ADPF 323 e a redução da proteção ao trabalhador no âmbito das negociações coletivas de trabalho.

31/05/2022 às 18:14
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RESUMO

O presente artigo é fruto de pesquisa bibliográfica e tem como objetivo apresentar uma crítica a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADPF 323, sobre o prisma da dignidade do trabalhador e o princípio da proteção aplicado as negociações coletivas. O artigo também apresenta uma introdução sobre a relação entre trabalho e dignidade e a evolução história do direito do trabalho no Brasil e no mundo, findando por concluir que a ADPF 323 reduz a dignidade dos trabalhadores, negando vigência ao princípio da proteção no âmbito das negociações coletivas.

Palavras-chave: Direito Sindical. Ultratividade das normas coletivas. dignidade da pessoa humana. Direito fundamental a um trabalho decente. Princípio da Proteção.

1.            Relações entre o trabalho humano e a dignidade.

 

Trabalho e dignidade humana são conceitos indissociáveis. O livro sagrado de Gênesis, em seu capítulo 2, versículo 15, já há muitos anos anuncia como o trabalho foi determinado ao homem desde a criação.

Não se pode negar que o trabalho toca a alma humana e é capaz de trazer intensa alegria e satisfação ou dor e sofrimento. Não se trata, portanto, o trabalho de um elemento solto na história, mas encontra-se vinculado ao homem, individualmente considerado e a coletividade.

No mesmo sentido, a forma de organização do trabalho, ou do sistema de produção também tem muito a dizer sobre a vida humana em coletividade. Já dizia Maior (2013, p. 106)

Lembre-se, a propósito, que o capitalismo é um modo de organização da sociedade, que repercute, obviamente, nas relações sociais e invade o próprio sentimento humano. 

Como diziam Marx e Engels,

A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.

E mais, o homem encontra-se ligado ao trabalho mesmo nos momentos de lazer, no mesmo sentido Maior (2013, p. 106):

Assim, mesmo nos momentos livres, de pretenso lazer, o homem, sobretudo, o trabalhador, é invadido pela lógica do processo produtivo, conforme adverte Giovanni Alves, 

Critérios de produtividade e desempenho saem do universo da empresa e se disseminam pela sociedade, tomando de assalto inclusive as relações afetivo-existenciais, medidas sobre os parâmetros lingüístico-comunicativos dos valores de desempenho e produtividade.

Por isso, nenhuma análise sobre o trabalho, que não leve em consideração aspectos primordiais sobre a dignidade humana, pode ser considerado completa. Também nesse sentido, percebe-se a importância de considerarmos a relação entre trabalho humano e dignidade ao longo da história, a fim de lançarmos uma crítica sobre a atualidade. 

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês falecido em 2016, considerado um dos intelectuais mais bem sucedidos em descrever a atualidade, analisando as alterações do modo ser e estar no mundo das últimas décadas, desenvolveu o conceito de modernidade líquida para descrever o atual estágio da modernidade.

Considera Bauman (2001, p.14) que os modelos e referenciais do passado já não são capazes de responder a complexidade atual da sociedade, que se caracteriza, dentre outras coisas, pela fluidez, ou transitoriedade com que o homem se relaciona com coisas e pessoas.

Em outras palavras, para Bauman, o homem de hoje não se fixa em conceitos ou ideais, não se preocupa com o futuro da coletividade, não se prende a referenciais, já não possui a mesma fé no progresso e pouco se preocupa em trabalhar e produzir, por outro lado, há uma maior preocupação no consumo e nos projetos individuais de vida.

Ora, este é o homem do século 21, em suas relações com o coletivo, com a história e com o trabalho.

É inegável, portanto, como a relação do homem com o trabalho hoje nos revela valores indispensáveis na formação de um posicionamento crítico sobre a realidade. Razão pela qual é válido resgatar, por meio da pesquisa, quais os valores acompanharam o homem na relação com o trabalho ao longo da história, para que nossa analise seja mais completa.

Por esta razão registramos, a seguir, a variadas formas de expressão do trabalho humano nas sociedades organizadas, por considerarmos que a análise centrada no homem e nas formas de trabalho ou os sistemas econômicos ou modos de produção nos auxilia na compreensão do objeto deste trabalho.

Traçaremos, assim, uma breve reflexão sobre a evolução da relação entre o homem e o trabalho, desde o princípio da exploração da atividade laboral humana, com o chamado sistema escravagista, até a atual realidade em que vivemos.

Nesse sentido, o escravismo, primeiro sistema de exploração da atividade humana, encontra-se presente na história do homem desde a antiguidade como uma atividade juridicamente lícita e natural, conforme Porto (p. 31, 2013), tendo em vista que o homem que incorresse em determinadas circunstâncias, como a dívida civil ou a prisão por guerras, era tido não como sujeito mas como objeto de direito.

Ponto de interessante destaque sobre a escravidão na Antiguidade é, sob o aspecto filosófico, o fato de que o trabalho era visto como uma atividade subalterna. Apenas os cidadãos de nível inferior ou os escravos é que deveriam trabalhar. A classe dominante dedicava-se ao ócio criativo, a política e etc.

Já sob o aspecto jurídico, é interessante destacar que esta forma de exploração da atividade humana atingiu, durante o Império Romano, uma extensa regulamentação sobre o direito de se utilizar da força de trabalho de escravos alheios, naquilo que se denominou locatio conductio, que consistia na ideia de locação da mão-de-obra de um escravo para outrem, o que reforça a noção de que o escravo era eminentemente reconhecido como uma coisa que alugava-se ou dava-se por emprestado.

Após o declínio do escravagismo, surge na Europa o Feudalismo, que teve auge como sistema econômico cultural, político e social, nas relações servis de produção da Idade Média. No Feudalismo, assim como no Escravagismo, os meios de produção também pertenciam a uma classe dominante, denominada senhores feudais. A sociedade era estamental, ou seja, havia pouco ou nenhum espaço para mobilidade social, mas a diferença do Império Romano, na sociedade feudal da Idade Média não havia uma centralização do poder político, pois os feudos gozavam de relativa independência, havendo uma maior acentuação do direito costumeiro em detrimento de uma legislação escrita emanada de um poder central.

Ponto de destaque neste período é a importância da Igreja Católica como centro de poder, principalmente sob o aspecto sociológico, haja vista que os servos eram doutrinados pela ética cristão, com relação a visão de mundo. Aqui, com apoio na influencia da Igreja e na filosofia escolástica, o trabalho passou a ser o caminho para dignidade do homem. Um bom cristão deveria ser um servo trabalhador.

