Um exercício da cidadania: Pagar aquilo que realmente é devido, e não, aquilo que os bancos impõem.

27/05/2022 às 18:58
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Por ser uma das repúblicas mais jovens do mundo, o Brasil caminha a passos lentos na concepção do significado e conceito mais amplo daquilo que se conhece como cidadania, aqui, este conceito vincula-se quase sempre e exclusivamente ao direito ao voto.

Cidadania possui uma amplitude conceitual muito maior, já que gravita não somente campo do cumprimento de deveres por parte do cidadão, como também, no resguardo de seus direitos por parte do Estado, por poderes que foram constituídos pelo próprio cidadão no país onde vive.

Muitos exemplos poderiam ser trazidos a respeito de notórios casos de descumprimento de deveres e ausência de proteção por parte do Estado brasileiro contra abusos protagonizados por instituições, públicas e privadas. Porém, um dos fatos sociais e econômicos que mais desperta a atenção, é a relação parasitária existente entre bancos e correntistas, presenciadas diariamente e de forma omissiva, tanto por parte de cidadãos que optam pela inércia e aceitação, como por parte do Estado, também inerte por conta da já mencionada inércia de sua população

Bancos e instituições financeiras representam o capital especulativo e obtêm o lucro a partir do capital morto, aquele capital que é emprestado a seus correntistas. Já o capital produtivo, é aquele que é representado dentre outros, por milhões de pequenos e microempresários que se levantam todos os dias com a missão de abrir seus pequenos, médios e micro estabelecimentos para produzir através de comércio, indústria e serviços, enfrentando o contas a pagar inseridos em um cenário de perversa carga tributária, tendo ainda que gerir não somente os empregados, fornecedores e cliente, como também, problemas vinculados à burocracia do Estado brasileiro.

Milhares de notícias veiculadas diariamente nas redes sociais, mídia e veículos de comunicação, indicam a construção que há décadas bacos e instituições financeiras vem auferindo lucros vultosos, na mão inversa do fechamento de inúmeros pequenos, médios e micro negócios. É o capital especulativo ocupando o lugar de elite econômica do capital produtivo.

Os cinco maiores bancos do brasil, que detêm 81% dos negócios que circulam entre as instituições financeiras são: Itaú, Bradesco, Santander, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil[2].

A contradição entre o lucro do capital especulativo e o prejuízo do capital produtivo que acarreta muitas das vezes a sua quebra, ocorre pela abusividade praticada por bancos e instituições financeiras, principalmente, no que se refere a abusividade na taxa de juros desproporcionais, cobrança de taxas financeiras indevidas e construção de saldo devedor superior àquele que realmente é devido. Tudo isto, sob a cúmplice omissão do Estado brasileiro.

Mencionamos a cumplicidade do Estado brasileiro no aumento desproporcional dos lucros dos bancos que tem como consequência a quebradeira generalizada no país de pessoas físicas e jurídicas, por se omitir na produção de leis que funcionem como um freio e impeçam este abuso financeiro praticado contra cidadãos correntistas que se endividam, e na maioria das vezes, perdem seu patrimônio que foi construído ao longo dos anos pelo trabalho.

Bancos e Instituições financeiras possuem um forte aliado que visa evitar a mão protetiva do Estado sobre seus cidadãos: a poderosa FEBRABAN Federação Brasileira de Bancos, que, como congregadora dos interesses de seus filiados, realiza mediações com todos os setores da sociedade, inclusive, com o congresso nacional.

Mesmo em avançada idade e iniciando o terço final da vida, ainda ouço a mesma lenda urbana que ouvia em minha mocidade, onde naquela oportunidade já era afirmado por políticos e especialistas em geral, que não seria possível criar leis para diminuir a taxa de juros bancário, justificando que somente o mercado poderia regular o percentual ideal a ser cobrado por bancos e instituições financeiras. Como se o mercado pudesse gerar algum tipo de felicidade generalizada através do estabelecimento de uma taxa justa e suportável para o correntista brasileiro, sem que isso implicasse em sua degeneração financeira.

O tempo, este ser intangível e cruel, se por um lado impõe um grande efeito e limitação sobre os nossos corpos, por outro lado e como uma espécie de compensação da natureza, tem o poder de revelar a verdade. E a verdade, é que o mercado nunca foi capaz de trazer as taxas de juros bancários a patamares razoáveis, permitindo o pagamento de prestações e saldo devedores sem atingir a saúde financeira dos correntistas.

Diferentemente da lenda urbana disseminada em nosso país, em outros Estados mais avançados e onde o conceito mais ampliado de cidadania já foi incorporado pela sociedade, as regras de proteção estatal existem como freio que impedem abusos de bancos e instituições financeiras.

Em Portugal, o decreto lei nª 133 de 2 de junho de 2009 que passou a vigorar a partir de 1 de julho do mesmo ano, incluiu em seu artigo 28 um mecanismo de limitação das taxas de juros com base na média praticada pelo mercado.

