O Princípio da Insignificância Aplicado ao Crime de Furto Simples: Uma Análise dos Vieses das Decisões Judiciais

29/05/2022 às 00:59
Leia nesta página:

Uma punição só deve ser admitida na medida em que abre chances no sentido de evitar um mal maior

Jeremy Bentham

Introdução

O presente trabalho busca investigar a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela a casos de furtos simples, por meio da análise de jurisprudências e de notícias jornalísticas e com apoio de teorias doutrinárias do direito. O objetivo que se almeja é uma melhor compreensão da subjetividade das decisões dos juízes e do porquê de ora se aplicar, ora não se aplicar o referido princípio ao caso concreto.

Se a punição rigorosa dos crimes, com penas desproporcionais ao dano causado pela conduta do agente condenado, não se tem demonstrado eficaz como meio apto a coibir potenciais delinquentes, tampouco parece ter diminuído a ocorrência de crimes violentos.

Busca-se entender por quais possíveis razões nem a lei, nem a jurisprudência dos tribunais dão sinais de mudanças, no sentido de adotar diferentes entendimentos e estratégias sobre como lidar com as questões criminais, notadamente nos crimes de patrimônio, objeto deste trabalho.

Almeja-se verificar se o viés das decisões dos juízes possui algum poder de interferir no curso dessa mudança, como alguns doutrinadores abordam a questão e se já se apresentam propostas alternativas capazes de mudar a tez do caráter punitivista do sistema jurídico pátrio e frear, ou ao menos desacelerar, o encarceramento em massa.

Contexto de Precarização das Condições Sociais: Ambiente Propício ao Aumento dos Crimes contra o Patrimônio?

Em 26 de abril do ano de 2021 o mês mais letal da pandemia de Covid-19 no Brasil até o presente momento (FOLHA, 2021) , dois homens negros, Bruno Barros, de 29 anos, e Yan Barros, de 19 anos, sobrinho de Bruno, foram encontrados mortos dentro do porta-malas de um carro, com visíveis sinais de tortura e de ferimentos causados por projéteis disparados por arma de fogo, na região da Polêmica, bairro de Brotas, Salvador, Bahia.

A provável causa desse assassinato é a suposta tentativa de furto de quatro pacotes de 5kg de carne de charque de R$188,90 cada, num total de R$ 755,60 preço cobrado pelo supermercado Atakarejo, localizado na região do Nordeste de Amaralina, um outro bairro da capital baiana Apesar da tentativa inicial de negar o ocorrido por parte de representantes do supermercado, alguns fatos vieram a lume inclusive graças a áudios enviados por uma das vítimas, Bruno, a uma amiga, no qual fez desesperados pedidos de socorro: Eles estão me entregando agora pelo estacionamento aos traficantes aqui do Nordeste. Eu vou morrer. Não me deixa morrer não. Vem para cá! Chame a polícia para me prender.

Essas e outras mensagens, contribuíram para elucidar a possível motivação dos assassinatos e revelou que, em vez de chamarem a polícia, os funcionários do supermercado entregaram os dois homens para traficantes que atuam na região (G1 BA, 2021).

Segundo os relatos dos familiares, o furto foi motivado, muito provavelmente, pelo desespero da fome pela qual tio e sobrinho vinham passando. A mãe de Bruno, Dionésia Pereira Barros, sofre o luto e relata que seu filho não era nenhum assassino, que o ajudava porque ele estava desempregado e tinha de lidar com as constantes queixas de fome de sua filha de 12 anos: meu filho morreu com fome porque não teve coragem de me pedir comida, relata inconformada Dionésia (G1,2021).

Contudo, apesar de chocantes, casos como esse não são raros, o mesmo supermercado Atakarejo já havia servido de cenário para outra barbaridade em outubro de 2020, segundo o relato de uma adolescente de 15 anos que diz também ter sido espancada e torturada após tentar furtar o referido supermercado, mas conseguiu fugir e sobreviver para contar a história, encorajada pelas revelações do caso de Yan e Bruno (G1, 2021).

