Desvio de função pelo servidor público:

Formas de controle e jurisprudência

Resumo:


  • O desvio de função ocorre quando um servidor público exerce atividades diferentes das previstas para seu cargo, podendo ser controlado judicialmente ou pela autotutela da Administração Pública.

  • O controle judicial do desvio de função permite ao servidor receber indenizações pelas diferenças salariais decorrentes, embora haja exceções como a complementaridade das funções ou a percepção de gratificações específicas.

  • A autotutela é um mecanismo pelo qual a própria Administração Pública pode corrigir atos ilegais ou inoportunos, incluindo o desvio de função, sem necessidade de acionar o Judiciário.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

1. Servidor Público. 2. Desvio de Função. 3. Princípio da Legalidade. 4. Princípio da Moralidade. 5. Princípio da Obrigatoriedade de Concursos Públicos. 6. Controle pelo Judiciário do Desvio de Função. 7. Controle pela Autotutela da Administração Pública do Desvio de Função.

RESUMO

Trata-se de uma pesquisa desenvolvida na forma de artigo científico, por meio de revisão de literatura, utilizando-se, em seu bojo, as disposições legais pertinentes, a doutrina autorizada e a jurisprudência atualizada, acerca do desvio de função pelo servidor público, formas de controle e jurisprudência. Buscou-se demonstrar a relatividade do disposto no art. 37, inciso II, da Constituição Federal, que trata da, ressalvadas poucas hipóteses, não prestação de serviço público sem a devida aprovação em concurso público prévio. Pôde-se constatar que, por diversas formas, o disposto no art. 37, inciso II, da CF não é absoluto, porém, em muitos casos, indenizável.

Palavras-Chave: Servidor Público; Desvio de Função; Princípio da Legalidade; Princípio da Moralidade; Princípio da Obrigatoriedade de Concursos Públicos; Controle pelo Judiciário do Desvio de Função; Controle pela Autotutela da Administração Pública do Desvio de Função.

RESUMO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA

This is a research developed as a scientific article, by means of literature review, using, in its core, the pertinent legal provisions, the authorized doctrine and the updated jurisprudence, about the deviation of function by the public servant, forms of control and jurisprudence. We sought to demonstrate the relativity of the provisions of art. 37, item II, of the Federal Constitution, which deals with, except for a few hypotheses, not providing public service without due approval in a prior public contest. It was possible to verify that, in several ways, the provisions of art. 37, item II, of the Federal Constitution are not absolute, but, in many cases, may be indemnified.

Key-words: Public Servant; Function Deviation; Principle of Legality; Principle of Morality; Principle of Mandatory Public Contests; Judicial Control of Function Deviation; Control of Function Deviation by Public Administration Self-attention.

SUMÁRIO

1 - INTRODUÇÃO​ 7

1.1 - Conceito de Servidor Público 7

1.2 - Relevância do Tema 10

2 - PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 12

2.1 - Princípio da Legalidade 12

2.2 - Princípio da Moralidade 13

2.3 - Princípio da Obrigatoriedade de Concursos Públicos 14

3 - DESVIO DE FUNÇÃO E FORMAS DE CONTROLE 16

3.1 - Conceito e Controle pelo Judiciário 16

3.2 - Controle pela Autotutela da Administração Pública 23

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS 26

5 - REFERÊNCIAS 28

5.1 - Referências Bibliográficas 28

5.2 - Referências Legislativas 29

5.3. Referências Eletrônicas 29

1 - INTRODUÇÃO

1.1 - Conceito de Servidor Público

Preliminarmente, faz-se necessário tecer esclarecimentos quanto a quem é enquadrado como servidor público, antes de se adentrar, propriamente, no presente tema em discussão, qual seja, o de desvio de função pelo servidor público.

Desse modo, segundo a Lei nº 8.112/90[1], que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, nos arts. 2º, 3º e 5º são apresentas certas definições a respeito do servidor, do cargo público e dos requisitos básicos para investidura, os quais estão redigidos da seguinte forma:

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, servidor é a pessoa legalmente investida em cargo público.

Art. 3º Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor.

Parágrafo único. Os cargos públicos, acessíveis a todos os brasileiros, são criados por lei, com denominação própria e vencimento pago pelos cofres públicos, para provimento em caráter efetivo ou em comissão.

Art. 5º São requisitos básicos para investidura em cargo público:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o gozo dos direitos políticos;

III - a quitação com as obrigações militares e eleitorais;

IV - o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;

V - a idade mínima de dezoito anos;

VI - aptidão física e mental. (...)

Portanto, servidor público é entendido, à luz da legislação em vigor, como a pessoa que fora investida em cargo público, tendo como requisitos nacionalidade brasileira, gozo dos direitos políticos, quitação com as obrigações militares e eleitorais, nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo, idade mínima de dezoito anos e aptidão física e mental, ressalvados os direitos dos deficientes.

Para a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são servidores públicos, em sentido amplo, as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos. (DI PIETRO, 2014, p. 598)

Cabe dizer que, segundo Emerson Santiago[2], doutrinariamente tem-se entendido que há três tipos de servidores públicos, quais sejam: os servidores estatutários; os empregados públicos; servidores temporários.

Os servidores estatutários seriam ocupantes de cargos públicos providos por concurso público, de acordo com o art. 37, II, da Constituição Federal[3]. É dito que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos. Além disso, estes são regidos por um estatuto, estabelecido em lei, para cada uma das unidades da federação.

