Introdução
Peter Häberle é um jurista alemão, orientado por Konrad Hesse[1] e no artigo objeto do presente trabalho, publicado originalmente na revista Juristen Zeitung, edição de maio de 1975, trata sobre a hermenêutica constitucional. Ele argumenta que a interpretação não decorre apenas da atividade intencional dos legitimados a fazê-la, mas também decorre da atividade de vários outros atores da sociedade, que ele chama de Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição.
Segundo Amaral[2], o conceito de Constituição desenvolvido por esse autor é o de Constituição como processo público, fundado no pluralismo que é o efeito das inúmeras vozes e ideias da sociedade contemporânea, em geral conflituosas, presentes no domínio político, cultural, econômico e científico, dessa forma, a tolerância é um dos fundamentos para a própria sobrevivência dessa sociedade pluralista. O pluralismo é também uma característica do Estado Democrático de Direito e a Constituição será a obra fundamental construída por essa sociedade.
Já o conceito de Sociedade Aberta tem origem no pensamento de Karl Popper, uma sociedade baseada no exercício crítico da razão humana e que estimula a liberdade dos seus membros visando a reforma para a solução dos seus problemas, como um contraponto ao conceito de Sociedade Fechada, uma sociedade totalitária baseada em normas não modificáveis[3]. No texto de Häberle, a Sociedade Fechada de intérpretes, representa aqueles legalmente legitimados para interpretar o texto constitucional.
A Hermenêutica constitucional é fundamental para metodologia em análise, visto que a mesma diferencia-se da prática de outros campos do Direito, pois tem efeitos sobre todo o direito positivo do Estado. O texto constitucional, produzido nem sempre por especialistas em redação jurídica, por vezes apresenta termos vagos e plurívocos que acabam sendo valorados no quotidiano da vida política e podem ter uma interpretação variada dependendo de seu contexto histórico. É também comum a inclusão de normas com a imposição de metas à ação estatal sem, contudo, definir-se o caminho para alcançá-las, bem como normas carregadas de valores morais e aspirações filosóficas, trazendo debates políticos e morais para os aplicadores, que também carregam pré-compreensões que farão parte de sua interpretação[4].
O texto em estudo é dividido em cinco partes: a primeira trata da descrição do problema, a segunda apresenta os participantes do processo de interpretação, a terceira parte é uma análise da tese apresentada, a quarta parte trata das consequências para a hermenêutica constitucional jurídica e, por fim apresenta novas indagações para a teoria constitucional.
I Tese Fundamental, Estágio do Problema
Häberle inicia o texto discorrendo sobre a situação da Teoria da Interpretação Constitucional daquele período. As questões essenciais então eram: tarefas e objetivos da interpretação e metodologia, mas ainda não se dava muita atenção à questão dos atores participantes do processo interpretativo, nem a necessidade de utilização de métodos voltados para o atendimento do interesse público e o bem-estar geral, fatores fundamentais para a Teoria, segundo o autor (HEBERLE, 1975).
Quanto aos participantes do processo interpretativo, o jurista entendia que há uma transição de uma sociedade fechada, composta por intérpretes jurídicos legalmente definidos para uma sociedade aberta:
No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. (HABERLE, 1975)
Caracteriza-se intérprete no sentido estrito aquele a quem é dada a competência para dar a última palavra sobre a interpretação, entendida num sentido tradicional como uma atividade intencional e consciente, destinada à explicação do sentido da norma. O intérprete no sentido lato seria todo aquele que vive a norma: cidadão e grupos, órgãos estatais, sistema público e opinião pública, já que acabam por interpretar a Constituição previamente. Para o autor, os critérios de interpretação serão mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade e a pesquisa sobre o desenvolvimento da interpretação deve levar em conta o conceito amplo de intérprete (HABERLE, 1975).
Para investigar os atores envolvidos no processo de interpretação, a Teoria da Constituição se desenvolve tradicionalmente baseando-se no tempo, na esfera pluralista e na realidade como fontes de problemas e de interpretação constitucional, mas ela, como uma ciência da experiência, deve explicar também: grupos concretos de pessoas, fatores formadores do espaço público, como trata a realidade, sua atuação no tempo possibilidades e necessidades. Faz-se necessário saber qual a interpretação adotada e de que maneira a ciência agiu sobre o processo hermenêutico do juiz (HABERLE, 1975).
