Absorção do crime de uso de documento falso pelo crime ambiental

02/06/2022 às 18:00
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Incide o princípio da consunção entre o crime de uso de documento falso e crime ambiental de transportar madeira ilegal ou de origem ilícita. Absorção do crime de uso de documento falso pelo crime ambiental.

Imagem: IBAMA. Artigo original em https://advambiental.com.br/crime-ambiental-documento-falso/

Vamos analisar se a conduta de transportar madeira de origem ilícita com documento falso se insere simultaneamente nos delitos previstos no art. 46 da Lei 9.605/98 e art. 304 do Código Penal, ou se nela incide o princípio da consunção.

O art. 46 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) dispõe:

Art. 46. Receber ou adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até final beneficiamento:

Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, tem em depósito, transporta ou guarda madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente.

O art. 304 do Código Penal, trata o uso de documento falso assim:

Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:

Pena - a cominada à falsificação ou à alteração.

Parte da jurisprudência entende que o transporte de madeira por meio de autorizações para transporte de produtos florestais sabidamente falsas se subsume ao crime de uso de documento falso.

Nesse sentido, entende-se incabível o entendimento de que o crime de uso de documento falso (art. 304, CP) seja absorvido pelo crime ambiental (art. 46, da Lei 9.605/98), tendo em vista que o primeiro não serviu como meio necessário para a execução do segundo, pois tutelariam bens jurídicos diversos: a fé pública e o meio ambiente.

Não concordamos com esse entendimento, e por isso, temos defendido a aplicabilidade do princípio da consunção entre referidos crimes, de modo que somente o crime ambiental deve incidir.

1. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO NO CRIME DE TRANSPORTE DE MADEIRA ILEGAL E DOCUMENTO FALSO

O princípio da consunção é aplicável quando há uma sucessão de condutas com existência de um nexo de dependência, no qual exsurge a ausência de desígnios autônomos, e há uma relação de todo e parte, de inteiro e fração.

Nesse sentido, o princípio da consunção pressupõe que haja um delito-meio ou fase normal de execução do outro crime (crime-fim), sendo que a proteção de bens jurídicos diversos e a absorção de infração mais grave pelo de menor gravidade não são motivos para impedirem a referida absorção.

Isto é, admite-se que um crime de maior gravidade, assim considerado pela pena abstratamente cominada, possa ser absorvido, por força do princípio da consunção, por crime menos grave, quando utilizado como mero instrumento para consecução deste último, sem mais potencialidade lesiva.

No caso de transporte de madeira de origem ilícita com documento falso, o crime do art. 304 do Código Penal deve ser absorvido pela conduta do crime ambiental do art. 46 da Lei 9.605/98, ou seja, aplica-se o princípio da consunção, ainda que a pena daquele seja maior que este.

Isso porque, em casos assim, o documento falsificado serve apenas como crime-meio para o fim de conseguir que o caminhão passe pela fiscalização com a carga de madeira de origem ilegal.

Em suma, o princípio da consunção ocorre quando uma norma penal constitui meio necessário ou uma fase de preparação ou de execução de uma outra infração penal, de modo que exista dependência ou subordinação entre as condutas, como é o caso dos tipos penais em análise.

2. CRIME MAIS GRAVE PODE SER ABSORVIDO PELO MENOS GRAVE

O entendimento no que tange a impossibilidade de aplicação do princípio da consunção do crime mais grave em relação a crime mais brando, é matéria superada, tendo em vista que o STJ, ao apreciar o RESp 1378053/PR, submetido ao rito dos recursos repetitivos (tema n. 933), entendeu que o crime mais grave pode ser absorvido pelo menos grave, quando aquele for etapa preparatória ou executória deste:

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. RITO PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC. DIREITO PENAL. PRINCIPIO DA CONSUNÇÃO. DESCAMINHO. USO DE DOCUMENTO FALSO. CRIME-MEIO. ABSORÇÃO. POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL IMPRO VIDO. [...]

O delito de uso de documento falso, cuja pena em abstrato é mais grave, pode ser absorvido pelo crime-fim de descaminho, com menor pena comparativamente cominada, desde que etapa preparatória ou executória deste, onde se exaure sua potencialidade lesiva. Precedentes.