Não obstante, foi na Idade Moderna, com a Revolução Industrial e a substituição do modo de produção feudal pelo capitalista e pela estruturação econômica e ideológica do liberalismo, que as relações entre capital e trabalho sofreram as alterações que as conformaram naquilo que mais se aproxima com a realidade atual.

Nos primórdios do capitalismo, a substituição do tear, manejado pelo aprendiz sobre a supervisão do mestre artesão, pela máquina a vapor, trouxe uma profunda transformação na relação entre capital e trabalho, tendo em vista que neste momento histórico a propriedade dos meios de produção gerou um desequilíbrio jamais visto.

Isto porque, no escravagismo e no feudalismo, a relação entre meios de produção e trabalho centrava-se na força do homem. O senhor de escravos, o senhor feudal e até mesmo o artesão, contavam essencialmente com a força de trabalho humano para produzir. Com a substituição da força do homem ou da tração animal pela força do vapor e da máquina houve uma multiplicação exponencial da produção, o que gerou uma alteração definitiva na relação entre meios de produção e trabalho.

Houve então uma demanda por trabalhadores que operassem essas máquinas horas a fio, o ex-camponês e o ex-artesão tornaram-se então operários e migraram para as cidades. Deu-se início a uma fase de hiper-exploração humana, juridicamente apoiada nos ideais liberais de liberdade e igualdade formal, que alcançaram o auge nas revoluções burguesas, mormente a revolução francesa.

Nesse sentido Marx apud Morais (2016, p. 213) traz a seguinte reflexão:

A máquina da qual parte a Revolução Industrial, substitui o trabalhador, que maneja uma única ferramenta, por um mecanismo, que opera com uma massa de ferramentas iguais ou semelhantes de uma só vez, e que é movimentada por uma única força motriz, qualquer que seja sua foca. Aí temos a máquina, mas apenas como elemento simples da produção mecanizada. O aumento do tamanho da máquina de trabalho e do número de suas ferramentas operantes simultaneamente exige um mecanismo motor mais volumoso, e esse mecanismo, para superar sua própria resistência, precisa de uma força motriz mais possante do que a força humana; isso sem considerar que o homem é um instrumento muito imperfeito de produção de movimento uniforme e contínuo. Pressupondo que ele atue ainda como simples força motriz, que, portanto no lugar de sua ferramenta haja uma máquina-ferramenta, forças naturais podem agora substituí-lo como força motriz. 

O Direito do Trabalho, então, surge neste contexto, a princípio com leis que visavam a proteção à saúde do trabalhador, que ficava confinado em ambientes fechados trabalhando mais de quatorze horas diárias, com destaque para reconhecida exploração de mulheres e crianças, chamadas meia-forças. Delgado (2016, p. 87) chega a afirmar que o direito do trabalho é fruto do capitalismo, civilizando a relação de poder gerada pela dinâmica econômica criada por este sistema no âmbito da sociedade civil, criando-lhe controles.

Delgado (2016, p. 97) em uma abordagem mais sistemática e metodológica do direito do trabalho enquanto ciência e fenômeno social, destaca pontos fundamentais na formação do direito do trabalho na europa do século XIX, a saber; o Manifesto Comunista e a Encíclica Católica Rerum Novarum, respectivamente de 1848 e 1891, além da formação da OIT e da promulgação da Constituição Alemã, conjunto de atos que, para o autor, culminam naquilo que o mesmo denomina institucionalização do direito do trabalho no mundo[1].

Dessa forma, percebe-se como o capitalismo da Revolução Industrial trouxe para o mundo do trabalho uma mudança sem volta. As transformações mais diversas ocorreram na sociedade, na economia e no direito, o avanço tecnológico e o aprofundamento da globalização a partir da modernidade consagraram a supremacia do capitalismo e o desfazimento de qualquer outro modelo político-econômico, o socialismo tornou-se apenas uma ideologia que orienta movimentos de esquerda pelo mundo.

Avançando séculos na história, com a consagração do capitalismo, o mundo globalizado, neoliberal e pós-moderno tornou-se o palco das atuais relações de trabalho e a proteção ao trabalhador que foi construída ao longo de uma história de lutas e exploração vem sem pressionado a se conformar com os ideais desse novo momento histórico.

Nesse sentido, Morais (2016, p. 213)

O fenômeno da globalização está intrinsecamente associado ao processo de evolução social, notadamente o da sociedade moderna. Segundo Giddens (1990, p. 6), quando áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra". Este fenômeno é típico das sociedades modernas e estão em constante transformação, em um caminhar descontínuo de construção e reconstrução de direitos e valores sociais, e o autor continua assinalando que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter (GIDDENS, 1990, p. 37-38).

Giddens (1991) também associa modernidade ao estilo, organização social ou costume de vida que aflorou após o século XVII na Europa, tendo desde então se intensificado em sua influência mundial, destaca, ainda, que no final do século XX vivenciase um momento de transição para uma nova era para além da modernidade.

As mudanças colocadas pela modernidade são mais profundas e intensas do que qualquer outra vista em períodos anteriores. Estamos inseridos em uma grande aldeia globalizada e participando de uma era em que o poder informacional transcende os limites territoriais, no qual a tecnologia é marcada por uma evolução contínua. Essa sociedade é conceituada por Castells (2002) de Sociedade em Rede, onde comunica culturas de todos os lugares do planeta.

É a estrutura em rede que estabelece esta interconexão entre países de todo o mundo, o que permite o estreitamento das negociações comerciais, além de promover as políticas de mercado comum num contexto internacional. A independência dos mercado a nível mundial só foi possível com o fenômeno da globalização, é a forma que, conforme Barroso (2004, p. 23-24), os grandes grupos econômicos encontram para impulsionar o desenvolvimento e penetrar em outros terrenos. 

Este é o atual cenário do direito do trabalho no mundo, o trabalho na pós-modernidade, ou na modernidade líquida, que será o centro de nossas reflexões no tópico a seguir.

2.            O Trabalho na Pós-modernidade e as influências neoliberais na redução de direitos.

A palavra de ordem sobre o trabalho na pós-modernidade é a flexibilização, palavra que se amolda perfeitamente ao conceito de modernidade fluída de Bauman.

Ora, para Baumam o homem pós-moderno tem por uma de suas principais características a fluidez no relacionar, ou seja, é um homem que não se apega a tradição, não se fixa em ideais e também não tem como meta a produção ou o progresso coletivo, mas esta preocupado com as realizações pessoais e o consumo.