Ainda assim, não é nada surpreendente que caso como esses, de furtos famélicos, sempre tenham acontecido e que sua frequência aumente ainda mais no atual contexto de pandemia aliada a recessão econômica e a desemprego. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego do 4º trimestre de 2020 foi de 13,9%, o que corresponde 13,9 milhões sem um trabalho do qual auferi renda, e a inflação dos últimos 12 meses até abril de 2021 foi de 6,7%, o que significa que os produtos alimentícios e de consumo básicos estão cada vez mais caros, ao passo que as pessoas cada vez menos têm de onde tirar dinheiro para comprá-los.

Isso tudo proporciona uma via de explicação  para não se ir além das estatísticas do porquê de existirem atualmente no Brasil mais 19 milhões de pessoas passando fome e 116,8 milhões em situação de insegurança alimentar, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado em dezembro de 2020 (OLHEPARAFOME, 2021).

Não obstante, dados estatísticos apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstram que houve diminuição na taxa de crimes contra o patrimônio no 1º semestre de 2020, embora esses dados não esclareçam tão bem as taxas de crimes de furto, tampouco do furto simples especificamente.

A princípio, a verificação dos dados empíricos parece contradizer a tese de que o aumento da precarização das condições sociais aumentaria também a ocorrência de crimes de furto, especialmente de furtos famélicos. No entanto, a diminuição da taxa de crimes contra o patrimônio no período mencionado pode ser explicada pela alteração da abrupta da dinâmica social pela pandemia da Covid-19, que literalmente forçou as pessoas a fazerem isolamento social  que encontrou seu ápice justamente no período apontados pelos dados  logicamente tornou menos propícias as condições para o cometimento de crimes contra o patrimônio.

Nesse panorama de aumento da precariedade da vida das pessoas em situação de maior vulnerabilidade  pois são sempre essas as mais afetadas nos contextos de crises sociais, enquanto os mais ricos ou nada sentem ou enriquecem ainda mais , cabe uma indagação sobre o modo como os tribunais e os juízes ­tomados como pessoas mesmo, falhas, não como órgãos do Poder Judiciário e até mesmo nossas leis e outros elementos dos ordenamento jurídico tratam de questões que afetam diretamente essas pessoas, como é o caso dos julgamentos dos crimes de furto simples e de outros de menor potencial ofensivo. É, então, a isso que se intentará dar prosseguimento na continuidade deste trabalho.

Os Crimes de Furto e o Princípio da Insignificância

O crime de furto está descrito no primeiro artigo do capítulo que inicia o título referente aos crimes de patrimônio, do Código Penal: Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa (CC, Título II, Capítulo, art. 155). O caput do referido artigo corresponde ao Furto Simples, que é justamente o mais importante para este trabalho e ao qual se direcionará a maior parte dos esforços explicativos aqui depreendidos. Segundo os ensinamentos de Bitencourt, os bens jurídicos que se visou proteger diretamente com a criminalização das ações previstas no tipo penal do furto são a posse e a propriedade da coisa móvel, ou até mesmo a sua detenção. Obviamente que se trata também da coisa alheia, visto que não é possível furtar coisa de que se é dono, e, vale ainda destacar, que a subtração não precisa ser com a intenção de deter a cosias para si para a configuração do furto, quem subtrai algo de alguém para dar a outrem, a qualquer título, também incorre no tipo penal do Furto Simples (Bitencourt, 2018).