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, sobre o regime jurídico estatutário, é dito que:

(...) estabelecido em lei por cada uma das unidades da federação e modificável unilateralmente, desde que respeitados os direitos já adquiridos pelo servidor. Quando nomeados, eles ingressam numa situação previamente definida, à qual se submetem com o ato de posse; não há possibilidade e qualquer modificação das normas vigentes por meio de contrato, ainda que com a concordância da Administração e do servidor porque se trata de normas de ordem pública, cogentes, não derrogáveis pelas partes. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 655)

Logo, torna-se evidente a necessidade de nomeação, ato de posse e outros requisitos inerentes ao concurso público de provas ou de provas e títulos, gerando, neste caso em específico, uma subordinação ao regime jurídico estatutário.

Por sua vez, os empregados públicos, ou funcionários públicos, seriam os ocupantes de emprego público, e, de igual modo, provido por concurso público (art. 37, II, da CF). Para estes, há submissão ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho-CLT.

Como dito, seus cargos são preenchidos através de concurso público e, portanto, submetem-se a todos os demais preceitos constitucionais referentes à investidura, acumulação de cargos, vencimentos e determinadas garantias e obrigações previstas no Capítulo VII da Constituição. O servidor público celetista subordina-se a dois sistemas, integrados e dependentes: o da administração pública e também ao sistema funcional trabalhista.

Por último, estão os servidores temporários os quais são contratados para exercer funções temporárias, por meio de um regime jurídico especial, disciplinado em lei específica de cada unidade da federação. Estes não prestam concurso público, e por consequência disso, não é admitida a posterior admissão deste servidor para cargo efetivo sem a realização de concurso.

Portanto, restaram diferenciadas as diferentes espécies de servidores públicos, quais sejam, servidores estatutários, empregados públicos e servidores temporários, decerto que cada um desses tem especificidades próprias, como demonstrado.

Para o fim do presente artigo, serão analisadas as situações jurídicas decorrentes do desvio de função pelos servidores estatutários e pelos empregados públicos, isto porque, segundo o que fora explicitado, estes são selecionados através de concurso público. Deste modo, através de critérios rigorosos, são empossados, em determinado cargo, de acordo com suas qualidades pessoais. Porém, cabe dizer que, servidores temporários também podem ser vítimas de desvio de função, mas que apenas não serão abordados no presente artigo, por serem submetidos à função pública, sem anterior aprovação em concurso.

Deste modo, fora exposto quem são os funcionários públicos, os quais podem ser vítimas de desvio de função. Além disso, houve a restrição de abrangência do presente tema, buscando uma análise mais específica sobre os pontos de debate.

1.2 - Relevância do Tema

Sobre a relevância do tema, compete transcrever o dito na Constituição Federal, art. 37, II, que diz: Art. 37. II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.

Desta forma, ressalvadas pouquíssimas exceções, a regra seria que, para desempenhar determinada função pública, seria exigível do servidor a prestação e aprovação em concurso público.

Ao ingressar no serviço público, cada servidor recebe atribuições próprias, as quais estão descritas em lei, funções essas inerentes aos seus cargos. Todavia, há casos de servidores públicos incumbidos de funções públicas não condizentes com o descrito nos dispositivos legais para os quais foram empossados.

Cabe dizer que o desvio de função tem se tornado presente na Administração Pública, e que, tal prática, causa prejuízos seríssimos à sociedade, já que, determinado servidor público é confiado a determinada atividade pelas próprias qualidades, e, ao se confiar função diversa a este, há a presunção de ineficiência operacional, pois para a função desviada, o servidor público não fora avaliado.

Para Hely Lopes Meirelles, sobre o concurso público, é dito que é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF. Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando cargos e empregos públicos. (MEIRELLES, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 27ª edição, p. 409).

Desta forma, o concurso público tem papel indubitável na seleção de candidatos segundo moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público. Busca-se, portanto, atender a natureza e a complexidade do cargo ou emprego.

Além disso, assevera Cármen Lúcia Antunes Rocha, que:

Concurso público é o processo administrativo pelo qual se avalia o merecimento de candidatos à investidura em cargo ou emprego público, considerando-se as suas características e qualidade das funções que lhes são inerentes. É pelo concurso público que se concretiza a igualdade de oportunidades administrativas e a impessoalidade na seleção do servidor, impedindo-se tanto a pessoalidade quanto a imoralidade administrativa. (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 201.)

Logo, garante-se pelo concurso público que as pessoas escolhidas são aptas a desenvolver as funções em que foram empossadas, já que são consideradas as características e qualidade das mesmas, diretamente com as funções inerentes.

Tudo isso acaba gerando assim um defeito operacional, responsável por afetar as pessoas diretamente envolvidas e, como consequência, toda a população que indiretamente acaba sendo prejudicada pela má prestação do serviço público.

Daí surge a necessidade de tratar o tema com bastante propriedade e cuidado, para que possam ser diagnosticados os desvios de funções existentes no serviço público e atacá-los com as soluções jurídicas existentes e disponíveis.

Desta forma, o tema merece análise diante da obrigatoriedade que a Constituição Federal traz de, ressalvadas poucas exceções, exigibilidade de aprovação em concurso público para desempenhar determinada função pública.

