Resenha crítica do artigo “Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para Interpretação Pluralista e ‘Procedimental’ da Constituição” de Peter Häberle

Resumo:


  • Peter Häberle desenvolveu a teoria da Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição, destacando que a interpretação constitucional não é exclusiva aos atores jurídicos formalmente reconhecidos, mas envolve diversos participantes da sociedade.

  • A hermenêutica constitucional é influenciada pelo pluralismo da sociedade contemporânea, com a interpretação da Constituição variando de acordo com o contexto histórico e sendo enriquecida pelas diversas vozes e ideias presentes no espaço público e político.

  • Häberle argumenta que a ampliação do círculo de intérpretes da Constituição, incluindo cidadãos, grupos e opinião pública, não ameaça a unidade constitucional, mas sim legitima as decisões e contribui para a democracia ao permitir que múltiplas influências e perspectivas sejam consideradas no processo interpretativo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Introdução

Peter Häberle é um jurista alemão, orientado por Konrad Hesse[1] e no artigo objeto do presente trabalho, publicado originalmente na revista Juristen Zeitung, edição de maio de 1975, trata sobre a hermenêutica constitucional. Ele argumenta que a interpretação não decorre apenas da atividade intencional dos legitimados a fazê-la, mas também decorre da atividade de vários outros atores da sociedade, que ele chama de Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição.

Segundo Amaral[2], o conceito de Constituição desenvolvido por esse autor é o de Constituição como processo público, fundado no pluralismo que é o efeito das inúmeras vozes e ideias da sociedade contemporânea, em geral conflituosas, presentes no domínio político, cultural, econômico e científico, dessa forma, a tolerância é um dos fundamentos para a própria sobrevivência dessa sociedade pluralista. O pluralismo é também uma característica do Estado Democrático de Direito e a Constituição será a obra fundamental construída por essa sociedade.

Já o conceito de Sociedade Aberta tem origem no pensamento de Karl Popper, uma sociedade baseada no exercício crítico da razão humana e que estimula a liberdade dos seus membros visando a reforma para a solução dos seus problemas, como um contraponto ao conceito de Sociedade Fechada, uma sociedade totalitária baseada em normas não modificáveis[3]. No texto de Häberle, a Sociedade Fechada de intérpretes, representa aqueles legalmente legitimados para interpretar o texto constitucional.

A Hermenêutica constitucional é fundamental para metodologia em análise, visto que a mesma diferencia-se da prática de outros campos do Direito, pois tem efeitos sobre todo o direito positivo do Estado. O texto constitucional, produzido nem sempre por especialistas em redação jurídica, por vezes apresenta termos vagos e plurívocos que acabam sendo valorados no quotidiano da vida política e podem ter uma interpretação variada dependendo de seu contexto histórico. É também comum a inclusão de normas com a imposição de metas à ação estatal sem, contudo, definir-se o caminho para alcançá-las, bem como normas carregadas de valores morais e aspirações filosóficas, trazendo debates políticos e morais para os aplicadores, que também carregam pré-compreensões que farão parte de sua interpretação[4].

O texto em estudo é dividido em cinco partes: a primeira trata da descrição do problema, a segunda apresenta os participantes do processo de interpretação, a terceira parte é uma análise da tese apresentada, a quarta parte trata das consequências para a hermenêutica constitucional jurídica e, por fim apresenta novas indagações para a teoria constitucional.

I Tese Fundamental, Estágio do Problema

Häberle inicia o texto discorrendo sobre a situação da Teoria da Interpretação Constitucional daquele período. As questões essenciais então eram: tarefas e objetivos da interpretação e metodologia, mas ainda não se dava muita atenção à questão dos atores participantes do processo interpretativo, nem a necessidade de utilização de métodos voltados para o atendimento do interesse público e o bem-estar geral, fatores fundamentais para a Teoria, segundo o autor (HEBERLE, 1975).

Quanto aos participantes do processo interpretativo, o jurista entendia que há uma transição de uma sociedade fechada, composta por intérpretes jurídicos legalmente definidos para uma sociedade aberta:

No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. (HABERLE, 1975)

Caracteriza-se intérprete no sentido estrito aquele a quem é dada a competência para dar a última palavra sobre a interpretação, entendida num sentido tradicional como uma atividade intencional e consciente, destinada à explicação do sentido da norma. O intérprete no sentido lato seria todo aquele que vive a norma: cidadão e grupos, órgãos estatais, sistema público e opinião pública, já que acabam por interpretar a Constituição previamente. Para o autor, os critérios de interpretação serão mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade e a pesquisa sobre o desenvolvimento da interpretação deve levar em conta o conceito amplo de intérprete (HABERLE, 1975).