São equiparáveis a coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico (§ 3º, art. 155, CC). Os parágrafos seguintes (a partir do §4º, I a IV, até o §7º) tratam Furto Qualificado, cujas penas aplicadas aumentam gradativamente, porque se considera que as ações neles descritas  rompimento de obstáculos, emprego de explosivos etc.  são de maior lesividade ao patrimônio e de perigo comum, ou seja, põem em risco também as pessoas. Por fim, temos a figura do Furto Privilegiado, se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada (§2º), cuja pena aplicada é menor e que é de maior importância ao assunto que se segue. Para que se configure o furto simples privilegiado, porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou jurisprudência no sentido de que a soma do valor das coisas subtraídas não supere o salário-mínimo vigente na época do fatos, ou seja: R$1.100,00 (STJ, Jurisprudência em Tese 11)

O valor da coisa subtraída e a gravidade do dano causado ao patrimônio, tanto pela subtração em si como pelas ações tomadas com o intuito de se ter acesso a essa coisa, são de fundamental importância para a qualificação do denominado princípio da insignificância, que foi pela primeira vez mencionado por Claus Roxin em 1964, representado pelo brocado rminima non curat praetor (Bitencourt 2020). A tipicidade penal, ou seja, a criminalização de um comportamento, requer que essa conduta cause alguma ofensa grave ao bem jurídico tutelado, grave o suficiente para se acione o direito penal, ultima ratio do ordenamento jurídico. No entanto, a jurisprudência do STF estabelece que, para o efeito da aplicação do princípio da bagatela, o valor máximo da coisa subtraída não pode exceder 10% do valor do salário-mínimo vigente no momento da realização do ato, que corresponderia, no valores atuais, a R$110,00 apenas.

Para alguns, esse entendimento já é de certo modo antigo, encontrando-se nos escritos de Bentham, quando ele chega a conclusão de que toda a pena é má, em alguma medida e que, portanto, segundo o Utilitarismo que ele apregoa, a pena só pode ser admitida na medida que possibilite evitar um mal maior (2020. p. 133), ora, em casos que se verifica o princípio da bagatela   como chamou primeiramente Klaus Tiedemann (Bitencourt, 2020) o dano ao bem jurídico é tão pífio que torna a condenação um lesão jurídica muito maior, tanto ao condenado, que é privado de seu liberdade e atingido em sua integridade, ao ser introduzido no sistema carcerário, com também até mesmo a coletividade, visto que se pode perfeitamente entender que as condenações, nesses casos, são um ato de injustiça que, como tal, causam danos não só ao indivíduo, mas a toda coletividade.

Existem defensores de ponto de vista diverso, o de que a lesividade da conduta criminalizada já foi sopesada pelo próprio legislador, e que não é porque determinada conduta seja em si tipificada como de menor potencial ofensivo (art. 98, I, da CF) que isso queira dizer também que essa conduta configura automaticamente, por si própria, no princípio da insignificância  como e caso de delitos de lesão corporal leve, de ameaça, injúria ­ porque, se assim fosse, não faria sentido o legislador terem-nas tipificado. Então, se o legislador as tipificou, é porque há importância, e que se o juiz as ignorar, estará excedendo da hermenêutica jurídica aceitável e violando o princípio da separação dos poderes. É o que defende, em certa medida, Carlos Vico Mañas (apud Bitencourt, 2020). Até certo ponto, esse raciocínio não é totalmente refutável, mas, como se verá mais adiante, isso não impede em nada que os juízes lancem mal de critérios outros que não os adstritos à legislação e as normas do ordenamento jurídico.

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Jurisprudências de Aplicação do Princípio Da Insignificância e o Possível Viés das Decisões dos Juízes

Reflexo imediato do punitivismo exacerbado do sistema judiciário brasileiro é a população carcerária do País. De acordo com o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de 2019, apresentado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), somando os presos em estabelecimentos penais e os detidos em outras carceragens, a população carcerária do Brasil era de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes até a data do levantamento desses dados em 2019. O que configura a terceira maior população carcerária do mundo, posição que o Brasil já ocupa muitos anos, ficando atrás somente da China, com 1, 6 milhões de pessoas privadas de liberdade, e dos Estados Unidos da América (EUA), com 2,1 milhões de pessoas encarceradas. E ainda a informação mais alarmante: dessas 773.151 pessoas encarceradas no Brasil, 41%,5 sequer foi julgada (VASCONCELOS, 2019).