Isto posto, os objetivos do presente tema são os de trazer para análise pontos de resolução do conflito decorrente de desvio de função pública, utilizando-se, para tanto, as disposições legais pertinentes, a doutrina autorizada e a jurisprudência atualizada, acerca do assunto.

2 - PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Neste momento, é necessário traçar alguns princípios norteadores da administração pública, os quais regem as normas referentes ao direito administrativo, em especial, com relação ao desvio de função pelo servidor público.

2.1 - Princípio da Legalidade

O primeiro princípio a ser mencionado é o da legalidade, o qual origina da Constituição Federal, especificamente no art. 5º, inciso II, que assim diz: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Além disso, o art. 37 da CF assevera que: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade (...).

Cabe dizer que, na Administração Pública, os servidores públicos só podem fazer aquilo que estiver descrito em dispositivos legais, o que difere da vida civil, onde a sociedade pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe.

Neste sentido, Meirelles, assevera que a legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso. (MEIRELLES, Hely Lopes. 2000, p. 82)

Portanto, o princípio da legalidade passa a ser uma das maiores garantias para os servidores públicos frente ao próprio Poder Público. Isto porque, segundo Vitor César Freire de Carvalho Pires, tal princípio representa total subordinação do Poder Público à previsão legal, visto que, os agentes da Administração Pública devem atuar sempre conforme a lei. Assim, o administrador público não pode, mediante mero ato administrativo, conceder direitos, estabelecer obrigações ou impor proibições aos cidadãos[4].

Cabe dizer que, no âmbito do poder judiciário, o STF possui a Súmula 473, que se baseou no princípio da legalidade, e encontra-se redigido da seguinte forma: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. (Súmula 473, STF, 03/12/1969)

Logo, o referido princípio torna-se de extrema importância em toda a administração pública, já que impede que existam atos não baseados em leis, e, deste modo, visa atribuir, via de regra, aos servidores públicos, funções próprias inerentes aos seus cargos.

2.2 - Princípio da Moralidade

Outro princípio que de igual modo possui extrema importância é o princípio da moralidade. Cabe destacar, nesse sentido, que o mencionado princípio assevera que não apenas as normas legais devem fundamentar os atos administrativos, porém, a boa-fé, a lealdade e a probidade os devem, de igual modo, nortear os atos da Administração Pública. Isto se deve ao fato de que a Administração Pública não deve se afastar da moral vigente na sociedade, buscando agir com moralidade.

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O princípio da moralidade encontra-se previsto na Constituição Federal no art. 37, o qual consta que: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade (...).

Neste sentido, segundo o doutrinador Hely Lopes Meirelles, a moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do bom administrador, que, usando de sua competência legal, se determina, não só pelos preceitos vigentes, mas também pela moral comum. Há que se conhecer, assim, as fronteiras do lícito e do ilícito, do justo e do injusto. (MEIRELLES, Hely Lopes. 2000)

Complementando o acima mencionado, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello que a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que sujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. 2010, p. 119)

Desta forma, o princípio da moralidade está intimamente ligado ao tema já que a moralidade deve basear toda a atuação da Administração Pública, gerando a diminuição ou até inexistência, ressalvadas as exceções legais, de casos de servidores públicos com desvio de função.

2.3 - Princípio da Obrigatoriedade de Concursos Públicos

Por último, cabe abordar sobre o princípio da obrigatoriedade de concursos públicos, o qual tem impacto diretamente no tema em questão.

Segundo a Constituição Federal, art. 37, inciso II, a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.

Logo, o desvio de função de servidor público estaria por, teoricamente, investir determinado servidor público em função específica sem que houvesse a prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos. Deste modo, poderia dizer que houve uma investidura em determinado cargo de forma indireta, o que claramente afronta os princípios constitucionais.

Neste sentido, o Tribunal Superior do Trabalho, se manifestou, sobre o tema, através da Súmula 363, da seguinte forma:

A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS. (Súmula 363, TST, Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003)

Segundo o doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello, a exigência de formas de provimento derivadas, de modo algum significa abertura para costear-se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico, para dado cargo, inserido em carreira certa, quem nele se investiu não pode depois, sem novo concurso público, ser transladado para cargo de carreira diversa ou de outra carreira melhor redistribuída ou de encargos mais nobres ou elevados. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. 1990)

Complementa ainda o professor Mello dizendo que o nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no passado, sob a escusa de corrigir-se desvio de funções ou com arrimo na nomenclatura esdrúxula de transposição de cargos. Corresponde a uma burla manifesta do concurso público. É o que permite que candidatos singelos, destinados a cargos de modesta expressão e que se qualificaram tão somente para eles venham a ascender, depois de aí investidos, a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes de qualificações bem mais elevadas. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. 1990, p.45)

Desta forma, resta claro que a não observância ao princípio da obrigatoriedade de concursos públicos gera uma afronta direta à Constituição Federal, já que investe servidor público em cargo que não houve prévia aprovação em concurso público específico por parte do mesmo. Logo, o desvio de função torna-se ilegal na medida que burla a necessária aprovação em concurso público.

3 - DESVIO DE FUNÇÃO E FORMAS DE CONTROLE

3.1 - Conceito e Controle pelo Judiciário

O conceito de direito de desvio de função encontra-se expresso na lei 8.112/90, art. 117, XVII, ao vedar o servidor público de cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias. Desta forma, é uma prática que se evidencia quando um servidor público passa a exercer outras funções diferentes das inerentes ao cargo no qual foi empossado originalmente, por ordem de outro servidor.

