá determinar prisões, detenções, entregas e transferências de pessoas para conclusão dos julgamentos. Nesse sentido a cooperação dos Estados-membros da ONU é essencial para o cumprimento das atividades do TPIR e prisão dos condenados. (PAULA, 2014).

A fase dos julgamentos possui os seguintes atos:

Em uma audiência preliminar, com a presença do acusado, a Câmara de Julgamento lerá o indiciamento, verificará o respeito aos direitos do acusado, confirmará se o acusado compreende a acusação e abrirá uma oportunidade para que se declare culpado ou inocente, ocasião em que também será marcada a data para o julgamento.

A declaração de culpa do acusado pode ser voluntária ou objeto de acordo entre a Promotoria e a Defesa. Constatando a Câmara de Julgamento que essa declaração de culpa é livre e voluntária, informada, inequívoca e fundada em evidência da existência do crime e da participação do acusado, será designada uma data para a audiência de julgamento (prolação de sentença). (PAULA, 2014, p.102 a 103).

No decorrer do processo as partes podem convocar testemunhas e apresentar provas, em seguida podem ser apresentadas as alegações finais, réplica e tréplica. Após a instrução, a Câmara de Julgamento se reúne para análise e conclusão das acusações. A sentença fixará a pena do acusado e a sua forma de cumprimento, considerando a gravidade dos delitos, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e as práticas de dosimetria da pena utilizadas em Ruanda. O TPIR pode aplicar somente a pena de prisão, podendo esta ser perpétua ou provisória.

A Câmara de Apelação pode rever uma decisão da Câmara de Julgamento quando houver erro que invalide a decisão ou erro que acarrete um não reconhecimento de um direito em face do estatuto do tribunal. Esse órgão jurisdicional também pode confirmar, reverter ou revisar as decisões de primeira instância, principalmente quando surgir um fato novo capaz de influenciar uma decisão já proferida pelas Câmaras de Julgamento.

As prisões provisórias são executadas na própria sede do tribunal em Arusha, já os acusados condenados à prisão perpétua cumprem suas penas em países que voluntariamente tenham indicado ao Conselho de Segurança da ONU a sua vontade de colaborar com o TPIR. A cooperação de outros países inclui a identificação e localização de pessoas, a entrega de documentos, prisão e detenção de pessoas a transferência de acusados.

Sobre os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, (Paula, 2014) afirma que o Estatuto da Corte tipifica o crime de genocídio de acordo com os preceitos da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948. Esse importante tratado internacional elenca como crimes dessa natureza: o homicídio de membros do grupo, ofensa grave à integridade física, imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo e sujeição intencional do grupo a condições de vida para provocar a sua destruição física, total ou parcial.

Segundo o autor, para caracterização do crime de genocídio é necessário que haja o dolo específico do autor com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Conforme o artigo 3º da Convenção de 1948, são atos puníveis com o crime de genocídio: a conspiração ou acordo com vistas a cometer o genocídio, o incitamento direto e público ao genocídio, o genocídio e a cumplicidade no genocídio.

Os crimes contra a humanidade estão definidos no artigo 3º do Estatuto do TPIR: homicídio, extermínio, escravidão, deportação, aprisionamento, tortura, estupro, perseguição fundada em política, raça ou religião e outros atos inumanos. Essas violações são decorrentes de ataques sistemáticos contra qualquer população civil com fundamento em nacionalidade, etnia, raça ou religião. A base legal desses crimes são as Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos adicionais.

O artigo 4º do Estatuto do TPIR prevê que os crimes de guerra serão punidos de acordo com o Artigo 3º comum as Convenções de Genebra de 1949 e também de acordo com o artigo 4º do Protocolo Adicional II de 1977. As disposições contidas nesse artigo visam proteger as ofensas contra a vida e a integridade física, a tomada de reféns, a dignidade das pessoas, as condenações e as execuções proferidas.