Essas características, a princípio, parecem se moldar a tendência global de se flexibilizar os direitos trabalhistas, como parte deste mundo cosmopolita e em fluxo constante. A legislação trabalhista e o próprio direito do trabalho são vistos, neste contexto, como incapazes de acompanhar e se moldar as transformações do mundo. O discurso é que deve-se ter um direito que responda ao mercado e que permita ao trabalhador e ao empregador se moldarem imediatamente as influências do meio cultural e social em que estão inseridos.

Flexibilização, esta é a palavra de ordem. Nesse sentido, Morais (2016, p. 211) nos familiariza com o aspecto técnico deste conceito, com lastro na doutrina especializada:

Em uma consideração inicial, cabe ressaltar que flexibilização e desregulamentação não são conceitos sobreponíveis. Süssekind, Maranhão e Vianna (2005, p. 206) asseveram que diferente da flexibilização que com normas gerais e flexíveis ainda pressupõe uma atuação básica estatal, a desregulamentação afasta completamente a proteção do Estado ao trabalhador, permitindo que a autonomia privada, individual ou coletiva, regule as condições de trabalho e os direitos e obrigações advindos da relação de emprego.  

Como ensina Nascimento (2003, p. 67), a flexibilização é o afastamento da rigidez de algumas leis para permitir, diante de situações que o exijam, maior dispositividade das partes para alterar ou reduzir os seus comandos. A flexibilização nas relações de trabalho exige uma renúncia de normas protetivas em detrimento da segurança da manutenção do emprego.

E conforme ensina Martins (2009, p. 13), a flexibilização do Direito do Trabalho é estreitamente ligada a aspectos jurídicos formando um conjunto de regras que tem por objetivo instituir mecanismos tendentes a compatibilizar as mudanças de ordem econômica, tecnológica, política ou social existentes na relação entre o capital e o trabalho.

Por outro lado Silva (2014, p.3), com lastro nas lições de Bauman, nos introduz a reflexão crítica sobre a incidência da flexibilização no mundo do trabalho, demonstrando como na sociedade líquida o trabalhador não tem mais a estabilidade no emprego como um fator importante:

É possível observar ao longo da obra de Bauman a descrição de uma série de mudanças que vem ocorrendo na sociedade no que diz respeito ao mundo do trabalho. No tempo da modernidade sólida ou pesada, o trabalho possuía uma relação relativamente estável com o capital de forma a ambos possuírem um vínculo de dependência. O trabalhador necessitava de seu emprego, da mesma forma, que a empresa reconhecia a necessidade de mão-de-obra ainda que explorável e descartável para a manutenção da produção. Tal tipo de vinculação gerava uma série de conflitos internos às organizações de trabalho, mas que possuíam como base a necessidade de encontrar um lugar comum que pudesse manter ou retomar um tipo de ordem social interna à organização que propiciasse condições de trabalho. 

Conforme explica Bauman (2008b p. 33):

 A modernidade pesada era o tempo do compromisso entre capital e trabalho, fortificado pela mutualidade de sua dependência. Os trabalhadores dependiam de empregos para terem sustento; o capital dependia de empregá-los para sua reprodução e crescimento. Esse encontro tinha um endereço fico; nenhum dos dois poderia se mover para outra parte com facilidade as paredes maciças da fábrica mantinham ambos os sócios em uma prisão compartilhada.

Ora, vemos, juntamente com Baumam e Silva como o trabalhador e o capital mantinham no passado uma relação estável, de reconhecida dependência. Entretanto, Silva (2014, p.3), pontua as alterações que a modernidade líquida trouxe as relações de trabalho. Segundo referido autor, para Bauman, o homem pós-moderno está muito mais preocupado em realizar-se por meio do consumo e não do trabalho. A conclusão a que chegamos é que, na pós-modernidade, é o consumo e não o trabalho que dignifica o homem.

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O que é observado no contexto contemporâneo é um novo de tipo de relação que não pode mais ser identificada pela condição de uma pretensa busca de estabilidade. Conforme o autor, o trabalho já não me materializa enquanto uma vocação para vida toda. O trabalho que antes possuía uma dependência com o capital, hoje se configura em relação intima com a lógica de consumo.

Outro ponto de fundamental destaque é o enfraquecimento do reconhecimento do trabalhador em coletividade, Bauman considera que o homem da pós-modernidade não confia mais na representatividade de instituições como o sindicato e nem se reconhece neste último, como observamos em Silva (2014, p.3):

O terceiro ponto a destacar diz respeito a fragilidade e efemeridade envolvida na dinâmica do trabalho. Bauman (2001) aponta que o trabalho, assim como outras dimensões da sociedade de consumo, precisa ser prazeroso ao indivíduo, não sendo mais medido pelos seus efeitos vinculares seja com as organizações de trabalho, seja pela relação com os outros trabalhadores, seja no papel do trabalho para a manutenção e/ou transformação da sociedade.

Em outras palavras, tem-se uma mudança no sentido político do trabalho que não mais está atrelado a uma definição de classe ou mesmo a demandas societárias mais amplas (como era possível observar até quase o final do século XX). O trabalhador passa a ser concebido em uma dimensão individual, desatrelado a uma esfera coletiva, seja ela a organização de trabalho (empresa) seja ao papel social do trabalho no contexto societário (identidade de trabalhador).

Tal processo de ruptura está intimamente relacionado com os valores que passam a ser disseminados pela estrutura social. Um dos principais elementos é o imperativo de lidar com um mundo em constante mudança. Não cabe mais a descrição de papéis rígidos a ser executados ao longo da vida produtiva ou mesmo o chamado vocacional tão demarcado em práticas psicológicas tradicionais movidas pela lógica da pessoa certa para o lugar certo.

E por fim, mas não menos importante, são as consequências desta alteração na relação entre homem e trabalho. Ora, Bauman reconhece como a flexibilidade nas relações de trabalho tem graves consequências sociais para os trabalhadores menos qualificados. Isto é uma realidade facilmente verificável, os trabalhadores com maior qualificação podem gozar do privilégio de não dependerem de um único empregador e estarem em posição privilegiada no mercado de trabalho, razão pela qual não se preocupam com a estabilidade, os trabalhadores menos qualificados, ao contrário, uma vez dispensados, amargam meses ou anos em busca de uma nova oportunidade de trabalho ou entram para o mercado informal.