II Os Participantes do Processo de Interpretação Constitucional
Häberle propõe um catálogo sistemático de participantes do processo interpretativo, elencando, por exemplo: as funções estatais de decisão vinculante, demais órgãos de jurisdição, órgãos legislativos e executivos; aqueles que obrigam o tribunal a tomar a decisão (requerente e requerido), pessoas com direito a tomar parte na lide, pareceristas, peritos, associações, partidos políticos, grupos de pressão organizados, a opinião pública, a mídia, a doutrina constitucional, dentre outros. Pretende assim mostrar que a visão do passado era centrada apenas nos órgãos estatais que participavam diretamente do processo e, apesar de sua importante contribuição, faz-se necessária uma visão personalista desses órgãos, também são formados por pessoas: parlamentares, servidores públicos e juízes. O debate originário do processo político, também está presente na Constituição, a mutação constitucional é fonte de interpretação. O legislador tem um poder de conformação que cria realidades públicas, do outro lado, o juiz constitucional apesar de sua atuação num espaço limitado usando argumentos de ordem técnica pode determinar como o legislador deve atuar (HABERLE, 1975).
III Apreciação da Análise Desenvolvida
Na terceira parte do artigo o autor apresenta críticas à tese da sociedade aberta de intérpretes constitucionais, pois, dependendo da forma como é praticada, pode dissolver-se em uma vastidão de interpretações e intérpretes, o que seria contrário ao postulado da Unidade Constitucional. Deve-se observar, todavia, a questão da legitimação dos diversos intérpretes, dentro das competências estabelecidas em lei: órgãos estatais, parlamentares, partidos políticos contribuem todos de formas diferenciadas no processo. A unidade da Constituição resulta na conjugação dos diversos intérpretes exercendo suas funções específicas (HABERLE, 1975).
O mestre alemão assevera que a interpretação é um processo aberto e não de submissão como na recepção de uma nova ordem. Pela interpretação, há a possibilidade de abertura de diversas possibilidades, até mesmo o que fora vinculado pode passar a ser liberdade. A ampliação do círculo de intérpretes, com suas influências, expectativas e obrigações sociais, antes de ser uma ameaça independência do juiz constitucional, são parte da legitimação de uma decisão e evitam o livre arbítrio, uma vez que a interpretação é feita na esfera pública e na realidade (HABERLE, 1975).
As forças pluralistas têm legitimidade no processo de interpretação pois elas representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição. A Lei que estrutura não só o Estado, mas também a sociedade, inclusive seus setores privados, deve integrar essas forças sociais como sujeitos, capazes de atuar de forma difusa e concentrada na interpretação, até mesmo quando são excluídas do processo (protegendo-os). Quanto a ciência constitucional, Haberle (1975) demonstra que, como elemento autônomo e integrado da comunidade política, a sua função é traduzir a interpretação metodológica, formar intérpretes constitucionais e ser acessível à sociedade.
Häberle (1975) então passa a refletir sobre a Teoria da Legitimação no âmbito do Estado Constitucional Democrático. Em sentido estrito, o cidadão não dispõe de legitimação para interpretação constitucional, mas no sentido lato a perspectiva de liberdade se amplia a medida que a participação se assegura como parte dos direitos fundamentais, como um direito de cidadania, visto que o povo não se trata só de um referencial qualitativo que delega poderes nas eleições, é sim legitimador do processo constitucional como parte de uma democracia do cidadão, que se opõe a Democracia popular, pois naquela há a discussão sobre e sob as normas constitucionais.
IV Consequências para a Hermenêutica Constitucional Jurídica
O jurista alemão passa a refletir sobre os efeitos da sociedade aberta de intérpretes sobre a hermenêutica constitucional. Primeiramente trata sobre a relativização da interpretação jurídica, causada especialmente o fato das forças públicas agindo previamente na interpretação constitucional tirarem o juiz de um isolamento interpretativo, ademais, Häberle (1975) reflete que muitos problemas não chegam à Corte Constitucional, seja pela falta de iniciativa, seja pela falta de competência da corte em determinados assuntos (tratados por alguns órgãos em suas esferas de competência). Em essência, o constitucionalista, no longo prazo, é um mediador do processo de interpretação.