Sobre a Lei 8.112/90, especificamente com relação ao seu art. 4º, é assegurado que: É proibida a prestação de serviços gratuitos, salvo os casos previstos em lei.

Cabe mencionar, neste sentido, que a Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha já teve a oportunidade de se manifestar a respeito do presente tema, aduzindo que com o início do exercício nascem para o servidor todos os direitos que a lei lhe assegura nessa condição, inclusive o desempenhar as funções inerentes ao cargo para o qual foi nomeado, cumprindo-se o quanto posto legalmente. Nomeado para determinado cargo e nele investido, há de exercer o servidor as funções a ele inerentes e a nenhum outro. (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. 1999, p. 232-234)

Além disso, complementou a referida Ministra alegando que surge quanto ao exercício um dos mais gravosos e comuns problemas da Administração Pública, que é o desvio de função, acarretando traumas administrativos nem sempre facilmente solúveis. Dá-se o denominado desvio de função quando o servidor é nomeado e investido em um cargo público e passa a desempenhar funções inerentes a outrem, mediante ato e o designa para tanto, sem qualquer comportamento formal. (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. 1999, p. 232-234)

Já em uma análise doutrinária, é dito por José Maria Pinheiro Madeira que embora a movimentação de servidor esteja inserida no âmbito do juízo de conveniência e oportunidade da Administração Pública, é certo que os direitos e deveres são aqueles inerentes ao cargo para o qual foi investido. Assim, mesmo levando em conta o número insuficiente de servidores, não é admissível que o mesmo exerça atribuições de um cargo tendo sido nomeado para outro, para o qual fora aprovado por concurso público. (MADEIRA, José Maria Pinheiro. 2010, p. 76)

Desse modo, torna-se nítida a ilegalidade no desvio de função do servidor público, salvos os casos previstos em lei, já que o mesmo passa a desempenhar funções não inerentes ao seu cargo, o que gera prejuízos para o próprio servidor, pois passa a exercer atividade que não se coaduna com as suas aptidões, há também um prejuízo para a sociedade, pois é previsível que o serviço estaria sendo prestado por mão de obra teoricamente não qualificada para o cargo, já que não aprovado previamente em concurso público para este fim.

Cumpre destacar que, a própria norma legal estabeleceu uma exceção à regra de impossibilidade de desvio de função, qual seja, exceto em situações de emergência e transitórias. Desta forma, presentes situações de emergência e transitórias seria possível atribuir funções não inerentes ao cargo investido pelo servidor público.

Cabe dizer que, segundo o Superior Tribunal de Justiça, através da Súmula 378, é garantido que: Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes. (Súmula 378, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/04/2009, DJE 05/05/2009)

Compete mencionar ainda que a referida Súmula 378 do STJ tem, em seu item I, a seguinte disposição:

I - Consoante a jurisprudência desta Corte, o servidor público desviado de sua função, embora não tenha direito ao enquadramento, faz jus aos vencimentos correspondentes à função que efetivamente desempenhou, sob pena de ocorrer o locupletamento ilícito da Administração. (Súmula 378, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/04/2009, DJE 05/05/2009)

Note-se que a presente Súmula não limita-se apenas aos casos de desvio de função permitidos pelo ordenamento, mas alcança casos de desvio ilegal de função. Estes são enquadrados como casos em que há desvio de função, mas sem hipótese legalizante, isto é, ocorre quando o ordenamento jurídico não estabelece ressalvas para a realização de concurso público.

Deste modo, evidencia-se que ficou garantido, através dos enunciados de súmulas, que o servidor deve receber as diferenças remuneratórias decorrentes do desvio funcional. Logo, em havendo desvio de função amparado pelo dispositivo legal, haverá direito às diferenças salariais decorrentes, e, do mesmo modo, em havendo desvio de função ilícito, entendido como aquele que existe ao extrapolar os limites legais, o servidor fará jus às diferenças salariais decorrentes.

Para o doutrinador José Maria Madeira, a Administração Pública não pode permitir que servidores exerçam atividades para as quais não foram habilitados em concurso público e que se beneficiar do esforço alheio sem a devida compensação. (MADEIRA, José Maria Pinheiro. 2010, p. 78)

Cabe ainda colacionar julgados atuais sobre o tema de modo a demonstrar a forma que as indenizações das diferenças remuneratórias devem ter. O primeiro é sobre um julgado do STJ, o qual garante o direito a valores correspondentes aos padrões que se enquadraria o servidor caso efetivamente pertencesse àquela classe, o que é demonstrado abaixo pela ementa:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DESVIO DE FUNÇÃO COMPROVADO. TÉCNICO DE LABORATÓRIO E FARMACÊUTICO. INDENIZAÇÃO. DIFERENÇAS SALARIAIS. PROGRESSÃO FUNCIONAL NA CLASSE EM EXERCÍCIO DESVIADO. TERMO INICIAL. MOMENTO EM QUE CONSTATADO O DESVIO DE FUNÇÃO. ALTERAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. HONORÁRIOS. MAJORAÇÃO. PARCIAL ACOLHIMENTO.