E apesar de, na época em que a os dados tonaram-se públicos pela primeira vez, o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, ter comemorado, como se fosse algo positivo, ao afirmar que o número significa menos bandidos nas ruas (ibidem), esses números para parafrasear o presidente, na verdade são, como já foi dito, a mais clara constatação do viés do punitivo do nosso sistema judiciário. Esse punitivismo se Porreflete, obviamente, nas decisões dos juízes e dos tribunais e, consequentemente, nas jurisprudências consolidadas pelos mesmos, bem como no modo que interpretam princípios favoráveis ao réu, em muitos casos, como é o do ora tratado princípio da insignificância ou bagatela. O que será demonstrado a seguir.

Nas palavras de Neil MacCormick, importante filósofo do direito escocês que tratou de questões relacionadas com a hermenêutica jurídica, um juiz pode dar uma sentença favorável ao um querelante com rostinho bonito ou proveniente de determinada classe social, na realidade porque gosta do rosto ou da classe, mas ostensivamente pelas razões que apresentar em sua decisão (MACCORMICK: 2016), ou seja, apenas invertendo ordem silogística desse raciocínio, o juiz ostenta razões para fundamentar suas decisões, mas as reais razões pelas quais ele decide de um modo e não de outro diversos jamais seremos capazes de saber realmente, porque se tratam de processos psicológicos internos e subjetivos aos juízes.

Portanto, em toda decisão judicial sempre haverá um viés subjetivo do juiz embutido na decisão que prolatar. E esse viés é inescapável, pois é subjacente a condição humana, do que talvez nem o próprio sujeito, no caso o juiz, esteja consciente, mas da qual o viés independe para existir  nesses casos, quiçá tanto mais será acentuado o viés, quanto maior for a inconsciência do sujeito em relação a sua existência. No entanto, embora se tenha afirmado sobre a impossibilidade de conhecer as reais motivações da decisão, também é virtualmente impossível, para um ser expressivo, mascarar completamente o seu viés, pois este se demonstrará nas atitudes mesmas do sujeito e, no caso dos juízes, em suas decisões e prolações. Por extensão, o viés se demonstrará nas jurisprudências e, por fim, no próprio ordenamento jurídico e nas leis de uma sociedade, porquanto são constituídas de sujeitos.

Algumas jurisprudências mostram que, nos casos mais fácies, parece não haver nenhuma dificuldade relacionada com a aplicação do princípio da bagatela, presentes os elementos, o juiz reconhece a atuação do princípio sobre o caso concreto. Como é o caso evidenciado pela decisão monocrática proferida pelo Ministro Jorge Mussi, que aproveita para relembrar os elementos do princípio:

a aplicação do princípio da insignificância demanda o exame do preenchimento de certos requisitos objetivos e subjetivos, traduzidos no reduzido valor do bem tutelado e na favorabilidade das circunstâncias em que foi cometido o fato criminoso e de suas consequências jurídicas e sociais. 4. Caso em que se verifica se tratar de situação que atrai a incidência excepcional do princípio da insignificância, consideradas a primariedade do réu e as circunstâncias em que o delito ocorreu (tentativa de furto simples de tubos de desodorante contra estabelecimento comercial), o valor reduzido da res furtiva e a natureza do bem subtraído. 5. Agravo regimental desprovido (AgRg no AgRg no REsp 1.705.182/RJ, j. 28/05/2019)..


Embora seja ainda mais louvável a recente decisão do STJ que concebeu habeas corpus a um homem que fora condenado a um ano e dois meses de reclusão pelo furto simples de dois frascos de sabonete líquido no valor total de R$25,00, não se pode deixar de destacar o fato que houve uma decisão condenatório anterior, prolatada por outro juiz, de instância inferior, e que por causa disso o réu permaneceu 6 meses privado de sua liberdade por causa de uma condenação completamente enviesada, que precisou chegar até o STJ para ser retificada. O referido furto teve lugar em Riacho Fundo, Distrito Federal, em outubro de 2019, quando o réu entrou numa drogaria e subtraiu os fracos de sabonete, mas foi em seguida preso em flagrantes pela Polícia Militar (G1, 2021), devolveu o produto do furtado, ainda assim foi condenado a um ano e dois meses de reclusão de na Papuda, o Complexo Penitenciário de segurança máxima no qual se encontram criminosos muito mais experientes em questões criminais, verdadeiros professores do crime.