5.3- Julgamento dos Principais responsáveis pelo Genocídio

Jean Paul Akaeysu

O primeiro julgamento realizado pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) foi realizado em dois de setembro de 1998 e o primeiro réu a ser julgado foi Jean Paul Akayesu, nascido em 1953 na Comuna de Taba, ligada à Prefeitura de Giltarama, em Ruanda. Ele foi jogador de futebol do time local, teve cinco filhos, trabalhou como professor e inspetor da escola desta mesma localidade, líder reverenciado em sua comunidade e afamado por seus princípios, inteligência e integridade. Tornou-se politicamente ativo em 1991 e foi presidente do partido de oposição e depois prefeito eleito de Taba entre abril de 1993 a junho de 1994.

Segundo testemunhas, após o início do genocídio em sete de abril de 1994, Akayesu protegeu os tutsis e manteve a ordem e a integridade da comuna até a reunião de líderes em dezoito de abril de 1994, onde mudou completamente de postura e se alinhou com as forças governamentais visando resguardar seu futuro político e social. As testemunhas afirmavam ainda que ele passou a incentivar a população local a participar e realizar atrocidades.

Akaeysu, integrava a lista de foragidos da justiça de Ruanda, fugiu para o Zaire (hoje República Democrática do Congo), depois para a Zâmbia onde foi preso em dez de outubro de 1995. Em 13 de fevereiro de 1996 foi acusado pela promotoria do TPIR por genocídio (art. 2º, ETPIR), também por crimes contra a humanidade (art. 3º, ETPIR), violações do artigo 3º comum as Convenções de Genebra e violações do Protocolo Adicional II (art. 4º, ETPIR); somadas as acusações por ordenar e proteger soldados pelo cometimento de violação sexual contra mulheres. O indiciamento ainda apresenta que entre as vítimas tiveram torturas, estupros, maus tratos e no mínimo 2.000 tutsis foram mortos e Akaeysu nada fez para impedir ou mesmo tentou pedir ajuda.

Na audiência preliminar o réu se declarou inocente. O julgamento durou sessenta dias, houve sessenta testemunhas de acusação e treze de defesa que foram ouvidas pela câmara de julgamento.

Entre as provas de conflito armado foram considerados os atos de violência generalizados testemunhados por peritos. Referente aos assassinatos por ordem de Akaeysu, foram aceitos fatos e provas pela incitação ao genocídio, testemunhas do discurso feito numa reunião entre lideranças de Ruanda, entre outras provas.

A Câmara de julgamento no total julgou quinze acusações e concluiu que Akaeysu foi considerado culpado em nove (Artigos. 2º e 3º do ETPIR) e absolvido em seis restantes.

Culpado por homicídio, por ter ordenado e por ter entregues as vítimas para serem mortas (três acusações de crimes contra a humanidade), culpado por incitação ao genocídio (discurso instigando ataque e morte dos tutsis) e culpado por tortura (crime contra a humanidade).

Absolvido em acusações de violação do art. 3º comum as Convenções de Genebra e do Protocolo Adicional II.

A sentença promulgada pela câmara de julgamento foi de prisão perpétua, posteriormente a apelação feita teve todos os argumentos rejeitados e a sentença foi mantida.

Jean Kambanda

Jean Kambanda nascido em Butare, sul de Ruanda em 1955, era economista, banqueiro e filiado ao partido político e foi então nomeado primeiro ministro de Ruanda após a queda do avião que vitimou o presidente. No poder até dezessete de junho de 1994 participou do massacre de milhares de tutsis.

Preso em dezoito de julho de 1997 no Quênia, Kambanda foi entregue à custódia do TPIR. Foi acusado pela promotoria por ter falhado ao exercer indevidamente seu cargo e traído a confiança da população de Ruanda através de participação de reuniões, viagens pelo país e emissão de ordens que contribuíam para os massacres.

Kambanda foi indiciado pelas seguintes acusações: genocídio, conluio para cometer genocídio, incitamento e cumplicidade ao genocídio, crimes contra a humanidade (homicídio e extermínio) todas as violações aos Artigos. 2º ou 3º do ETPIR.

Durante a audiência preliminar e conforme acordo anterior entre a promotoria e o acusado, Kambanda foi o primeiro réu a declarar-se culpado pelos crimes de genocídio perante o Tribunal Penal Internacional para Ruanda.