É o que observamos com Silva (2014, p.3), tomando liberdade para transcrever um trecho mais extenso:

É o trabalho flexível, fenômeno que tem sido trazido e estudado na contemporaneidade e traz como características principais a redução do emprego, a ampliação da terceirização, trabalho informal, home-work e as exigências por múltiplas funções, que desqualificam e asujeitam o trabalhador. 

Flexibilidade é o slogan do dia, e quando aplicado ao mercado de trabalho significa fim do emprego como conhecemos, trabalhar com contratos de curto prazo, contratos precários ou sem contratos, cargos sem estabilidade e com cláusula de até novo aviso (BAUMAN, (2008b, p.35).

Dessa forma, a flexibilidade torna-se um dos pilares da sociedade líquido moderna, sendo uma das características necessárias aos indivíduos para sobreviverem à instabilidade do tempo presente. Quando observada no campo do trabalho [...] ela anuncia empregos sem segurança, compromissos ou direitos, que oferecem apenas contratos a prazo fixo ou renováveis, demissão sem aviso prévio e nenhum direito à compensação [...] (BAUMAN, 2001, p.185). Amplia-se a sensação de descartabilidade e a necessidade de construir meios para competir com o outro, em vista de uma realidade social no qual os postos de trabalho tornam-se cada vez mais escassos.  [...]

As admissões, demissões e promoções acontecem de forma constante, consequentemente as chances de que se estabeleça lealdade e compromisso entre funcionário e organização são poucas. Ainda sobre essa questão, afirma que [...] ninguém pode, portanto, sentir-se insubstituível - nem os já demitidos nem os que ambicionam o emprego de demitir os outros. Mesmo a posição mais privilegiada pode acabar sendo apenas temporária e até disposição em contrário [...] (BAUMAN, 2001, p. 185).

Bauman (2001) aponta que os principais afetados por essa nova política do trabalho são aqueles que se encontram na base da pirâmide social. São trabalhadores sem alta qualificação profissional e que tendem a atuação a partir de tarefas não específicas. O autor os define como trabalhadores de rotina que percebem sua condição de descartabilidade, o que os descompromete com o trabalho ou com os colegas em formas de engajamento focado no longo prazo. Para evitar frustração iminente, tendem a desconfiar de qualquer lealdade em relação ao local de trabalho e relutam em inscrever seus próprios planos de vida em um futuro projetado para a empresa (p. 175).

Não obstante, a alteração da relação homem e trabalho, a pós-modernidade é também marcada pelas pressões neoliberais. Desde abertura do Estado brasileiro as ingerências neoliberais, marcadamente a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, o direito do trabalho no Brasil vem sofrendo ataques que visam minimizar os efeitos das conquistas dos trabalhadores com a promulgação da Constituição de 1988.

Nesse sentido, destacamos alguns dos mais notáveis projetos neoliberais contra os direitos dos trabalhadores, como por exemplo a Lei n. 9.601/1998, que regulou o banco de horas, permitindo, em síntese, o trabalho em horas extras sem o pagamento correspondente, mediante compensação de horas dentro do período de cento e vinte dias, que logo depois passou a ser de 12 (doze) meses;

As Leis n. 9.957/00 (rito sumaríssimo) e n. 9.958/00 (comissões de conciliação prévia), que visam incentivar que as partes alcancem a composição sem a participação da Justiça do Trabalho. O Projeto de Lei n. 5.483, de 05/10/01, que buscava alterar o artigo 618 da CLT, visando a institucionalizar o negociado sobre o legislado, o que hoje é consolidado no âmbito do TST.

A edição da Lei n. 11.101, em 2005, Lei da recuperação judicial, que retirou do crédito trabalhista (superior a 150 salários mínimos) o caráter privilegiado com relação a outros créditos, buscou eliminar a sucessão trabalhista e tem sido utilizada até hoje como forma de institucionalização do calote trabalhista.

O PL 4.330, de autoria do Deputado Federal e empresário, Sandro Mabel, que visa ampliar, sem qualquer limite, a terceirização, e que estava paralisado no Congresso desde 2004, quando foi apresentado, volta a tramitar, impulsionado pelo substitutivo do Deputado Roberto Santiago (PV-SP).

O PL 432/13 (Trabalho escravo): Projeto flexibiliza o conceito de trabalho escravo previsto no novo Código Civil, retirando o reconhecimento do trabalho em condições degradante e da jornada exaustiva como análogos ao escravo.

Ora, grande parte destes intentos foram reunidos no Projeto de Lei no 6.787, de 2016, que tem por objetivo alterar a CLT, trazendo a Reforma Trabalhista.

Nesse sentido, Maior (2017, p. não numerada) denuncia como o projeto de lei tende a favorecer a classe empresarial nos seguintes aspectos: a) flexibiliza a configuração do vínculo de emprego, sob a justificativa que novas profissões surgiram e outras desapareceram b) tentativa de destruição da força dos sindicatos, por meio da extinção da contribuição sindical obrigatória c) fim dos limites a duração da jornada de trabalho d) trabalho intermitente independente da natureza da atividade; e) flexibilização das normas relativas a saúde e higiene no meio ambiente de trabalho; f) previsão de dispensa coletiva como equivalente a dispensa individual; dentre outras alterações espalhadas pelo projeto de Lei 6.787 de 2016.

Ora, não obstante a resistência feita no âmbito da Justiça do Trabalho, por juízes e desembargadores comprometidos com o cumprimento da Constituição, este ambiente austero repercute diretamente no Poder Judiciário, que pressionado, não apenas com relação a repressão com cortes orçamentários e as acusações, acaba se retraindo no que diz respeito ao próprio exercício da jurisdição.

Não obstante, os recentes posicionamentos do TST e do SFT demonstram um menor comprometimento com a salvaguarda dos direitos trabalhista. Caso emblemático é a ARE 709212, cuja decisão proferida em 13 de novembro de 2014, reformou posicionamento consolidado no TST com relação ao prazo de prescrição do FGTS, pela Súmula 362 do TST, para passar a aplicar o prazo prescricional passaria a ser de 05 (cinco) anos, sob o argumento que o FGTS é também um direito trabalhista e por isso observar previsto no inciso XXIX, do art. 7º. da CF.

Outro ponto de relevo é o julgamento da constitucionalidade da Sumúla 277 do TST pelo STF, tema que será melhor abordado nos próximos capítulos.

Ora, até aqui, vimos a relação entre trabalho e homem ao longo da história, com especial destaque para dignidade humana. Vimos ainda, com apoio nas lições de Baumam, como atualmente o homem tende a se relacionar com o trabalho e como as pressões neoliberais contribuem para a flexibilização das relações de trabalho.