Cabe destacar nessa decisão, colegiada, cujo relator foi o Ministro Riberio Dantas, fez-se expressa menção ao fato de que caberia o princípio da insignificância mesmo em se constatando que réu possuía antecedentes criminais: apesar de se tratar de paciente com condenações anteriores por delitos patrimoniais, considerando tratarem-se de bens de valores ínfimos - 2 frascos de sabonete líquido da marca "Needs", que totalizam cerca de R$ 25,00, o que equivale a 2,5% do salário mínimo vigente à época -, os quais, inclusive, foram restituídos à vítima, não se mostra recomendável sua condenação, eis que evidente a inexpressividade da lesão jurídica provocada(STJ, HC 607.125/DF). Porque não é esse o entendimento majoritário que verificava na jurisprudência, que já tinha firmado entendimento diverso no sentido de o princípio da insignificância não tem aplicabilidade em casos dê reiteração da conduta delitiva, salvo excepcionalmente, quando demonstrado ser tal medida recomendável diante das circunstâncias concretas, que aparentemente vem se consolidando em sentido contrário, mudança na qual mais um vez encontramos o Ribeiro Dantas como relator da decisão a servir de modelo (HC 614.982/SC).

Porém, em sentido contrário a essas mudanças, recentemente a Ministra Rosa Weber (STF), após diversas decisões monocráticas sobre casos de aplicação do princípio da insignificância , nos quais inclusive resolveu por afastar o óbice da reincidência ( RHC 192981/AC; HC 188298 / SP HC 112244 / RS entre outras), dessa decidiu manter preso um homem que furtou dois frascos de xampu, no valor de R$10,00 cada um, ou seja, mesmo se somados (R$20,00) o valor final ainda ficaria dentro do limite de R$100,00, firmado pela jurisprudência, mas que lei nenhum prevê, vale ressaltar. E isso em meio ao contexto da pandemia da Covid-19, que motivou decisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o fim de mitigar as consequências a propagação do conronavírus no sistema carcerário, como: [...]a revisão das decisões que determinaram a internação provisória, notadamente em relação a[...] IV que estejam internados pela prática de atos infracionais praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa (CNJ , Recomendação Nº 62/2020), ainda em vigor sumariamente ignorada pela decisão da ministra da Suprema Corte.

Alternativas e Soluções Propostas

O Caderno de Propostas Legislativas, compostos por importantes associações com finalidades jurídico-criminais, propõe as 16 Medidas Contra o Encarceramento em Massa, que visam à alteração, dentre outras normas, do Código Penal de 1940, para incluir e garantir a observação de alguns princípios ainda não positivados em no ordenamento jurídico brasileiro, dentre eles, o princípio da insignificância ou bagatela. Como bem ressaltava o mencionado Caderno, boa parte da população carcerária apinhada nos presídios do sistema penitenciário do País foi para ali devido a condenação por crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência e com baixo potencial de lesividade, como os que foram abordados neste trabalho.

Relativamente aos pontos que mais interessam a este trabalho, o mencionado caderno propõe a inclusão de elementos no art. 16 da Parte Geral do Código Penal, para possibilitar que e arrependimento e reparação do dano ou devolução da coisa subtraída sejam tornem-se hipóteses de extinção da punibilidade, algo que, se já existisse, teria livrado do encarceramento algumas das pessoas condenadas em casos aqui analisados:

Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até a sentença condenatória, por ato volutário do agente, extinguir-se-á sua punibilidade.

Art. 3º O Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 16-A:

Insignificância da conduta ou do resultado.