Ementa

1. Segundo orientação do STJ, nos casos de desvio de função, conquanto não tenha o servidor direito à promoção para outra classe da carreira, mas apenas às diferenças vencimentais decorrentes do exercício desviado, tem ele direito aos valores correspondentes aos padrões que, por força de progressão funcional, gradativamente se enquadraria caso efetivamente fosse servidor daquela classe, e não ao padrão inicial, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da isonomia e de enriquecimento sem causa do Estado.

2. Todavia, a contagem do prazo, para efeitos de progressão em outra classe, deve ter início somente no momento em que constatado o desvio de função. Ou seja, é a partir do momento do exercício desviado, no qual o servidor passa a exercer funções típicas de outra classe, que se inicia a progressão nessa classe.

3. In casu, embora a parte recorrente alegue que atua em desvio de função desde o seu ingresso nos quadros da UFSC, o Sodalício a quo atestou que o desvio ocorreu em momento posterior, razão pela qual o acolhimento da pretensão recursal, neste ponto, demanda reexame do contexto fático-probatório, o que não se admite ante o óbice da Súmula 7/STJ.

(...)[5] (grifo meu)

Logo, teve direito o servidor aos benefícios pecuniários decorrentes do desvio de função. Há que se dizer que tais verbas remuneratórias são correspondentes aos padrões que, por força de progressão funcional, gradativamente se enquadrariam caso efetivamente fosse servidor daquela classe.

Cabe ainda mencionar o julgado do Tribunal de Justiça do Amapá, que declara que são devidos não só as diferenças nos vencimentos, mas também os reflexos dos vencimentos, da seguinte forma:

ADMINISTRATIVO, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - APELAÇÃO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESVIO DE FUNÇÃO - SERVIDOR PÚBLICO - PROFESSOR - DESVIO DE FUNÇÃO - DIFERENÇA SALARIAL.

Ementa

1) Provado nos autos que o professor classe A exerceu as atribuições de professor classe B impõe-se o pagamento das diferenças de vencimentos entre as duas classes e reflexos.

2) É devido ao servidor público em desvio de função, a título de indenização, os valores referentes à diferença entre os vencimentos do cargo ocupado e da função efetivamente exercida, sob pena de enriquecimento indevido do Estado;

3) Recurso conhecido e desprovido[6]. (grifos meus)

Nesta hipótese houve o reconhecimento do direito do autor e fora garantido o pagamento das diferenças de vencimentos entre as duas classes e reflexos.

Interessante ainda evidenciar que o TRF-4 trouxe importante consideração ao aduzir que são devidos os valores correspondentes aos padrões que, por força de progressão funcional, o servidor seria gradativamente enquadrado, caso integrasse aquela categoria funcional, dessa forma:

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DESVIO DE FUNÇÃO. CARGOS DE BOMBEIRO HIDRÁULICO E MOTORISTA. DIFERENÇAS SALARIAIS. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DESVIO DE FUNÇÃO. CARGOS DE BOMBEIRO HIDRÁULICO E MOTORISTA. DIFERENÇAS SALARIAIS. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL.

Ementa

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DESVIO DE FUNÇÃO. CARGOS DE BOMBEIRO HIDRÁULICO E MOTORISTA. DIFERENÇAS SALARIAIS. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DESVIO DE FUNÇÃO. CARGOS DE BOMBEIRO HIDRÁULICO E MOTORISTA.. DIFERENÇAS SALARIAIS. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL.

Para o reconhecido do desvio funcional, é necessária a comprovação do exercício habitual e permanente de atividade distinta do cargo que o servidor ocupa. Reconhecida a existência de desvio funcional, o servidor faz jus às diferenças salariais dele decorrentes, a título indenizatório. Para o cálculo das diferenças remuneratórias, devem-se considerar os valores correspondentes aos padrões que, por força de progressão funcional, o servidor seria gradativamente enquadrado, caso integrasse aquela categoria funciona, e não ao padrão inicial. Precedente[7]. (grifo meu)

Desta forma, restou claro que é devido ao servidor público tudo aquilo que o mesmo teria direito caso estivesse investido em outro cargo. Portanto, a indenização descrita em enunciado de súmula muito se assemelha ao instituto dos danos emergentes, que é o equivalente à perda efetivamente sofrida, isto é, representam os valores que o servidor público deixou de receber.

Por outro lado, cabe trazer um julgado do TRF-5 que aduz que, se a função exercida se complementar com o seu próprio cargo público, gerando a chamada intercambialidade, o servidor não faz jus a indenizações, como restou claro na ementa colacionada abaixo:

ADMINISTRATIVO. DESVIO DE FUNÇÃO. SERVIDOR PÚBLICO. ASSISTENTE TÉCNICO-ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA DE DESVIO DE FUNÇÃO. DIREITO A INDENIZAÇÃO. DIFERENÇAS SALARIAIS. DESCABIMENTO.

(...)

2. O MM. Juiz Federal da Seção Judiciária de Alagoas julgou improcedente o pedido inicial, entendendo que, "do exame das provas colacionadas pelo autor, não se vislumbra prova concreta de que, de fato, exercia suas atividades com desvio de função. Neste sentido, frise-se que as atividades exercidas por ambos os cargos são complementares dentro da estrutura da Receita Federal, de modo que, muitas vezes, elas se intercambiam. Deste modo, não se pode caracterizar, a partir da verificação do desempenho de determinada atribuição (que pode se aproximar mais de um cargo do que do outro), que houve efetivo desvio de função".