Diante deste cenário preocupante, a única conclusão possível é a que reconhece como necessária a luta organizada dos trabalhadores, na busca por uma sociedade mais justa e igualitária, razão pela qual este trabalho propôs a análise das conquistas e desafios do movimento sindical perante o Poder Judiciário.

Frise-se, que o Estado reconhece em âmbito constitucional uma série de direitos mínimo para o trabalho com dignidade. E, nesse sentido, a luta coletiva pelo trabalho consiste, na maioria das vezes, na busca pela efetividade destes direitos.

3.            Um breve resumo sobre o surgimento dos direitos fundamentais sociais relativos ao trabalho e as dificuldades para efetivação.

Atualmente, em que pese os ataques que os direitos dos trabalhadores sofrem constantemente, é consenso na doutrina e na jurisprudência o status de direito fundamental atribuído aos direitos trabalhistas, não apenas aqueles estabelecidos no art. 7ºda Constituição Federal de 1988.

Entretanto, conforme já mencionado alhures, nem sempre foi assim, os direitos dos trabalhadores foram forjados ao longo da história, em compasso com demais direitos fundamentais.

Neste ponto, é válido destacar os eventos mais importantes neste processo de afirmação de direitos, no afã de reafirmar a importância destes para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e solidária.

Nesse sentido, o processo de afirmação histórica dos direitos humanos, revela a origem e o fundamento dos direitos fundamentais, neles compreendidos os direitos fundamentais trabalhistas. Cabe destacar, que, numa definição latu sensu os direitos fundamentais podem ser considerados como direitos humanos reconhecidos no âmbito interno da Constituição de um Estado.

Por isso é interessante registrar, em apertada síntese, o desenvolvimento dos direitos fundamentais ao longo da história, até o reconhecimento dos referidos direitos pelo Estado brasileiro, onde, segundo Comparato (2013, p. 3), as primeiras manifestações dos direitos humanos encontram-se no chamado período axial, mas foi na origem do pensamento liberal, com a Magna Charta Libertatum, de 1215, que surgiram os primeiros documentos garantidores de direitos, considerados a semente dos direitos liberais ou liberdades públicas (chamados Direitos de 1ª geração/dimensão), posteriormente reforçados por uma série de documentos, a exemplo a Petition of Rights, o Habeas Corpus Act, a Bill of Rights.

Comparato (2000, p. 134) nos informa, ainda, como esses documentos, consagraram a visão de mundo liberalista, segundo a qual a propriedade é o mais sagrado de todos os direito e condição sem a qual outros direitos não poderiam subsistir, com base na lição dos grandes pensadores liberais como Rousseau, concepção esta que teve na Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, documento gerado no seio da Revolução Francesa de 1789, umas de suas maiores expressões.

Mattos Neto (2003, p. 2), acompanha o pensamento de Comparato, fazendo menção à Declaração de Virgínia de 12 de junho de 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França de 1789, como os primeiros documentos históricos a cristalizar valores e garantir o direitos, entretanto, observa que tais valores serviram de fundamento para codificação fundamentada no liberalismo econômico-jurídico do Século XIX, iniciado a partir do Código de Napoleão de 1804, no qual o liberalismo e o individualismo imperavam absolutos.

O avanço da cosmovisão liberal encontraria os primeiros obstáculos apenas após a Primeira Guerra Mundial, haja vista que este lastimoso evento trouxe um alargamento à Proteção Internacional dos Direitos Humanos, em uma série de documentos internacionais como: a proibição da escravidão na Convenção de Saint-Germain-En-Laye; As Convenções de 1933 e 1938, relativas ao Estatuto Internacional dos Refugiados; Os Convênios de Genebra de 1937, relativos à repressão contra o terrorismo e sobre a criação de um Tribunal Penal Internacional e principalmente, com a criação da OIT, em 1919, ainda no âmbito do Tratado de Versalhes.

Cabe observar que, até esse momento, o Direito Internacional ainda era um ramo especial do direito público, que dava conta apenas das relações internacionais entre Estados soberanos, razão pela qual não havia um esforço internacional efetivo contra violações de direitos que considerassem as violações contra direitos humanos de maneira geral.

Em 1945, marca-se o momento mais expressivo na afirmação histórica dos direitos humanos, com o início do processo de internacionalização desses direitos pela adoção da Carta das Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015), tendo sido ratificado pelo Brasil e entrado em vigor pela promulgação do Decreto nº 19.841, de 22 de Outubro de 1945 (BRASIL, 1945), que trouxe uma nova concepção de direito internacional ao outorgar aos Estados Membros o dever de proteger os Direitos Humanos em mútua cooperação, sem distinguir entre nacionais e estrangeiros, passando a considerar o homem como sujeito de direito na esfera internacional.

Cumpre ressaltar que nesse momento o preâmbulo da Carta registra a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e igualdade de direitos; e, ainda, a carta traz como um dos propósitos da Organização das Nações Unidas (ONU): a cooperação internacional para o desenvolvimento e estímulo ao respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais de todos, sem distinção por motivo de raça, sexo, idioma ou religião (teor do §3º, Art. 1º, da Carta).

Em 1948, foi submetida para aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, sendo aprovada com 48 votos a favor e 08 abstenções.

Em 1959 foi criada a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e posteriormente, em 1969, firmada a Convenção Americana sobre proteção dos direitos do homem e no art. 62 da mesma Convenção, foi fixada a responsabilidade internacional do Estado por violação dos Direitos Humanos por esta protegidos, por meio do aceite expresso e obrigatório por parte de cada Estado integrante, da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Em 1966, a Assembleia Geral da ONU, diante das disputas ideológicas que dividiam o mundo entre socialistas e capitalistas, conseguiu a aprovação dos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos (BRASIL, 1996, não paginado) e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, mas estes entraram em vigor apenas em 1976 (BRASIL, 1997, não paginado). Os dois pactos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, são, por excelência, os instrumentos normativos mais importantes no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos de 1ª e de 2ª Geração.

No Brasil, apesar da ratificação de muitos destes instrumentos internacionais, o Golpe Militar de 64 afastou as práticas dos direitos humanos. Já no período de redemocratização, Santilli (2005, p. 55-56) assevera como a Assembleia Nacional Constituinte recebeu todas as influências que marcaram o momento histórico internacional de desenvolvimento dos direitos humanos, aliado as pressões internas dos inúmeros movimentos sociais e as mobilizações nacionais, como a Diretas já.