Após analise, a Câmara de Julgamento, aceitou sua confissão e ele foi condenado por todas as seis acusações recebidas e mesmo tendo três fatores relevantes considerados como atenuantes como sua declaração de culpa, o alegado remorso e sua colaboração com a promotoria, Kamanda recebeu a pena de prisão perpétua.

Arrependido da confissão, Kabanda apelou tentando anulá-la e ainda questionou a pena aplicada, o que nada mudou. A Câmara de Julgamento recusou seu recurso e manteve a sentença que aplicou a prisão perpétua ao réu.

Julgamento da Mídia: Ferdinand Nahimana, Jean Bosco Barayagwiza e Hassam Ngeze

Segundo Paula (2014), em uma ação conhecida como Julgamento da Mídia, Ferdinand Nahimana, Jean Bosco Barayagwiza e Hassam Ngeze foram julgados juntos pelo TPIR, já que foram acusados sozinhos ou com a colaboração uns dos outros, de usarem a mídia como arma de guerra contra a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) e contra os tutsis, incitando a matança que ocorreria em Ruanda em 1994.

Esse julgamento foi um dos primeiros em um tribunal internacional em que jornalistas foram acusados de usar seu trabalho para colaborar com os crimes cometidos. O julgamento foi em conjunto, mas a promotoria apresentou acusações separadas.

Ferdinand Nahimana, nascido em 15 junho de 1950, historiador, militante da Supremacia Hutu é dos fundadores da Rádio Televisão Libres Des Mille Collines (RTLM). Ele foi acusado por sete crimes (art. 2º e 3º do EPTIR): conluio para cometer genocídio, genocídio, incitação para cometer genocídio, crimes contra humanidade (genocídio, extermínio e homicídio).

Jean Bosco Barayagwiza nasceu em 1950, advogado, também fundador da RTLM, diretor do Ministério de Relações Exteriores de Ruanda e membro do partido CDR (extremistas hutu). Barayagwiza foi acusado por nove crimes (art. 2º ,3ºe 4º do EPTIR): conluio para cometer genocídio, genocídio, incitação para cometer genocídio, crimes contra humanidade (extermínio e homicídio), além de mais duas acusações de violações ao Art. 3º comum às Convenções de Genebra e do Protocolo Adicional II.

Hassan Ngeze, nascido em vinte e cinco de dezembro de 1957, jornalista, dono e editor do jornal Kangura fundado em 1990, foi acusado por sete crimes: (art. 2º e 3º do EPTIR): conluio para cometer genocídio, genocídio, incitação para cometer genocídio, crimes contra humanidade (extermínio e homicídio).

Os três acusados ainda na fase de pré-julgamento declararam inocentes das acusações recebidas. Durante o julgamento, que durou 238 dias, a promotoria trouxe 47 testemunhas e a defesa apresentou 46 testemunhas.

Após minuciosa análise dos fatos e das provas tanto no uso do jornal, quanto da radio como instrumento de luta dos hutus contra os tutsis, feita pelos acusados com o intuito de destruir seus rivais, a câmara de julgamento considerou os três culpados.

Ferdinand Nahimana e Hassam Ngeze, condenados em cinco acusações, receberam pena de prisão perpétua. Jean Bosco Barayagwiza também condenado por cinco acusações, teve a mesma pena, prisão perpétua, que mais tarde sofreu uma alteração e foi reduzida para trinta e cinco anos, por causa da violação dos seus direitos ocorrida durante sua prisão.

A apelação recorreu e o TPIR teve que alterar a sentença levando em conta a jurisdição temporal, tomando como referência o período inicial do genocídio. Com a nova análise algumas provas se perderam e algumas mudanças entre condenações e absolvições aconteceram.

No final foi descontado o tempo que cada um havia passado preso e então Ferdinand Nahimana foi condenado a uma pena de 30 anos, Hassam Ngeze recebeu 35 anos e Jean Bosco Barayagwiza 32 anos.

Julgamento de Théoneste Bagosora, Gratien Kalibigi, Alous Nabakuze e Anatole Nsengiyumva

Este julgamento juntou quatro militares que segundo o TPIR seriam os corresponsáveis pelo genocídio em Ruanda.