3. Em suas razões recursais, requer a parte autora a nulidade da sentença, reiterando o protesto de depoimento pessoal do autor, de oitiva de testemunhas e da produção de prova documental. Afirma que "não deveria o juízoa quose limitar a afirmar a"ausência de dano provocado pelo eventual desvio funcional", mas, ao contrário, deveria ter indicado por que as provas trazidas pelo autor (e não foram poucas!) não o convenceram no sentido oposto, ou por que não haveria necessidade de produzir outras".

4. Inicialmente, observa-se que a alegação do recorrente, quanto à anulação do julgado, não deve prosperar, pois não haverá decretação de nulidade, sem que haja o efetivo prejuízo. O apelante não trouxe aos autos quaisquer provas do dano que supostamente lhe foi causado, apenas alegando que houve o cerceamento de defesa. Assim, dispensável a produção de prova oral, tendo em vista a desnecessidade de dilação probatória, sendo suficientes, pois, as provas já acostadas nos presentes autos, para a análise da causa.

5. Cabe ao órgão julgador monocrático o indeferimento de produção de prova, quando entender que a matéria é exclusivamente de direito, sendo, portanto, hipótese de julgamento antecipado da lide.

6. Sobre o desvio de função, o Colendo STJ firmou entendimento no sentido de que o servidor que desempenha função diversa daquela inerente ao cargo para o qual foi investido, embora não faça jus ao reenquadramento, tem o direito de perceber as diferenças remuneratórias (Súmula nº 378). O desvio de função, portanto, resta configurado quando o servidor público passa a exercer, de modo não eventual, atribuições diversas daquelas inerentes ao cargo público em que fora investido.

7. O apelante é servidor público federal, ocupante do cargo de Assistente Técnico-Administrativo, desde 05/09/2009, na Delegacia da Receita Federal em Maceió-AL. Desde então, estava lotado na Seção de Acompanhamento Tributário - SACAT, integrando a equipe "Crédito Tributáriosub judice", onde alega que exerceu atividades próprias do cargo de Analista-Tributário da Receita Federal. Somente em 18/11/2016, teria deixado de exercer suas atividades nessa lotação por determinação da Administração Pública.

8. Segundo as informações constantes dos autos, não há como constatar, de forma precisa, que o demandante executou atividades não condizentes com suas atribuições legais. Conforme mencionado na sentença vergastada, "do exame das provas colacionadas pelo autor, não se vislumbra prova concreta de que, de fato, exercia suas atividades com desvio de função. Neste sentido, frise-se que as atividades exercidas por ambos os cargos são complementares dentro da estrutura da Receita Federal, de modo que, muitas vezes, elas se intercambiam.

Deste modo, não se pode caracterizar, a partir da verificação do desempenho de determinada atribuição (que pode se aproximar mais de um cargo do que do outro), que houve efetivo desvio de função.".

(...)

11. Recurso de apelação não provido[8]. (grifo meu)

Logo, foi-se entendido que, em cargos complementares, não se evidencia o desvio de função. Além disso, é importante estabelecer que funções que se intercambiam não geram direito a indenização, conforme mencionado no julgado do TRF-5.

Cabe trazer, por último, um julgado do TJ-RS que afirma que a simples gratificação afasta o recebimento da indenização por desvio de função, da seguinte forma:

APELAÇÃO CIVEL. SERVIDORA PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. ALEGAÇÃO DE DESVIO DE FUNÇÃO. CARGOS DE AUXILIAR DE SERVIÇOS GERAIS E DE ASSISTENTE ADMINISTRATIVO. DESVIO DE FUNÇÃO CARACTERIZADO. RECEBIMENTO DE FUNÇÃO GRATIFICADA. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. PRECEDENTES.

Ementa

1. Não obstante o acervo probatório seja inequívoco em demonstrar que a autora, formalmente investida no cargo de auxiliar de serviços gerais, exercera atribuições do cargo de assistente administrativo, em patente desvio de função, vê-se que a percepção de função gratificada de assistente afasta o direito ao pagamento de diferenças vencimentais. É assim porque servidor já recebeu a contraprestação pecuniária correspondente ao exercício de atividade diversa do cargo originário. Precedentes.

2. Ação julgada improcedente na origem. APELAÇÃO DESPROVIDA[9]. (grifo meu)

De suma importância analisar o presente julgado já que, o mesmo estabelece que, a simples função gratificada, no caso em tela de assistente, afasta o direito ao pagamento de diferenças de vencimentos. Isto significa que, quando há função gratificada, não há no que se falar em indenização pecuniária decorrente do desvio de função, pois se subentende que já houve a reparação ideal.

Por fim, cabe dizer que a via judicial é tratada como uma forma de controle pós fato, isto porque o prejuízo ao servidor público já ocorreu, e, o que se visa nesta etapa, são as indenizações. Como demonstrado, há tribunal que opta por não indenizar quando o desvio de função gera obrigações que complementam com o próprio cargo público originário, gerando a chamada intercambialidade, há outros que entendem que a simples gratificação é capaz de afastar toda a indenização decorrente do desvio de função.

3.2 - Controle pela Autotutela da Administração Pública

A autotutela se apresenta como um poder da Administração Pública de regular seus próprios atos baseado na conveniência e na oportunidade, e pode visar também extirpar atos ilegais que foram produzidos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário.