Após a redemocratização, o Estado brasileiro já não era mais o mesmo, ou pelo menos, pretendia ser algo diferente e a Constituição de 1988 simboliza o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos País.

Nesse sentido, inúmeros movimentos sociais e as mobilizações nacionais e internacionais contribuíram para com o cenário político no qual a Constituição de 1988 foi gestacionada e muitos dos discursos acabaram entrando na pauta da Assembleia Constituinte.

Por isso, a Constituição de 1988 trouxe numerosas e importantes novidades no tratamento de direitos sociais, tendo sido registrado, logo no art. 3 da Constituição Federal, que são objetivos da República a busca pela construção de uma sociedade justa e solidária e democrática.

Assim, a Constituição de 1988 trouxe uma série de avanços, registrando, por exemplo, uma preocupação mais acentuada com direitos como o direito a um meio ambiente equilibrado, o direito à cultura, a proteção dos direitos dos povos indígenas, a própria função social do direito a propriedade, dentre outros. Por isso, é forçoso admitir que o Estado Democrático e de Direito, inaugurado a partir da Carta Magna de 1988, de fato não é o mesmo de qualquer outro momento histórico no Brasil.

Ao final deste processo de internacionalização, os direitos humanos se firmaram como direito universais, indivisíveis e complementares, históricos, irrenunciáveis, inalienáveis e imprescritíveis e assim foram recebidos pela Constituição de 1988, mormente após a retificação pelo Brasil do Pacto de San José da Costa Rica. Assim, restou consagrado no texto constitucional uma série de direitos que ganharam o status de direitos fundamentais, possuindo aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º §2º da Constituição, o que gera a vinculação dos poderes públicos, conforme Mendes (2009, p. 281), além da exigibilidade positiva, tanto sobre a garantia e liberdades individuais quanto sobre direitos sociais, conforme Sarlet (2012, p. 36):

Se, por outro lado, é preciso reconhecer que a previsão de direitos sociais na Constituição, nem mesmo quando lhes é garantido um regime jurídico qualificado, não é, por si só, suficiente para assegurar a todos os brasileiros uma vida digna, a fase inaugurada com a atual Carta Magna tem demonstrado que a tutela constitucional dos direitos sociais como direitos fundamentais tem sido um fato relevante tanto como pauta permanente de reivindicações na esfera das políticas públicas, quanto como poderoso instrumento para, na ausência ou insuficiência daquelas, ou mesmo pela falta de cumprimento das próprias políticas publicas, propiciar o assim designado empoderamento do cidadão individual e coletivamente considerado para uma ação concreta, ainda que nem sempre idealmente efetiva e muitas vezes mais simbólica. Nesta perspectiva, o fato de os direitos sociais serem considerados autênticos direitos fundamentais e, como tais, levados a sério também na sua condição de direitos subjetivos, tem também servido para imprimir à noção de cidadania um novo contorno e conteúdo, potencialmente mais inclusivo e solidário, o que por si só já justificaria todo o esforço em prol dos direitos sociais e nos serve de alento para seguirmos aderindo ao bom combate às objeções manifestamente infundadas que lhes seguem sendo direcionadas. 

Entretanto, segundo Souza (2007, p. 20) o Brasil, durante a redemocratização e a promulgação da Constituição que garantia a nova ordem jurídica, foi pego no contrapé da globalização, pois a então recente Constituição descreve uma série de direitos sociais que passam a ser lidos pela agenda neoliberal como um assistencialismo que o Brasil não seria capaz de implementar.

Nesse sentido, é suficiente dizer que o Art. 6º da Constituição Federal assegurou como sendo direitos sociais fundamentais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados e que nenhum desses direitos pode ser considerado como efetivamente realizável pelos cidadãos de baixa renda no país.

Isto porque, pelo neoliberalismo, os direitos que a Constituição de 1988 acabara de assegurar passaram a ser encarados como privilégios com os quais o Estado não poderia se comprometer, principalmente diante da tônica da privatização dos serviços públicos e do ajuste fiscal.

Souza (2007, p.  21) considera ainda que a política brasileira, a partir da implantação do Plano Real, conseguiu ajustar a economia, entretanto emperrou o desenvolvimento social, aumentando a miséria e as desigualdades sociais.

Nesse período, o país se vê diante da frustração das promessas da modernidade, cujo ideal de desenvolvimento seria supostamente capaz de acabar com as mazelas sociais, trazendo uma vida dignada a todos, mas que, ao contrário, o que se observa é o agravamento dos problemas sociais e a judicialização de políticas públicas básicas como as relativas a saneamento e saúde.

Por isso, apesar das inúmeras conquistas que foram alcançadas no âmbito da elevação de direitos a nível Constitucional, a Constituição de 1988 representa, na prática, o marco da acentuação da distância entre a realidade jurídica e a realidade fenomênica. Assim, é inevitável o reconhecimento da baixa aplicabilidade dos direitos fundamentais recém garantidos na Constituição de 1988, o que acarretou no fenômeno de judicialização das relações sociais e das políticas públicas, a partir do momento em que as pessoas vislumbraram a possibilidade de exigir do Estado os direitos garantidos na ordem jurídica e não realizados na prática.

Este fenômeno de judicialização também ocorreu nas relações do trabalho. Em 2016 a Justiça do Trabalho divulgou relatório afirmando ter julgado 3,6 milhões de processos em 2015[2]. Este número se manteve mesmo com a reforma trabalhista em 2017, influenciado pelas consequências da COVID-19 no mercado de trabalho[3].

Cabe observar que o Brasil, após a redemocratização, passava por uma severa crise econômica, cujo elemento mais simbólico era a super-inflação, que foi atenuada a partir da implantação do Plano Real e da agenda neoliberal, com o ajuste da economia, entretanto, não sem o agravamento das desigualdades sociais e o entrave no desenvolvimento de políticas sociais.

Por certo que este cenário refletiu diretamente nas relações entre capital e trabalho, relegando a segundo plano os direitos trabalhistas, mesmo aqueles consagrados no campo dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, os quais passaram a ser alvo de constantes ataques e tentativas de restrição, seja pela simples não aplicação por parte do setor empresarial, sob o argumento de que o cumprimento da legislação trabalhista retira a competividade, seja pelas inúmeras tentativas legislativas de reduzir direitos.