Art. 16-A Não se considera típica a ação ou omissão ou o resultado que não ofenda de forma significativa o bem jurídico tutelado legalmente.

Parágrafo único - A determinação da insignificância terá́ por base somente

aspectos objetivos observando-se a relação entre o bem jurídico tutelado e o impacto pessoal ou social da conduta. Em nenhum caso serão considerados fatores pessoais como antecedentes, reincidência ou a natureza supraindividual do bem jurídico.

Percebe-se que a segunda parte dessa proposta é a de incluir o Art. 16-A que explicitamente positiva o princípio da insignificância no Código Penal e, muito acertadamente, busca eliminar as possibilidades de se afastar sua aplicação ao caso concreto com base em critérios subjetivos, como a controversa reincidência, que parecia sempre afastar a aplicação do princípio da bagatela, mas que carece de fundamentação lógica na maioria dos caso, pois, veja-se: se uma conduta é insignificante e o agente a prática uma vez e subsequentemente uma outra vez, essa conduta passa agora a ser significante pelo simples fato de ter sido reiterada, pois, ao que parece, da junção de duas coisas insignificantes deriva uma significante.... Também o acréscimo desse art. 16-A afasta os antecedentes e periculosidade do agente, justificada em sua personalidade, por uma avaliação de personalidade feita por quem não tem qualificação técnica para isso. Cabe questionar, nesse sentido o motivo pelo qual a psicologia da tomada de decisão, embora tão relevante para as carreiras jurídicas em geral, segue sendo uma ilustre na decisão judicial e desenho institucional desconhecida da pesquisa acadêmica e do ensino jurídico brasileiros(HORTA; COSTA 2017).

Ao que parece, já existem faz um tempo as alternativas para modificar o ordenamento jurídico-penal e mitigar o seu caráter punitivista e, por conseguinte, reduzir o encarceramento em massa. Essas alternativas propostas visam justamente à criação de ferramentas e mecanismo jurídicos que apresentariam outras soluções aos problemas penais, como são exemplos a ampliação das possibilidades de substituição da pena de prisão por restritiva de direitos e a multiplicação das hipóteses de modalidades de medidas cautelares diversas das privativas de liberdade, visto que se resta evidente talvez com a exceção de algumas pessoas   que o encarceramento em massa não é uma solução eficaz, pelo contrário, é inovação do problema (CADERNO DE PROPSOTAS LEGISLATIVAS, 2017[?]).

Conclusão

O que realmente significa esse valor de 110 reais  limite jurisprudencial que obsta a aplicação do princípio da insignificância  no contexto em que vivemos atualmente, de recessão econômica aliada à inflação e ao desemprego? Para alguns não significa realmente nada, é insignificante, mas para muitos, para aqueles que vivem sem saber quando vão poder fazer a próxima refeição ou vão ter um pão para alimentar seus filhos, significa muito. O suficiente para arriscarem a própria liberdade, a própria vida! E é justamente desses que de tudo mais necessitam que tudo se cobra, como se fossem bodes expiatórios de todos os pecados da sociedade.

Por esse valor, Bruno e Yan Barros, não teriam sido favorecidos pelo princípio da bagatela, por exemplo. No entanto, o quão realmente os pacotes de carne furtados eram realmente significantes para o supermercado, a ponto de valerem a vida de outros dois seres humanos, literalmente tratados como se fossem pedaços de carne mais baratas do que as que desafortunadamente resolveram furtar.

Contudo, apesar dos inúmeros equívocos, em diversos momentos, cometidos por vários atores com poder de influenciar o sistema judiciário brasileiro, pôde-se verificar que há inúmeros acertos também, inclusive feitos pelos mesmos que antes erraram, bem como o inverso também é verdadeiro. Para além disso, foi possível constatar também que, para muitos desses equívocos mais recorrentes, já existem ao menos propostas que oferecem alternativas capazes de resolvê-los. Só que resta, então, é que sejam implementadas.

Referências

BENTHAN, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Kitchener: Batoche Books, 2020 [1781].