Théoneste Bagosora, nascido em 16 de agosto de 1941, em Gisenyl, pertencente ao grupo étnico hutu, ex-militar que voltou à ativa, chefe de gabinete no Ministério da Defesa de Ruanda em 1994, e considerado o verdadeiro idealizador do genocídio. Acusado de aproveitar-se da morte do presidente para assumir as Forças Armadas, implantar o plano de genocídio dando ordens para os massacres e as violências que aconteceram em todo o país.

Se exilou no país que hoje é a República Democrática do Congo, depois em Camarões, local onde foi preso em 1996 para ser julgado.

Os também militares de carreira Gratien Kalibigi, comandante do órgão de operações (G-3) das Forças Armadas; Alous Nabakuze comandante da tropa de elite e Anatole Nsengiyumva que comandava o setor operacional de Gisenyil (l-2), auxiliaram Bagosora.

Vale ressaltar que os quatro declararam inocentes perante o TPI.Segundo a promotoria os quatro foram acusados de conluio para cometer genocídio, genocídio, crimes contra a humanidade (homicídio, extermínio, estupro, perseguição, entre outros), violações do art. 3º comum às Convenções de Genebra e do Protocolo Adicional II (violência e outros ataques a dignidade pessoal), crimes nos art. 2º, 3º e 4º do ETPIR.

Este julgamento do TPIR foi o mais complexo e levou 428 dias, foram convocadas 242 testemunhas, e depois de muita análise em cada crime referente a cada um dos acusados a Câmara de Julgamento sentenciou da seguinte forma: Bagosora foi condenado em dez das doze acusações; Ntabakuze foi condenado em seis das dez acusações; Nsengiyumba condenado em seis das onze acusações e por último Kabiligi foi totalmente inocentado e solto pelo TPI.

Théoneste Bagosora, Alous Nabakuze e Anatole Nsengiyumva, condenados à prisão perpétua apelaram da decisão do Tribunal e inúmeras acusações foram revertidas e outras mantidas, o que fez uma espantosa reviravolta nas sentenças. Desta vez, Nsengiyumva teve sua pena reduzida para quinze anos e o réu foi solto imediatamente (réu preso desde 1996); Ntabakuze recebeu pena de 35 anos de prisão e Bagosora considerado mentor do genocídio, teve pena reduzida também para 35 anos de prisão.

Uma decisão que gerou muitas críticas ao Tribunal, pois este julgamento se comparado com o primeiro, que condenou o líder local Akayesu a pena de prisão perpétua e agiu apenas em uma localidade de Ruanda, foi considerado por muitos especialistas como desarrazoado e desproporcional.

5.4- Análise da Atuação do Tribunal Penal Internacional Para Ruanda

Partindo de uma análise geral sobre a atuação da Sociedade Internacional no genocídio, Paula (2014) afirma que a criação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi a única medida efetiva que a Organização das Nações Unidas (ONU) e as potências ocidentais apresentaram para o conflito. O Conselho de Segurança poderia ter aprovado o envio de mais soldados para auxiliar a força de paz da ONU antes do início do massacre. Durante o conflito os Estados Unidos não demonstraram nenhum interesse em fazer uma intervenção direta em Ruanda para impedir as mortes, seja através do envio de militares ao país ou mesmo por meio de ações diplomáticas para reprimir os crimes.

O TPIR foi criado com o objetivo de julgar e processar os responsáveis pelo genocídio de forma a reparar o sofrimento das vítimas, mas é importante ressaltar que o tribunal não evitou o cometimento de graves violações ao Direito Internacional, pois a sua criação se deu após a chacina de quase um milhão de cidadãos ruandeses. Por outro lado, é preciso reconhecer que a criação de um tribunal internacional com sede em outro país contribuiu para a realização de julgamentos imparciais e respeito ao direito dos acusados.