Ainda assim os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição de 1988, tanto as liberdades individuais quantos os direitos sociais, são tidos pela doutrina e jurisprudências como normas invioláveis, de eficácia imediata. Não obstante, quanto aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, expressos a partir do art. 7º da Constituição Federal, tem-se também como normas cogentes, ou seja, que estão acima das liberdades individuais de contratar, razão pela qual são irrenunciáveis, não podendo sofrer qualquer tipo de restrição, salvo as previsões feitas no próprio texto constitucional, com relação a jornada de trabalho e salário.

Em que pese a previsão Constitucional de flexibilização, todo direito do trabalho é concebido axiologicamente em função da proteção devida ao trabalhador, tomado como parte fraca da relação, em vista do desiquilíbrio provocado pelo capital.

Talvez por este motivo, há no Brasil um ambiente político ou uma consciência coletiva no sentido de considerar que a legislação trabalhista é um exagero paternalista descompensado que trava o desenvolvimento do país.

Sobre este tema, válidas são as contribuições de Maior (2016, p. não numerada):

No Brasil, que conviveu com a escravidão em quase quatrocentos anos de uma história de 500 anos e que ainda convive com estruturas culturais escravistas, o advento dos direitos trabalhistas foi marcado por muita resistência do ainda restrito setor industrial. Depois de instituídos, esses direitos têm sido alvo de constantes ataques desferidos por esse mesmo setor que só cresceu desde então, vale frisar com os mais variados adjetivos e estigmas: no começo a legislação trabalhista seria inoportuna. Na sequência foi chamada de fascista, partenalista, intervencionista, retrógrada... Presentemente, vive sob o fogo das retóricas da cubanização e do bolivarianismo.

Cumpre compreender que esse modo de refutar a posição do Estado e de suas instituições frente às questões trabalhistas põe em grave risco o projeto constitucional, que está baseado na essência do valor social do trabalho e dos direitos sociais. Quando a retórica do paternalismo ganha força os direitos sociais tendem a perder eficácia, não só do ponto de vista da construção teórica, mas, sobretudo, no aspecto da sua concretização, porque a efetividade de muitos desses direitos depende da implementação de políticas públicas que intervenham diretamente nas relações sócio-econômicas, sendo que no que se refere especificamente aos direitos trabalhistas é inegável a necessidade de um Estado que não apenas proclame esses direitos, mas que também garanta a sua aplicabilidade com serviços de fiscalização, impondo limites aos interesses meramente econômicos, notadamente do grande capital.

Quando esse projeto constitucional, que se traduz pela ideia de uma democracia pautada pelo Direito Social, é apelidado de paternalista seja lá o que queira dizer com isso, afinal os direitos liberais clássicos, propriedade e contrato, não existem sem a força coercitiva do Estado tanto para garantir a eficácia dos tratos negociais quanto para impedir a rebeldia dos excluídos do sagrado direito de propriedade, ou seja, sem um parternalismo em favor da classe dominante corre-se o risco dos direitos trabalhistas virarem fumaça. Claro que não há nisso muita novidade, pois como já advertia Marx, mais cedo ou mais tarde as coisas se revelam e tudo que era sólido se desmancha no ar...

É, por isso, bastante oportuno verificar o quanto esses ataques ideológicos, que já se expressaram, no início da era neoliberal, em fórmulas como modernidade e globalização, visam mascarar a realidade da sociedade de classes, trazendo consigo, no âmbito específico das relações de trabalho, para essa mesma finalidade, noções como as de parceiros sociais e de colaboradores, e que hoje, em época nem tão distinta assim, se valem de outras fórmulas como ado bolivarianismo, tudo para minar a eficácia dos direitos trabalhistas, sendo que, presentemente, o risco é ainda maior na medida em que já não se fala mais eufemisticamente em flexibilização e se sim de retirada, pura e simples, de direitos.

De modo que, podemos concluir que, não obstante o status constitucional de muitos dos direitos trabalhistas, o que se observa é que o neoliberalismo, a pós-modernidade, a globalização dentre outros fatores, acabaram influenciando o contexto do direito do trabalho no Brasil, para que criar um ambiente político no qual o direito do trabalho é concebido como um paternalismo exacerbado que trava o desenvolvimento nacional, o que gera um sentimento favorável a redução dos direitos trabalhistas.

A seguir, veremos o papel da luta organizada dos trabalhadores, por meio do sindicato, na defesa dos direitos trabalhistas.

4.            Os desafios do Sindicalismo brasileiro na efetivação dos direitos sociais relativos ao trabalho e a ADPF 323.

Ora, não obstante as dificuldades para efetivação e progresso dos direitos trabalhistas no Brasil, já narradas no início deste trabalho, o arcabouço jurídico das normas relativas ao modelo sindical brasileiro acabou por gerar, por si mesmas, uma série de dificuldades a luta obreira.

Exemplo disso é o tema complexo e polêmico da liberdade sindical, que é tratada de forma distinta pela doutrina, mas que entretanto, pode-se, com certa segurança, destacar algumas das dimensões mais comumente reconhecidas como a liberdade de organização, liberdade de administração, liberdade de negociação e liberdade de filiação.

Em termos de liberdade sindical, não há referência mais importante do que a Convenção n. 87 da OIT, não ratificada pelo Brasil em razão das incompatibilidades do modelo sindical brasileiro e os princípios da referida norma internacional, por exemplo, o princípio constitucional da unicidade sindical que garante que não haverá mais de um sindicato para uma mesma categoria na mesma base territorial é incompatível com a liberdade sindical estabelecida naquela norma, assim também a contribuição compulsória e assim por diante.

Nascimento (2009, p. 134) destaca quatro garantias universais presentes na Convenção n. 87 da OIT, a saber, a) a de fundar sindicatos; b) a de administrar sindicatos; c) a de garantir a atuação do sindicato e d) a de assegurar o direito de se filiar ou não a um sindicato.

A bem da verdade, considera-se que a Convenção n. 87 da OIT ter por um de seus objetivos o de democratizar o sindicalismo em suas relações com o Poder Publico e princípio da liberdade sindical nela previsto traz em si várias dimensões a serem consideradas, como bem considera Nascimento.

Pela análise do princípio da liberdade sindical podemos concluir que os sindicatos não podem ser dissolvidos ou suspensos por autoridades administrativas, também não podem sofrer interferência e a intervenção dos poderes Executivo e Legislativo, principalmente quando estes venham buscar a frustração da atuação legitima da entidade na defesa dos interesses dos trabalhadores.

Nos termos da Convenção n. 87 da OIT, a liberdade sindical, sobre a dimensão do direito de constituir sindicatos não pode ser restringida pela lei ou pelo Poder Público, no sentido de controlar a base territorial ou as profissões que integram aquela categoria, antes, o Poder Público deve se limitar a fazer tão somente o registro formal do sindicato.