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Vol 1 Parte Geral - 26 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. Versão liivro digital (E-pub) produzida por Guilherme Henrique Martins Salvador.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Vol 3 Parte Especial (arts. 155 a 212) 26 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Versão liivro digital (E-pub) produzida por Guilherme Henrique Martins Salvador

BRASIL. Código Penal de 1940.

BRASIL, CNJ. Recomendação nº 91, de 15 de março de 2021. Disponível em: Recomendação nº 91, de 15 de março de 2021 .Acesso em: 19 mai. 2020.

BRASIL. STJ. Jurisprudêndia em Tese. Ed. N. 47: Crimes contra o Patrimônio Furto. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp?edicao=EDI%C7%C3O%20N.%2047:%20CRIMES%20CONTRA%20O%20PATRIM%D4NIO%20-%20FURTO . Acesso em: 15 mai. 2021

FOLHA. Abril foi o mês mais letal da pandemia de Covid no Brasil, com mais de 82 mil mortes. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/04/abril-foi-o-mes-mais-letal-da-pandemia-de-covid-no-brasil-com-mais-de-82-mil-mortes.shtml . Acesso em: 07 mai. 2021.

FORUM de Segurança Pública. Estatísticas. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/estatisticas/ . Acesso em: 15 mai 2021.

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G1. 'Meu filho morreu com fome porque não teve coragem de me pedir comida', diz mãe de homem morto após furtar carne em mercado na BA. 2021. Diponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/05/01/meu-filho-morreu-com-fome-porque-nao-teve-coragem-de-me-pedir-comida-diz-mae-de-homem-morto-apos-furtar-carne-em-mercado-na-ba.ghtml . Acesso em: 17 mai. 2021.

GONÇALVES, F. Marcos. A Teoria da Argumentação Jurídica em Neil Maccormick e o Problema da Resposta Correta: uma Teoria das Respostas Erradas? .[s.l],[s.n],[s.d] Disponível: em: https://www.jfpe.jus.br/images/stories/docs_pdf/biblioteca/artigos_periodicos/MarcoFratteziGoncalves/Ateoria_revTRF5_2013.pdf . Acesso em 08 mai. 2020.

HORTA, Ricardo L.; COSTA, Alexandre A. Das Teorias da Interpretação à Teoria da Decisão: Por uma Perspectiva Realista Acerca das Influências e Constrangimentos Sobre a Atividade Judicial. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 15, n. 20, p.271-297, 2017. Disponível em: https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/1387/470 . Acesso em: 04 mai. 2021.

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MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública  2020

MICHELETO, Paula. Princípio da Insignificância ou Bagatela. Jusbrasil, 2013. Disponível em: https://paulamicheletto.jusbrasil.com.br/artigos/112021033/principio-da-insignificancia-ou-bagatela . Acesso em: 15 mai. 2021.

OLIVEIRA, Nayla Soares de; MORAIS, Evilanne Brandão de. Teoria da argumentação jurídica de Neil MacCormick. Jus, 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23733/teoria-da-argumentacao-juridica-de-neil-maccormick. Acesso em: 08 mai. 2021

TV BAHIA; G1 BAHIA. Após morte de homens por tentativa de furto de carne em supermercado na BA, jovem relata ter sido torturada no local. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/05/01/apos-assassinato-de-homens-por-roubo-de-carne-em-supermercado-na-ba-jovem-relata-tortura-depois-de-furto-no-mesmo-local.ghtml . Acesso em: 17 mai. 2021.

Em Meio à Pandemia da Covid-19, o Brasil Vive um Pico Epidêmico da Fome: 19 Milhões de Brasileiros Enfrentam a Fome no Seu Dia A Dia, OLHE PARA A FOME, 2021. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ . Acesso em: 18 mai. 2021.

Sobre o autor
Diego Lima do Nascimento

Bacharel em Ciência Política (UnB) e bacheralando em Direito (UnB), artigo apresentado submetido como forma de avaliação do curso de Direito Penal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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