Para investigar os atores envolvidos no processo de interpretação, a Teoria da Constituição se desenvolve tradicionalmente baseando-se no tempo, na esfera pluralista e na realidade como fontes de problemas e de interpretação constitucional, mas ela, como uma ciência da experiência, deve explicar também: grupos concretos de pessoas, fatores formadores do espaço público, como trata a realidade, sua atuação no tempo possibilidades e necessidades. Faz-se necessário saber qual a interpretação adotada e de que maneira a ciência agiu sobre o processo hermenêutico do juiz (HABERLE, 1975).

II Os Participantes do Processo de Interpretação Constitucional

Häberle propõe um catálogo sistemático de participantes do processo interpretativo, elencando, por exemplo: as funções estatais de decisão vinculante, demais órgãos de jurisdição, órgãos legislativos e executivos; aqueles que obrigam o tribunal a tomar a decisão (requerente e requerido), pessoas com direito a tomar parte na lide, pareceristas, peritos, associações, partidos políticos, grupos de pressão organizados, a opinião pública, a mídia, a doutrina constitucional, dentre outros. Pretende assim mostrar que a visão do passado era centrada apenas nos órgãos estatais que participavam diretamente do processo e, apesar de sua importante contribuição, faz-se necessária uma visão personalista desses órgãos, também são formados por pessoas: parlamentares, servidores públicos e juízes. O debate originário do processo político, também está presente na Constituição, a mutação constitucional é fonte de interpretação. O legislador tem um poder de conformação que cria realidades públicas, do outro lado, o juiz constitucional apesar de sua atuação num espaço limitado usando argumentos de ordem técnica pode determinar como o legislador deve atuar (HABERLE, 1975).

III Apreciação da Análise Desenvolvida

Na terceira parte do artigo o autor apresenta críticas à tese da sociedade aberta de intérpretes constitucionais, pois, dependendo da forma como é praticada, pode dissolver-se em uma vastidão de interpretações e intérpretes, o que seria contrário ao postulado da Unidade Constitucional. Deve-se observar, todavia, a questão da legitimação dos diversos intérpretes, dentro das competências estabelecidas em lei: órgãos estatais, parlamentares, partidos políticos contribuem todos de formas diferenciadas no processo. A unidade da Constituição resulta na conjugação dos diversos intérpretes exercendo suas funções específicas (HABERLE, 1975).

O mestre alemão assevera que a interpretação é um processo aberto e não de submissão como na recepção de uma nova ordem. Pela interpretação, há a possibilidade de abertura de diversas possibilidades, até mesmo o que fora vinculado pode passar a ser liberdade. A ampliação do círculo de intérpretes, com suas influências, expectativas e obrigações sociais, antes de ser uma ameaça independência do juiz constitucional, são parte da legitimação de uma decisão e evitam o livre arbítrio, uma vez que a interpretação é feita na esfera pública e na realidade (HABERLE, 1975).

As forças pluralistas têm legitimidade no processo de interpretação pois elas representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição. A Lei que estrutura não só o Estado, mas também a sociedade, inclusive seus setores privados, deve integrar essas forças sociais como sujeitos, capazes de atuar de forma difusa e concentrada na interpretação, até mesmo quando são excluídas do processo (protegendo-os). Quanto a ciência constitucional, Haberle (1975) demonstra que, como elemento autônomo e integrado da comunidade política, a sua função é traduzir a interpretação metodológica, formar intérpretes constitucionais e ser acessível à sociedade.

Häberle (1975) então passa a refletir sobre a Teoria da Legitimação no âmbito do Estado Constitucional Democrático. Em sentido estrito, o cidadão não dispõe de legitimação para interpretação constitucional, mas no sentido lato a perspectiva de liberdade se amplia a medida que a participação se assegura como parte dos direitos fundamentais, como um direito de cidadania, visto que o povo não se trata só de um referencial qualitativo que delega poderes nas eleições, é sim legitimador do processo constitucional como parte de uma democracia do cidadão, que se opõe a Democracia popular, pois naquela há a discussão sobre e sob as normas constitucionais.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

IV Consequências para a Hermenêutica Constitucional Jurídica

O jurista alemão passa a refletir sobre os efeitos da sociedade aberta de intérpretes sobre a hermenêutica constitucional. Primeiramente trata sobre a relativização da interpretação jurídica, causada especialmente o fato das forças públicas agindo previamente na interpretação constitucional tirarem o juiz de um isolamento interpretativo, ademais, Häberle (1975) reflete que muitos problemas não chegam à Corte Constitucional, seja pela falta de iniciativa, seja pela falta de competência da corte em determinados assuntos (tratados por alguns órgãos em suas esferas de competência). Em essência, o constitucionalista, no longo prazo, é um mediador do processo de interpretação.