Paula (2014) critica a excessiva demora no julgamento de alguns réus e cita como exemplo a condenação do principal mentor do genocídio, Théoneste Bagosora, que aguardou mais de 12 anos na prisão provisória até ser julgado pela 1ª instância da Corte. Jean-Bosco Barayagwiza, um dos dirigentes da rádio que incentivou o extermínio de grande parte da população, obteve redução de pena pela Câmara de Julgamento porque foram desrespeitados alguns dos seus direitos na prisão. Estes fatos demonstram a falta de organização do tribunal e a morosidade na condução dos procedimentos. O autor ainda destaca os elevados custos com a manutenção do TPIR:

O custo de toda a estrutura necessária para manter o TPIR por todo este tempo, desde a sua criação, também é objeto de ressalva na doutrina. Ainda no ano 2000, já haviam sido gastos com o TPIR, desde seu início, 400 milhões de dólares (para algumas poucas condenações até então), enquanto muitos dos refugiados da guerra civil em Ruanda ainda permaneciam sem estrutura adequada em campos ao longo da fronteira ruandesa. É de se estimar que a mesma quantia foi gasta desde então para manutenção do TPIR (PAULA, 2014, p. 173).

O limite temporal de apuração dos crimes pelo TPIR também é outro ponto de crítica por parte de alguns estudiosos que analisaram o assunto, pois diversos atos genocidas foram planejados e colocados em prática antes do período de 1º de janeiro de 1994 a 31 de dezembro de 1994, como por exemplo a veiculação de notícias falsas pelo jornal Kangura, o treinamento de milícias pelo exército do governo de Ruanda e a importação de armas de outros países.

Mesmo com diversas críticas, pode-se afirmar que o funcionamento do TPIR possibilitou o julgamento dos maiores líderes do genocídio em Ruanda, trazendo um alento para as vítimas e familiares de um dos maiores massacres da história da humanidade. Além disso, o tribunal contribuiu para a evolução do Direito Internacional Penal, favorecendo a criação de uma ampla jurisprudência para os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Nota-se inclusive que todo o arcabouço jurídico utilizado na instauração e desenvolvimento do TPIR será utilizado na instalação do Tribunal Penal Internacional (TPI).

Embora tenha ocorrido uma vasta disseminação das informações quanto a divulgação dos resultados dos julgamentos do TPIR para a Sociedade Internacional, a população ruandesa teve pouco conhecimento das notícias sobre as condenações, principalmente porque os órgãos responsáveis por processar os réus eram sediados em outros países.

6- O MOVIMENTO FEMINISTA E O CENÁRIO POLÍTICO E ECONÔMICO ATUAL

O combate ao patriarcado e suas implicações acompanham a história das mulheres desde os primórdios da humanidade. Esse modelo de sociedade, onde as pautas femininas são definidas, selecionadas e julgadas pelo gênero masculino é uma das bandeiras de luta das mulheres na atualidade. Em Ruanda, não foi diferente, o modelo patriarcal e hierarquizado também estruturou a sociedade ruandesa em sua construção histórica.

As ações pré e pós genocídio de 1994 produziram um efeito devastador na população feminina. A mulher, no geral, já era considerada um ser inferior política, econômica e socialmente, independentemente de sua etnia. E a violação aos direitos humanos já se fazia presente. De forma geral as mulheres já eram subordinadas aos homens, conforme afirma Bárbara Santolin Rodrigues:

A sociedade ruandesa, assim como muitas outras, era extremamente marcada pelo patriarcalismo e pela patrilinearidade, de modo que as mulheres são consideradas subordinadas aos homens, sejam eles pais, irmãos ou maridos, além de não possuírem acesso à política e à economia e nem direito a propriedade. (RODRIGUES, 2020, p. 164)

O conflito político e social ampliou absurdamente essas diferenças e as mulheres tutsis passaram a ser o alvo preferencial, pois nelas foi canalizado todo o ódio da etnia hutu construído através da história da população ruandesa. As mulheres tutsis carregavam uma imagem estereotipada, o pensamento masculino enxergava nelas o ideal de beleza e sedução capazes de dominar os homens, enquanto as mulheres hutus eram consideradas servis.

Agredir, violentar e eliminar as mulheres tutsis, virou a meta principal de muitos extremistas e apoiadores hutus como forma de garantir o seu predomínio social e político, destruindo todas as possibilidades de reorganização dos agredidos. Milhares morreram e as sobreviventes, foram profunda e moralmente marcadas pelas violências vistas e sofridas, a ponto de silenciarem diante às atrocidades, dificultando a punição dos criminosos:

As violações de mulheres, no Ruanda, serviram como arma de guerra para a limpeza étnica dos/as BaTutsi: possuir a mulher do inimigo adquire o significado simbólico de possessão e vitória sobre o mesmo, de destruição moral, política e étnica do inimigo. Atualmente a violência com base no gênero (VGB) é já́ considerada crime de guerra pelo Tribunal Internacional, mas torna-se complicado nestas situações obter depoimentos das vítimas e identificar os agressores. Muitas mulheres sofrem de estigma e discriminação pelo fato de terem sido violadas ou terem engravidado do inimigo, por isso não os denunciam (SILVA, 2011, p. 101).