Delimitada a tese jurídica para os fins do art. 543-C do CPC, nos seguintes termos: Quando o falso se exaure no descaminho, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido, como crime-fim, condição que não se altera por ser menor a pena a este cominada. Recurso especial improvido. (REsp 1378053/PR, ReL Ministro NEFI CORDEIRO, Terceira Seção, julgado em 10/08/2016, DJe 15/08/2016).

No voto condutor do acórdão acima mencionado, o Ministro Relator assim discorreu:

[...] o conteúdo de injusto principal consome o conteúdo de injusto do tipo secundário porque o tipo consumido constitui meio regular (e não necessário) de realização do tipo consumidor (SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral, 6a ed., Curitiba: ICPC, 2014, p. 418), sendo irrelevante que a pena em abstrato cominada ao tipo consumido seja superior àquela imposta ao tipo consumidor.

Sobre a matéria, esta Corte já se pronunciou no sentido de não ser obstáculo para sua aplicação a proteção de bens jurídicos diversos ou a absorção de infração mais grave pelo de menor gravidade (Resp 1294411/SP, Rel Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 10/12/2013, DJe 03/02/2014).

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Em casos análogos, o Superior Tribunal de Justiça adotou a orientação de que o delito de uso de documento falso, cuja pena em abstrato é mais grave, pode ser absorvido quando não constituir conduta autônoma, mas mera etapa preparatória ou executória do descaminho, crime de menor gravidade, no qual o falso exaure a sua potencialidade lesiva.

Sendo assim, perfeitamente cabível o princípio da consunção na hipótese em que o delito-meio de uso de documento falso nada mais representou senão etapa preparatória para o crime-fim (transporte irregular de madeira).

3. JURISPRUDÊNCIA

Acerca da absorção do crime de uso de documento falso como crime meio, pelo crime fim pretendido pelo agente, no qual se exaure, o Superior Tribunal de Justiça STJ tem entendido:

PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME AMBIENTAL. TRANSPORTE IRREGULAR DE MADEIRA. CRIME DE USO DE DOCUMENTO FALSO. ATPF'S FALSAS. CRIME-MEIO COM PENA MAIS GRAVE. BENS JURÍDICOS DIVERSOS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. IMPROVIMENTO DA APELAÇÃO.

1. O STJ, ao apreciar o RESp 1378053/PR, submetido ao rito dos recursos repetitivos (tema n. 933), entendeu que o crime mais grave pode ser absorvido pelo menos grave, quando aquele for etapa preparatória ou executória deste. Precedentes desta Corte.

2. Se uma conduta tipificada representar mero exaurimento da outra, sem potencialidade lesiva remanescente, pouco importa se tutela bens diferentes ou se o crime mais grave é absorvido pelo de menor gravidade para que seja aplicado o princípio da consunção.

3. Na espécie, o delito-meio (adulteração de ATPF's) nada mais representou senão etapa preparatória para o crime-fim (comercialização irregular de madeira), em face do que se deve aplicar o princípio de da consunção. 4. Apelação desprovida. (TRF-1 - APR: 00064764820084013900, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES, Data de Julgamento: 12/05/2020, QUARTA TURMA)

Com base nesse entendimento, é de se concluir que não há obstáculo para a aplicação do princípio da consunção quando restar confirmado que um crime foi utilizado como instrumento para a prática de outro, mesmo que os delitos tutelem bens jurídicos diversos.

4. CONCLUSÃO

Do que foi exposto, pode-se objetar que os crimes tutelam bens diversos fé pública e proteção ao meio-ambiente , o que representaria óbice ao reconhecimento do princípio da consunção.

No entanto, o que se deve perquirir, em casos como tais, não é a existência ou não de desígnios autônomos entre os delitos, mas se uma conduta tipificada representar mero exaurimento da outra, sem potencialidade lesiva remanescente.

Portanto, se uma conduta tipificada representar mero exaurimento da outra, sem potencialidade lesiva remanescente, pouco importa se tutela bens diferentes ou se o crime mais grave é absorvido pelo de menor gravidade para que seja aplicado o princípio da consunção.

[1] GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral, Volume I, Rio de Janeiro: Impetus, 12ª Ed., 2010, p. 29.


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Sobre o autor
Cláudio Farenzena

Escritório de Advocacia especializado e com atuação exclusiva em Direito Ambiental, nas esferas administrativa, cível e penal. Telefone e Whatsapp Business +55 (48) 3211-8488. E-mail: [email protected].

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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