Quanto ao método de interpretação, o controle judicial exercido pela corte constitucional deve levar em conta o grau de participação dos intérpretes envolvidos, demandando uma metodologia diferente para cada caso: há o caso de submissão de decisões prévias de outros órgãos, o caso de leis que não despertam interesse da opinião pública e leis que movimentam intensamente a participação popular. Neste último caso, o autor informa que a Corte deve exercer um controle rigoroso, () cabe ao Tribunal a tarefa de zelar para que não perca o mínimo indisponível da função integrativa da Constituição. (HABERLE,1975, p. 45) Especialmente no que se refere a permitir a participação equilibrada inclusive daqueles atores que não estão representados. Häberle também aponta consequências para a Conformação Legislativa, uma vez que à medida que a atividade de jurisdição constitucional se amplia, ocorre uma restrição do espaço de interpretação do legislador com efeitos no direito processual constitucional, que passa a ser parte do direito de participação democrática resultando em uma interpretação ampliativa sem necessariamente se tornar uma unidade de posicionamentos entre a interpretação jurisdicional e a do legislador.
V Novas Indagações para a Teoria Constitucional
Já se discorreu sobre a possibilidade de dissolução da interpretação constitucional na discussão sobre a metodologia da interpretação ao levar em conta a multiplicidade de intérpretes. Häberle retoma o tema asseverando que considerar a teoria em estudo apenas como a busca de consenso e unidade política é uma simplificação, visto que a presente teoria não é uma teoria harmonizadora, mas uma teoria na qual o consenso é resultado de conflitos e compromissos entre os participantes. Cada qual tem diferentes opiniões, defende seus próprios interesses e utiliza metodologias específicas de interpretação, cada uma, dependendo de qual órgão emitiu, é correta (correção funcional). Nesse sentido, faz-se necessária uma discussão profunda dos princípios da hermenêutica de caráter jurídico-funcional para a interpretação material da Constituição (HABERLE, 1975).
O autor também aponta a importância da Teoria Constitucional em pesquisar as particularidades da interpretação constitucional realizadas pelo legislador seja no processo político, seja no processo constitucional. Ressalta também a necessidade de se analisar a possibilidade de se constitucionalizar normativamente a participação dos outros participantes da sociedade aberta de interpretação (HABERLE, 1975).
Conclusão
Entende-se que a capacidade de um graduando em direito compreender o impacto da teoria proposta por Häberle é assaz limitada, especialmente levando-se em conta a dimensão temporal do momento de sua proposição, em que muitos dos conceitos apresentados devem ter sido enunciados pela primeira vez. Dessa forma, faz-se necessário recorrer à análise de juristas mais experientes. Amaral[5] afirma que A teoria da Sociedade Aberta dos intérpretes da Constituição promoveu uma revolução no âmbito da Teoria da Constituição, profetizando uma nova maneira de se analisar a Constituição, bem como de interpretá-la. Haberle já adianta algumas críticas à sua teoria, como a de Böckenförd[6] sobre a questão da possível dissolução da constituição frente a necessária unicidade constitucional, Canotilho[7] destaca um processo de existencialismo atualizador e diminuição da normatividade política da Constituição sob o pretexto de abertura. A despeito dessas ideias, entende-se que a teoria proposta de Häberle permite avançar a compreensão sobre o modo como a sociedade lida e interpreta a sua Constituição, como elemento da ciência constitucional, desvenda o ser, como é na realidade o processo de interpretação, longe do dever ser preconizado pela teoria clássica de interpretação somente como atividade de um grupo de legitimados.
Interessante diálogo com os escritos de Lassalle é trazido pelo professor Inocêncio Coelho[8], que assevera ter Häberle trazido para a participação social plural da sociedade aberta de intérpretes constitucionais aqueles citados fatores reais de poder, mostrando que eles não necessariamente transformarão a constituição numa mera folha de papel, mas podem participar do processo interpretativo, uma vez que o próprio Häberle diz: Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretire Rechtsnormen
Referências
- Disponível em http://www.bieur.uni-bayreuth.de/de/team/01_peter_haeberle/index.html acesso em 03/10/2019
- AMARAL, Rafael Caiado. Peter Häberle e a Hermeneutica constitucional: Alcance doutrinário. Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 117-118
- REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 118 -119.
- MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 9.a edição. Editora Saraiva, 2014.
- AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 135.
- BÖCKENFORD, Erns-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. 1993. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 136.
- CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Cosntituição dirigente e vinculação do legislador. 1994. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 136.
- COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de porder. Revista de Informação Legislativa. Bras;ilia, ano 35, n.o 138, 1998, p. 186. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 129.