Noutro sentido, a liberdade sindical também se refere a liberdade individual dos trabalhadores para o ingresso e saída de sindicatos e, ainda, sobre o direito de não se filiar e não ser obrigado a pagar nenhum tipo de contribuição compulsória.

E é sob este aspecto, o da liberdade individual do trabalhador, que a liberdade sindical é mais restrita no Brasil, tendo em vista que vige aqui o princípio da unicidade sindical, que é aquele princípio segundo o qual é vedado a existência de mais de uma entidade representativa da mesma categoria em determinada área territorial.

Ora, considera-se o princípio da unicidade sindical conflitante com a liberdade sindical assegurada pela Convenção n. 87 da OIT, tendo em vista que a restrição imposta pelo Poder Público em nível Constitucional impede que sindicatos e trabalhadores se relacionem com liberdade, sem preocupações territoriais.

Na prática do movimento sindical brasileiro, onde as entidades sindicais devem ser registradas junto ao Ministério do Trabalho para conseguir a chamada personalidade sindical, apenas uma entidade sindical, em determinada base territorial, conseguirá o referido registro. Por isso, é comum na Justiça do Trabalho o ajuizamento de processos que visam impedir atos de constituição de novos sindicatos, discutindo-se se o novo sindicato que pretende se formar fere ou não o princípio da unicidade sindical.

É neste tipo de ação que encontramos a maior parte da jurisprudência sobre o tema.

Cabe observar que o Brasil adota o princípio da unicidade sindical não apenas para as entidades de nível inferior, ou seja, os sindicatos, mas também as federações e confederações devem observar o mesmo princípio.

Em sentido contrário ao princípio da unicidade sindical encontramos o princípio do pluralismo, que por óbvio refere-se a possibilidade de coexistência de vários entes sindicais de uma mesma categoria sobre uma mesma base territorial. Sobre o tema é importante destacar que aqueles que defendem a manutenção da unicidade sindical no Brasil consideram que as circunstancias econômicas e políticas presentes no país não ocasionariam um enfraquecimento do movimento sindical da classe operatória em casos de pluralidade sindical, que seria um princípio mais coerente ou eficaz em países economicamente mais consolidados, onde houvesse uma tradição sindicalista bem definida e uma estrutura sindical capaz de suportar as pressões oriundas do embate entre capital e trabalho. 

Ora, no Brasil, embora a Constituição de 1988 tenha assegurado, de uma parte, a liberdade das organizações sindicais, impedindo a intervenção Estatal ao garantir a liberdade de associação, organização, administração e outras, além do incentivo à negociação coletiva, por outro lado, ao impor o sistema de unicidade sindical em qualquer grau, na mesma base territorial e ainda, ao instituir a compulsoriedade da contribuição sindical, acaba por restringir aspectos importantes da liberdade sindical.

Na prática, o que se observa deste modelo brasileiro é a pulverização da luta obreira, com a criação de centenas de sindicatos, muitos deles inviáveis do ponto de vista econômico e com correspondente fragilidade política.

Outro ponto nevrálgico teve, recentemente, julgamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se da ADPF 323, que diz respeito sobre a ultratividade das negociações coletivas, até então consolidada no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Súmula 277 do c. TST, que assim dispõe:

Súmula 277 do TST. CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. EFICÁCIA. ULTRATIVIDADE. As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificados ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho.

Ora, a Súmula em questão veio para dar solução aos casos em que findava a vigência da norma coletiva sem que as partes tivessem entabulado nova convenção ou sem que tivesse sido exarada sentença normativa, haja vista que o art. 611 da CLT, estabelece como um dos elementos das convenções e normas coletivas de trabalho a vigência, nesse sentido, transcrevemos a seguir o art. 611 da CLT:

Art. 611. Convenções coletivas de trabalho é o acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais do trabalho.

§1º É facultado aos Sindicatos representativos de categorias profissionais celebrar Acordos Coletivos com uma ou mais empresas da correspondente categoria econômica, que estipulem condições de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa ou das empresas acordantes às respectivas relações de trabalho.

§2º As Federações e, na falta desta, as Confederações representativas de categorias econômicas ou profissionais poderão celebrar convenções coletivas de trabalho para reger as relações das categorias a elas vinculadas, inorganizadas em Sindicatos, no âmbito de suas representações.

Dessa forma, é cediço que por meio das negociações coletivas empregadores e empregados, sem prejuízo dos direitos assegurados em lei, estabelecem direitos e obrigações que passam a integrar o contrato individual de trabalho no período de vigência da norma coletiva que, segundo previsão no art. 613, II, da CLT, não podem ser celebrados por prazo indeterminado.

Entretanto, a ultratividade das normas coletivas foi suspensa em cautelar proferida nos autos da APF 323, por decisão monocrática proferida pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, em processo cujo objeto é declarar que a referida Súmula 277 do TST ofende preceito fundamental.

Ora, nesse sentido, transcrevemos o trecho final da decisão, pois elucidativo quanto a questão, trazendo porém a decisão na íntegra no anexo deste trabalho, a seguir, in verbis:

3.1. Caso concreto: a nova redação da Súmula 277 do TST.

Desde uma análise preliminar, parece evidente que a alteração jurisdicional consubstanciada na nova redação da Súmula 277 do TST suscita dúvida sobre a sua compatibilidade com os princípios da legalidade, da separação dos Poderes e da segurança jurídica. Ademais, causa igual perplexidade o caráter casuístico da aplicação do princípio da ultratividade das normas coletivas, como indicarei neste tópico.

Legalidade e separação dos Poderes

O novo entendimento do Tribunal Superior do Trabalho objeto da presente ADPF tem como fundamento a alteração redacional feita pela EC 45/2004 no § 2º do art. 114 da Constituição Federal.

A Corte trabalhista passou a interpretar a introdução do vocábulo anteriormente à expressão convencionadas como suposta reinserção do princípio da ultratividade condicionada da norma coletiva ao ordenamento jurídico brasileiro.

Em consulta à jurisprudência, vê-se que o entendimento aqui contestado segue sendo reiteradamente aplicado, com trechos da fundamentação em destaque:

RECURSO DE REVISTA. 1. PRESCRIÇÃO TOTAL DECLARADA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA E AFASTADA PELO TRIBUNAL REGIONAL. PROSSEGUIMENTO NO

Sobre o autor
Neyilton da Costa Oliveira

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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