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, é asseverado que:

Também se fala em autotutela para designar o poder que tem a Administração Pública de zelar pelos bens que integram o seu patrimônio, sem necessitar de título fornecido pelo Poder Judiciário. Ela pode, por meio de medidas de polícia administrativa, impedir quaisquer atos que ponham em risco a conservação desses bens. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. Página 73)

Portanto, pode a Administração Pública, por meio de medidas de polícia administrativa, impedir quaisquer atos que ponham em risco a conservação desses bens.

Para Marçal Justen Filho, a revogação se funda na inconveniência do ato para a satisfação de interesses coletivos ou a realização de direitos fundamentais. Completando tal entendimento, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, que é irrelevante distinguir se a inconveniência foi contemporânea ou superveniente ao ato que se vai revogar.

Desta forma, a Administração Pública torna-se capaz de, bastando somente a conveniência e oportunidade, ressalvados os casos de ilegalidade, não se interessando se aquelas surgiram desde o início do ato ou surgiram ao longo da produção de efeitos do ato administrativo, de revogar o mesmo.

Importante acrescentar a visão de Lucas Heusner Silveira sobre o assunto, quando é dito que:

Porém nem sempre esse controle será exercido pela própria autoridade que deu causa a ilegalidade em questão, pelo contrário, se ela já exerceu sua competência de modo arbitrário, não será quem apontará o erro e buscará corrigí-lo. Isso ocorre com frequência nos exemplos dos casos em que um chefe de setor utiliza servidor público em funções diferentes das investidas na nomeação. É claro que não será o próprio mandante que regularizará a situação. Tem-se então aí o segundo tipo de controle, denominado de hierárquico. No desvio de função ele é exercido posteriormente, quando o agente público já está realizando a atividade que não a legal. Na prática, os superiores não se preocupam se algum ou alguns dos servidores estão nessa situação, mesmo quando noticiados pelos próprios servidores que reclamam que estão sofrendo coação no livre exercício de suas funções, apenas cumprindo o seu dever de fiscalização hierárquica quando os fatos são noticiados na imprensa ou trazidos à tona pela população. Por isso, muito importante são os movimentos que lutam pela moralização do serviço público e a cobrança aos agentes políticos eleitos pelo sufrágio popular.

Deste modo, segundo o autor, a autotutela pode ser concretizada através do controle hierárquico, nessa hipótese, um agente superior ao servidor público que ordenou a execução de ato ilegal cassaria o ato deste, seja pela ilegalidade, seja pela inconveniência ou inoportunidade.

Para noticiar a ilegalidade do desvio de função, o servidor público pode se valer do direito de petição. O direito de petição encontra-se cristalizado no art. 5º, XXXIV, a, da CF, que assevera que:

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

Por meio do referido direito, é possível que o servidor público busque solução para o problema enfrentado sem que seja necessário qualquer pagamento de taxas.

No entender de J.J. Gomes Canotilho o direito de petição é conceituado da seguinte forma: É um direito político que tanto se pode dirigir à defesa dos direitos pessoais (queixa, reclamação) como à defesa da Constituição, das leis ou do interesse geral. Pode exercer-se individual ou coletivamente perante quaisquer órgãos de soberania ou autoridade. (VIEIRA, Aroldo Max Andrade. Direito de petição e as ações constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 87, 28 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4257. Acesso em: 9 jun. 2022)

Desta forma, trata-se de um direito oponível a qualquer órgão de soberania ou autoridade, seja para tutelar um direito individual ou coletivo.

Segundo Artur Cortez Bonifácio, o direito de petição é enquadrado da seguinte maneira: "é o direito-garantia subjetivo público que as pessoas individuais ou coletivas têm de interpor aos poderes públicos pedidos, reclamações, representações, sugestões, reivindicações, em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, em favor de interesses particulares ou do interesse público". (Direito de petição: ilegalidade da cobrança de taxas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1144, 19 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16708. Acesso em: 9 jun. 2022)

Importante mencionar que o STF já teve a oportunidade de se manifestar sobre o assunto:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. INCORPORAÇÃO NO SERVIÇO ATIVO DA AERONÁUTICA APÓS A EDIÇÃO DA PORTARIA 1.104/GM3-64. AUSÊNCIA DO DIREITO À ANISTIA. PODER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. TEMPESTIVIDADE. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. I - Em razão do poder de autotutela, a Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos, quando eivados de vícios que tornem ilegais, ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade. II - Agravo regimental improvido. (STF. RMS 25596. Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Relator(a) p/ Acórdão: Min. RICARDO LEWANDOWSKI (ART. 38. IV, b, do RISTF). Primeira Turma, julgado em 01/04/2008. Publicado 05-06-2009.)

Logo, ratificado esteve tal direito à autotutela, permitindo que a Administração Pública possa declarar a nulidade de seus próprios atos, quando eivados de vícios que tornem ilegais, ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade.

Por último, cabe dizer que o direito à autotutela pode ser exercido de forma espontânea pelo poder público ou através por requisição, que se concretiza através do direito de petição. Logo, no exercício deste poder-dever, a Administração, atuará por provocação de particular ou de ofício.

Portanto, a autotutela é entendida como meio apto a corrigir atos do poder público em que se encontram ilegalidades ou abuso de poder, tais como o do desvio de função. Cabendo dizer que a autotutela pode ser provocada por particular, através do direito à petição.

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Isto posto, convém concluir da seguinte forma, que apesar da literalidade da CF, em seu art. 37, II, que diz que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, há que se ressaltar diversos aspectos.