As violações contra as mulheres persistiram durante o conflito sem nenhuma atitude efetiva da Sociedade Internacional para coibir os crimes, mesmo diante de um amplo e consolidado ordenamento jurídico internacional já aprovado pelos países como a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948. Nesse sentido, é importante mencionar os atos que o referido documento conceitua como genocídio:

Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional. étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; (BRASIL, [2022]).

Houve resistência em definir o ocorrido em Ruanda como genocídio, mesmo diante das quase um milhão de vidas violentamente assassinadas. Foi fundamental a organização feminina para que tivessem voz e se fortalecessem para a reconstrução do país e retomada da vida, elas necessitaram de um empenho e envolvimento superior para que houvesse justiça às mulheres da etnia tutsi.

Rodrigues (2020) também destaca a pesquisa reproduzida abaixo, quase a totalidade das vítimas sobreviventes sofreu abusos sexuais graves:

Uma pesquisa feita pelo Ministério da Família e de Apoio a Mulheres em colaboração com a UNICEF, trazida também no texto de Binaifer Nowrojee, mostrou que a idade média das vítimas era de 20 anos. De 504 vítimas, 28% tinham menos de 18 anos; 43.75% possuíam entre 19 e 26 anos; 17.1% estavam entre 27 e 35 anos; e mulheres com mais de 45 anos também participam da porcentagem (NOWROJEE, 1996 apud RODRIGUES, 2020, p. 165).

Atualmente Ruanda avançou social e economicamente, e o país tem investido na tecnologia, produção agrícola, turismo e infraestrutura. Ocorreu redução da pobreza de 59% para 44,9%, e a economia cresce cerca de 8% ao ano. A renda per capita por cabeça triplicou em 20 anos. A taxa de alfabetização é de 51%. Paul Kagame é visto como homem responsável por frear o genocídio no país, mas ao mesmo tempo recebe críticas de organizações internacionais que o acusam de governar o país autoritariamente, visto estar à frente do governo por quase duas décadas, porém os hutus o acusam de não punir tutsis acusados de matar hutus, após o genocídio.

Se refazer e reconstruir o país, passou a ser uma meta feminina, assumir seu espaço e buscar sua voz gerou frutos em Ruanda, pois o país se destaca pelo alto percentual de mulheres na política. E indicadores sociais mostram que há um tratamento mais igual nas questões de gênero. Afirma-se também que pós massacre a população ruandesa contou com o percentual de 70% a mais de mulheres em relação aos homens, o que favoreceu a sua organização e crescimento. Isso se deve ao fato de que as mulheres sobreviventes tutsis e hutus precisaram ocupar o papel masculino depois que muitos homens foram mortos ou fugiram do país.

7- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após uma análise crítica da atuação da Sociedade de Estados perante o massacre ocorrido em Ruanda no ano de 1994 é possível afirmar que o conflito representou um verdadeiro fracasso dos Organismos Internacionais e das potências mundiais para conter as graves violações aos direitos humanos no país africano. Algumas ações tomadas pela Organização das Nações Unidas como o embargo de armas e materiais à Ruanda não funcionou porque países aliados ao regime de maioria hutu e até mesmo organizações internacionais privadas como o banco francês Paribas contribuíram para a venda e o fornecimento de armamentos em plena vigência da resolução imposta pela ONU.

Um triste evento na história da humanidade, marcado principalmente pela inércia e desinteresse daqueles que poderiam ter evitado ou interrompido o conflito como o Conselho de Segurança da ONU, a França e os Estados Unidos, sendo o Tribunal Internacional para Ruanda considerado a única resposta efetiva da Sociedade Internacional para o sofrimento das vítimas.