Na Itália, o artigo 1.284 do código civil estabelece que na ausência de taxa contratual estipulada, a taxa de juros a ser aplicada nos contratos de empréstimo é de dez por cento ao ano. A rigidez do código italiano contra a especulação financeira fica explícita no artigo 1.282 do código, que estabelece ainda que na hipótese de se estipular contratualmente juros usurários, a cláusula é nula e os juros serão reduzidos ao patamar mínimo de dez por cento ao ano estabelecido no já mencionado artigo 1.284.

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A Espanha criou no ano de 1908 a lei de repressão à usura, mais conhecida naquele país como Ley Azcárate e prevê a nulidade do contrato de empréstimo que estipule juros muito acima do normal e manifestamente desproporcional com as denominadas circunstâncias do caso.

O empréstimo é presumidamente gratuito na Alemanha com base no que estabelece o artigo 608 do código civil daquele país, sendo que há um dispositivo de limitação da taxa anual de juros prevista no parágrafo 247 que estabelece que se for fixada uma taxa de juros superior a 6% ao ano, após seis meses o devedor poderá denunciar o contrato e devolver o capital emprestado.

No E.U.A., meca do capitalismo, as taxas de juros são reguladas por leis estaduais que estabelecem limites máximos de sua estipulação em cada estado. A única lei federal que regula a taxa de juros transformou-se em forte instrumento de proteção contra a usura, uma vez que refletiu seus efeitos na área penal.

É a Racketeer influenced and corrupt organizations Act, de 1970, conhecida como RICO Act, onde ficou estabelecido que, centrando investigações em empresas (enterprises) com indício de fraude e verificando se em seus negócios foi estabelecida a cobrança de juros em patamar superior ao dobro da taxa que foi prevista em lei estadual, fica configurado o crime de agiotagem punível com multa de US$ 250 mil e/ou prisão de até vinte anos.

Embora no E.U.A. cada estado discipline a aplicação das taxas de juros a grande maioria gravita entre 6% e 12% ao ano, podendo variar de 8% (Alabama) até 45% ao ano (Colorado e Oklahoma), onde naquele país as cortes norte americanas atuam firmemente em defesa dos interesses do consumidor, evitando assim a especulação usurária do capital na meca do capitalismo.

Ao lançar um olhar interno sobre a relação entre bancos e correntista em nosso país ao mesmo tempo em que observamos a mencionada legislação protetiva internacional, concluímos por uma forte hipótese de que há no sistema global capitalista, uma espécie de compensação visando manter altos lucros de bancos e instituições financeiras: para que a taxa de juros possa ser regulada em alguns países como os acima citados, além de muitos outros, e assim, diminuído seus lucros, essa taxa deve ser exagerada em outros países. Mais especificamente em países da América Latina, do continente africano e de parte da Ásia.

No Brasil, por conta da já mencionada omissão legislativa que não produz leis em defesa do correntista, quem vem legislando é Superior Tribunal de Justiça STJ, atendendo que aqueles que judicializam suas dívidas.

O Poder Judiciário pode (e deve) legalmente legislar dentre outras hipóteses, nos casos de omissão legislativa utilizando a técnica do freios e contrapesos, ou check and balances, aplicado em todo mundo por ser um avanço da teoria dos três poderes independentes, criada por Montesquieu, ícone do iluminismo europeu.

Neste aspecto, o Poder Judiciário vem concedendo a revisão de dívida bancária (empréstimo, financiamento, cheque especial, cartão de crédito e financiamento de imóvel), inclusive da confissão de dívida bancária, decretando a limitação da taxa mensal de juros e afastando taxas e índices de correção ilegais do saldo devedor. Tudo em defesa não somente do princípio da boa-fé contratual, como também, do princípio da função social dos contratos.

No exercício da minha atividade realizando cálculos e revisando dívidas, por diversas vezes pude observar que ao impactar na cobrança do banco o expurgo dos abusos tal como determinado pelo STJ, não foram poucas as vezes em que o correntista mudou de posição: de devedor, passou a ser credor do banco. Isso porque pagou tantos juros e taxa indevidas, que a compensação corrigida acaba absorvendo toda a dívida cobrada.

O Brasil foi descoberto no ano de 1.500 e a primeira vez que o país começou a realizar um desenho de Estado, se deu com chegada da família real em 1.808, quando D. João VI, o príncipe que tinha medo de trovões e caranguejos, elevou o país de colônia a Reino Unido Brasil-Portugal-Algarves.

Foram 308 anos no mais puro obscurantismo da colônia, e neste período entre descoberta e elevação do país, ventos do iluminismo e do renascimento modificaram culturas na Europa, influindo no comportamento de indivíduos e de sociedades que se negaram a continuar ser servos para enfim, alçar a condição de cidadãos.

Esperamos que esses ventos, ainda que tardio, aportem por aqui.

  1. .......

  2. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/04/30/por-que-bancos-brasileiros-estao-entre-os-mais-rentaveis-do-mundo.htm

Sobre o autor
Wagner Vieira Dantas

Advogado, contador, administrador, perito judicial contábil e professor de Direito Contratual e de Falências e Recuperação de Empresas da Fundação Getúlio Vargas.Por Wagner Vieira Dantas

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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