Diversos doutrinadores asseveram a importância do concurso público, o qual considera as características e qualidade das funções, e concretiza a igualdade de oportunidades administrativas e a impessoalidade na seleção do servidor, impedindo-se tanto a pessoalidade quanto a imoralidade administrativa.

Além disso, há três princípios que reforçam a realização do concurso público. O primeiro deles é o princípio da legalidade, este impede que existam atos não baseados em leis e visa atribuir, via de regra, aos servidores públicos, funções próprias inerentes aos seus cargos. O segundo é o da moralidade, por este a Administração Pública deve se basear em um conceito de moral, coibindo o desvio de função ilegal nos cargos públicos. Por último, há o princípio da obrigatoriedade de concursos públicos, o qual gera a obrigatoriedade de prévia aprovação em concurso público específico por parte do servidor para que haja o exercício da função.

Apesar de todas essas formas inibitórias do desvio de função, é certo que na prática existe esta. Deste modo, apresentam-se algumas formas de controle da ilegalidade citada. A primeira delas é através de controle judicial, a qual se apresenta como uma forma de controle pós fato, isto porque o prejuízo ao servidor público já ocorreu, e, o que se visa nesta etapa, são as indenizações.

Cabe dizer que, para o Superior Tribunal de Justiça, reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes.

Porém, como apresentado, há julgados que não reconhecem direito a indenização quando os cargos são complementares, de modo que, muitas vezes, eles se intercambiam. Outros tribunais não reconhecem o direito à indenização quando houver a percepção de função gratificada.

Por último, cabe dizer que outra forma de controle do desvio ilegal de função é através da autotutela da administração pública. Nesta, além da própria Administração Pública poder se manifestar de ofício, pode o particular realizar um requerimento exigindo, através do direito de petição, o fim da ilegalidade.

Compete mencionar que os objetivos foram alcançados, quais sejam, o de trazer para análise pontos práticos para se lidar com o desvio de função, tanto por parte doutrina como por parte da jurisprudência.

Destaca-se, em última instância, que a presente pesquisa fora desenvolvida na forma de artigo científico, por meio de revisão de literatura, utilizando-se, em seu bojo, as disposições legais pertinentes, a doutrina autorizada acerca do assunto e a jurisprudência atualizada.

5 - REFERÊNCIAS

5.1 - Referências Bibliográficas

DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. - 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. Página 73.

MADEIRA, José Maria Pinheiro. Servidor público na atualidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 76 - 78.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

MEIRELLES, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 27ª edição, p. 409.

MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta. 1990, São Paulo, RT, p.45.

MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. 1ª ed.São Paulo: Saraiva, 1999, p. 232-234.

5.2 - Referências Legislativas

Lei 8.112/90. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>. Acesso em 09 jan. 22.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 30 nov. 21.

5.3. Referências Eletrônicas

SANTIAGO, Emerson. Servidor público. Disponível em: <https://www.infoescola.com/direito/servidor-publico/>. Acesso em 09 jan. 22.

Vitor César Freire de Carvalho Pires. Administração Pública: princípio da legalidade. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7643/Administracao-Publica-principio-da-legalidade>. Acesso em 11 jan. 22.

VIEIRA, Aroldo Max Andrade. Direito de petição e as ações constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 87, 28 set. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4257>. Acesso em 9 jun. 22.

Direito de petição: ilegalidade da cobrança de taxas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1144, 19 ago. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/peticoes/16708>. Acesso em 9 jun. 22.

  1. Lei 8.112/90. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>. Acesso em 09 jan. 22.

  2. SANTIAGO, Emerson. Servidor público. Disponível em: <https://www.infoescola.com/direito/servidor-publico/>. Acesso em 09 jan. 22.

  3. Constituição Federal. Disponível em:

    <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 12 jan. 22.

  4. Vitor César Freire de Carvalho Pires. Administração Pública: princípio da legalidade. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7643/Administracao-Publica-principio-da-legalidade>. Acesso em 11 jan. 22.

  5. Superior Tribunal de Justiça STJ - AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL : AgInt nos EDcl no REsp 5007325-95.2015.4.04.7200 SC 2018/0073775-3

    Superior Tribunal de Justiça.

  6. Tribunal de Justiça do Amapá TJ-AP - APELAÇÃO : APL 0026426-47.2007.8.03.0001 AP

    Tribunal de Justiça do Amapá.

  7. Tribunal Regional Federal da 4ª Região TRF-4 - Apelação/Remessa Necessária : APL 5003237-22.2012.404.7102 RS 5003237-22.2012.404.7102 Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

  8. Tribunal Regional Federal da 5ª Região TRF-5 - Apelação Civel : AC 0801783-78.2017.4.05.8000 AL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

  9. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS - "Apelação Cível" : AC 70083406272 RS

Sobre o autor
Carlos Henrique Soares Barrozo

Advogado. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Brasileira de Direito (2022). Possui Inglês Jurídico pela FGV - Fundação Getúlio Vargas (2022). Possui Curso de Extensão em Direito sobre Legislação Processual Aplicada pela Faculdade Metropolitana do Estado de São Paulo (2021). Graduado em Direito pelo IBMEC - Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (2017-2021). Possui Curso Avançado de Inglês pelo IBEU - Instituto Brasil-Estados Unidos (2014-2019).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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