Vale ressaltar que a Sociedade de Estado em geral não tratou a crescente e histórica rivalidade entre os hutus e tutsis com o devido entendimento e precauções que se faziam necessárias. Isso pode ser explicado pelo fato de Ruanda não possuir riquezas, recursos naturais, hard power, soft power ou até mesmo uma posição geográfica favorável que justificasse uma atuação mais contundente dos Organismos Internacionais. Soma-se a isso as experiências negativas dos Estados Unidos na Somália no qual os governantes receberam forte crítica da opinião pública norte-americana quanto aos elevados curtos das missões de paz e perda de soldados.

As lideranças políticas e órgãos internacionais não consideraram urgente a necessidade do envio de mais soldados para reforçar a atuação da UNAMIR ou mesmo agir de forma direta para intervir no conflito. O comportamento do Conselho de Segurança no caso do genocídio em Ruanda é considerado seletivo por alguns autores, pois no caso do conflito na Bósnia e Guerra do Golfo que aconteceram anos antes o mesmo órgão autorizou o uso da força e a intervenção militar.

Diversos estudiosos do tema apontam que houve certa benevolência aos planejadores do extermínio, pois a jurisdição temporal da Corte de Ruanda não abrangeu os atos preparatórios anteriores a 1º de janeiro de 1994. E quanto aos réus julgados e considerados mentores e executores do massacre alguns receberam penas de prisão perpétua e outros foram sentenciados com penas que variam de 30 a 35 anos. De modo geral, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda cumpriu o seu papel, punindo e condenando os principais responsáveis pelos crimes cometidos no país africano. Entretanto, há diversas críticas a respeito do seu funcionamento como demora no processamento dos réus, desproporcionalidade quanto à fixação da pena de alguns condenados e custos elevados para manutenção da Corte. Lado outro, é importante ressaltar a construção de uma vasta jurisprudência para os crimes de graves violações ao direito humanitário e a consequente evolução do Direito Penal Internacional no período.

Muito há de se fazer para que possa julgar os crimes sexuais cometidos durante o Genocídio de Ruanda, e enquanto as abordagens não se tornarem mais inclusivas no sentido de incorporarem mais mulheres para atuarem a favor daquelas que são vítimas da desigualdade de gênero, não há como garantir que se atingiu o maior nível possível de reparação. Contudo, destaca-se na atualidade a gradativa recuperação de Ruanda no cenário político, econômico e social com redução das diferenças e respeito às individualidades.

8- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Ana Cristina. Contos sobre Ruanda: uma análise crítica sobre o genocídio ruandês de 1994. Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Instituto de relações internacionais, 2005.

BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Promulga a convenção para a prevenção e a repressão do crime de Genocídio, concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Rio de Janeiro, Presidência da República, [2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1952/D30822.html. Acesso em 16 mai. 2022.

HATZFEL, Jean. Uma temporada de facões: relatos do genocídio de Ruanda. São Paulo, Companhia das letras, 2005

MAIA, Daniele Lovatte. Hotel Ruanda: os dilemas das intervenções humanitárias e a busca dos direitos humanos através da arte. In: GALUPPO, Marcelo Campos; RUIZ, Ivan Aparecido (Org.). Direito, arte e literatura. Florianópolis: FUNJAB, p. 313-330. 2013.

MATTOS, Vívian Cantanhede Mattos. O Conflito de Ruanda. Uma breve análise da atuação da ONU. 2007. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do UNICEUB. Brasília, 2007.

PAULA, Luiz Augusto Módolo de. Genocídio e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, 1ª ed. Curitiba: Appris, 2014.

RODRIGUES, Bárbara Santolin. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda e a proteção de mulheres vítimas do genocídio. Polifonia - Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, São Paulo, n. 5, p. 159-173, 2020. Disponível em: https://apd.org.br/wp-content/uploads/2020/07/TEXTO-05.pdf. Acesso em 25 mai. 2020.

Sobre os autores
Paloma Cristina da Costa Oliveira

Graduada no Curso de Direito - Faculdade Pitágoras Belo Horizonte - MG

Jaderson Lourenço

Acadêmico do curso de Direito pela Faculdade Mineira de Direito Campus Contagem PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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