Quanto ao método de interpretação, o controle judicial exercido pela corte constitucional deve levar em conta o grau de participação dos intérpretes envolvidos, demandando uma metodologia diferente para cada caso: há o caso de submissão de decisões prévias de outros órgãos, o caso de leis que não despertam interesse da opinião pública e leis que movimentam intensamente a participação popular. Neste último caso, o autor informa que a Corte deve exercer um controle rigoroso, () cabe ao Tribunal a tarefa de zelar para que não perca o mínimo indisponível da função integrativa da Constituição. (HABERLE,1975, p. 45) Especialmente no que se refere a permitir a participação equilibrada inclusive daqueles atores que não estão representados. Häberle também aponta consequências para a Conformação Legislativa, uma vez que à medida que a atividade de jurisdição constitucional se amplia, ocorre uma restrição do espaço de interpretação do legislador com efeitos no direito processual constitucional, que passa a ser parte do direito de participação democrática resultando em uma interpretação ampliativa sem necessariamente se tornar uma unidade de posicionamentos entre a interpretação jurisdicional e a do legislador.

V Novas Indagações para a Teoria Constitucional

Já se discorreu sobre a possibilidade de dissolução da interpretação constitucional na discussão sobre a metodologia da interpretação ao levar em conta a multiplicidade de intérpretes. Häberle retoma o tema asseverando que considerar a teoria em estudo apenas como a busca de consenso e unidade política é uma simplificação, visto que a presente teoria não é uma teoria harmonizadora, mas uma teoria na qual o consenso é resultado de conflitos e compromissos entre os participantes. Cada qual tem diferentes opiniões, defende seus próprios interesses e utiliza metodologias específicas de interpretação, cada uma, dependendo de qual órgão emitiu, é correta (correção funcional). Nesse sentido, faz-se necessária uma discussão profunda dos princípios da hermenêutica de caráter jurídico-funcional para a interpretação material da Constituição (HABERLE, 1975).

O autor também aponta a importância da Teoria Constitucional em pesquisar as particularidades da interpretação constitucional realizadas pelo legislador seja no processo político, seja no processo constitucional. Ressalta também a necessidade de se analisar a possibilidade de se constitucionalizar normativamente a participação dos outros participantes da sociedade aberta de interpretação (HABERLE, 1975).

Conclusão

Entende-se que a capacidade de um graduando em direito compreender o impacto da teoria proposta por Häberle é assaz limitada, especialmente levando-se em conta a dimensão temporal do momento de sua proposição, em que muitos dos conceitos apresentados devem ter sido enunciados pela primeira vez. Dessa forma, faz-se necessário recorrer à análise de juristas mais experientes. Amaral[5] afirma que A teoria da Sociedade Aberta dos intérpretes da Constituição promoveu uma revolução no âmbito da Teoria da Constituição, profetizando uma nova maneira de se analisar a Constituição, bem como de interpretá-la. Haberle já adianta algumas críticas à sua teoria, como a de Böckenförd[6] sobre a questão da possível dissolução da constituição frente a necessária unicidade constitucional, Canotilho[7] destaca um processo de existencialismo atualizador e diminuição da normatividade política da Constituição sob o pretexto de abertura. A despeito dessas ideias, entende-se que a teoria proposta de Häberle permite avançar a compreensão sobre o modo como a sociedade lida e interpreta a sua Constituição, como elemento da ciência constitucional, desvenda o ser, como é na realidade o processo de interpretação, longe do dever ser preconizado pela teoria clássica de interpretação somente como atividade de um grupo de legitimados.

Interessante diálogo com os escritos de Lassalle é trazido pelo professor Inocêncio Coelho[8], que assevera ter Häberle trazido para a participação social plural da sociedade aberta de intérpretes constitucionais aqueles citados fatores reais de poder, mostrando que eles não necessariamente transformarão a constituição numa mera folha de papel, mas podem participar do processo interpretativo, uma vez que o próprio Häberle diz: Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretire Rechtsnormen


Referências

  1. Disponível em http://www.bieur.uni-bayreuth.de/de/team/01_peter_haeberle/index.html acesso em 03/10/2019
  2. AMARAL, Rafael Caiado. Peter Häberle e a Hermeneutica constitucional: Alcance doutrinário. Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 117-118
  3. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 118 -119.
  4. MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 9.a edição. Editora Saraiva, 2014.
  5. AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 135.
  6. BÖCKENFORD, Erns-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. 1993. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 136.
  7. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Cosntituição dirigente e vinculação do legislador. 1994. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 136.
  8. COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de porder. Revista de Informação Legislativa. Bras;ilia, ano 35, n.o 138, 1998, p. 186. Apud AMARAL, Rafael Caiado, Op. cit. p. 129.
Sobre o autor
Luis Felipe de Aguilar Paulinyi

Analista-tributário da Receita Federal do Brasil. Graduando em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília - CEUB. Master of Sciences - University of Southampton. Mestre em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica. Bacharel em Engenharia Mecânica - Universidade de Brasília.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos