Filho não é visita

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A OAB-SP lançou, recentemente, a campanha "Filho Não é Visita", cuja temática, que coloca em debate o direito-dever de convivência inspirou este artigo.

 

Neste primeiro semestre de 2022 a OAB-SP lançou a campanha filho não é visita, que tem por fim suscitar o debate sobre o direito de convivência dos filhos com os pais, que vai muito além de visitas regulares.

Tamanha foi a repercussão da referida campanha que logo obteve apoio[1] do IBDFAM (2022) Instituto Brasileiro de Direito de Família , instituição à frente de grande parte dos debates que têm reconstruído o Direito de Família contemporâneo. E não é por mero acaso, pois, de fato, é necessário se refutar o tratamento que muitos dão ao direito-dever de visita, como se fosse mera obrigação decorrente do fim do relacionamento com outro genitor do filho. É necessário ir além.

Inicialmente, precisamos distinguir visita e convivência. De acordo com a Comissão de Direito de Família da OAB-SP, responsável pelo projeto, o termo visitação traz a ideia de superficialidade e desimportância; já a palavra convivência indica profundidade e relevância (OAB-SP, 2022). Em sentido muito próximo, o dicionário Priberam (2022) traz ao termo conviver o significado de viver com o outro; ter intimidade, ou seja, visita poderia indicar o triste tratamento que alguns pais dão aos seus filhos, de simplesmente buscá-los, de vez em quando, para passar algum tempo e nada mais, ao passo que convivência é viver a vida juntos.

Ocorre que a distinção do dever de visitação e de convivência transcende à questão semântica, trazendo ao debate o questionamento acerca da existência (ou não) de um dever de convivência por parte dos pais em relação ao filho, bem como da existência (ou não) de um direito do filho de conviver com os pais.

Destes questionamentos, o segundo é facilmente respondido pela própria Constituição Federal, que em seu art. 227 prevê que as crianças e adolescentes têm direito à convivência familiar, que deve ser garantida pela família, pela comunidade e pelo Estado (BRASIL, 1988).

Ocorre que a questão do dever dos pais de convivência com o filho é mais complexa do que parece, pois como dito acima, conviver é viver a vida juntos, e, para que isso ocorra é necessário mais do que um comando constitucional: precisa que haja afeto entre os genitores e o filho. Deccache esclarece bem isso:

 

No tocante ao convívio familiar é relevante diferenciar o aspecto objetivo do subjetivo, para que se possa identificar o núcleo de proteção da garantia constitucional. O aspecto objetivo da convivência familiar abrange o estar ao lado dos pais e deles receber os cuidados impostos pela lei, como os deveres do poder familiar. Nesse caso, o cuidado deve ser visto com um dever jurídico, gerando consequências em caso de violação. A convivência familiar sob enfoque subjetivo, visto sob uma dimensão afetivo-antropológica, abrange o cuidado como consequência do afeto e do amor. Neste sentido, o cuidado na relação familiar pertence ao Direito Natural (2008, p. 57).

 

Em suma, há o dever de convivência dos genitores no sentido de cumprir as obrigações que lhes são impostas pela lei e pela Constituição: aspecto objetivo da convivência; e, a convivência familiar tendo por base o afeto: aspecto subjetivo. Juridicamente falando o aspecto objetivo da convivência é de fácil visualização, pois se trata de relação ambivalente[2] (NUNES, 2011) entre um direito subjetivo dos filhos (de se exigir) e um dever subjetivo dos pais (de se sujeitar), pois a CF, em seu art. 227, prevê que a família deverá, com absoluta prioridade, garantir a vida, a saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura e dignidade (BRASIL, 1988).

O ponto mais delicado de nossa reflexão reside no aspecto subjetivo da convivência, pois não é possível ao Estado exigir que uma pessoa manifeste afeto por outra; a verdade é que todas as crianças e adolescentes merecem ser amados, mas tal circunstância não surgirá do texto constitucional, e sim dos sentimentos dos genitores pelo filho, pois os vínculos formam-se a partir de referências internas e externas, de aspectos conscientes e inconscientes (FIORELLI; MANGINI, 2016).

Em suma, o dever de convivência é latente, mas o dever de afeto não, haja vista que a definição jurídica do que é ser afetuoso e amoroso, no seio familiar, é relativa:

 

Cada família tem dinâmica própria; o que é bom para uma não necessariamente funcionará em outro grupo familiar. Na privacidade do lar, são forjados mitos familiares. Traduzidos pela união de crenças, valores e tradições compartilhadas pelo grupo e que tem função organizativa, tanto para o funcionamento deste, quanto nas relações com o meio exterior (FIORELLI; MANGINI, 2016, p. 330).

 

A despeito disso, devemos reforçar aqui que a inexistência de um dever de amar não necessariamente descaracteriza o direito de convivência do filho e nem o dever de convivência dos genitores com ele, até porque,  se trata de Direito Fundamental, previsto expressamente na CF (DECCACHE, 2008). Ademais, é pertinente consignar que doutrina entende que além do direito de convivência, há também o direito de cuidado - de ser cuidado[3] -, decorrente imediata e diretamente da dignidade da pessoa humana (PERREIRA; TUPINAMBÁ, 2008). Quando algum dos pais descumpre seu dever de convivência, acaba por violar esses direitos dos filhos, gerando, no mais das vezes, o que a doutrina chama de abandono afetivo:

 

Conforme mencionado, o direito dos filhos de serem visitados pela mãe ou pelo pai não guardião é direito garantido pela Constituição, tornando um direito/dever dos pais em dar continuidade na convivência com os filhos, sob pena de abandono afetivo/moral.  O direito de visitas, decorrente do direito à convivência familiar, alicerçando-se na necessidade de cultivar o afeto na relação paterno-filial, e de manter um convívio familiar real, efetivo e eficaz, mesmo não havendo coabitação, conforme explica diante de uma desunião, a finalidade desse instituto é a manutenção de uma natural e adequada comunicação do filho com o pai ou mãe com quem não convive, para fomentar e consolidar os vínculos paterno ou materno-filiais, aproximando, quanto possível, o contato que existiria no seio da família unida (DILL; CALDERAN, 2011).

 

Em suma, o Estado não pode impor a um pai que dê afeto e amor. Não obstante, o art. 186[4] c.c. o art. 927[5], ambos do Código Civil (BRASIL, 2002), prevê que aquele que viola direito de outrem, causando-lhe dano, mesmo que exclusivamente moral, é obrigado a repará-lo. Retomando o raciocínio, nenhum genitor(a) será forçado(a) a viver ao lado do filho. Todavia, o seu não fazer, por implicar no descumprimento de um dever jurídico poderá implicar em consequências, sobretudo na esfera da responsabilidade civil. Neste sentido, o STJ (2022) já decidiu que pai deveria ser condenado a pagar indenização no valor de R$ 30.000,00, à filha, em razão de abandono afetivo[6]:

 

Se a parentalidade é exercida de maneira irresponsável, negligente ou nociva aos interesses dos filhos, e se dessas ações ou omissões decorrem traumas ou prejuízos comprovados, não há impedimento para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelos filhos, uma vez que esses abalos morais podem ser quantificados como qualquer outra espécie de reparação moral indenizável (STJ, 2022).

 

A Ministra Nancy Andrighi, neste julgamento, bem disse que há ex-marido e ex-convivente, mas não ex-pai e do ex-filho (STJ, 2022). O casamento ou a união estável podem chegar ao fim, mas a paternidade e maternidade, jamais. Uma vez mãe, sempre mãe; uma vez pai, sempre pai. E filho é filho, não mera visita.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL, Constituição (1988). 12. ed. São Paulo: Método, 2020.

BRASIL, Código Civil (2002). 12. ed. São Paulo: Método, 2020.

DECCACHE, Lúcia Cristina Guimarães. A Garantia constitucional da convivência familiar e a proibição do retrocesso. Revista do Advogado: direitos fundamentais da criança e do adolescente, São Paulo, ano XXVIII, v. 1, n. 101, 1 dez. 2008.

DILL, Michele Amaral; CALDERAN, Thanabi Bellenzier. A importância do papel dos pais no desenvolvimento dos filhos e a responsabilidade civil por abandono. Portal do IBDFAM, Belo Horizonte, 17 jan. 2011. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/703/A+import%C3%A2ncia+do+papel+dos+pais+no+desenvolvimento+dos+filhos+e+a+responsabilidade+civil+por+abandono%3E.%20Acesso%20em%20:%2028.Nov.2020. Acesso em: 13 jun. 2022.

FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia Jurídica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

IBDFAM. Filho não é visita: IBDFAM apoia campanha da OAB-SP que estimula uso do termo convivência. Portal IBDFAM, Belo Horizonte, 23 mar. 2022. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/9486/Filho+n%C3%A3o+%C3%A9+visita%3A+IBDFAM+apoia+campanha+da+OAB-SP+que+estimula+uso+do+termo+%E2%80%9Cconviv%C3%AAncia%E2%80%9D. Acesso em: 10 jun. 2022.

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NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do Direito. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

OAB (SP). Comissão de Direito de Família da OAB-SP lança campanha de conscientização para relações mais próximas entre pais e filhos. Jornal do Advogado, São Paulo, 10 jun. 2022. Disponível em: https://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/noticias/comissao-de-direito-de-familia-da-oab-sp-lanca-campanha-de-conscientizacao-para-relacoes-mais-proximas-entre-pais-e-filhos/. Acesso em: 10 jun. 2022.

PERREIRA, Tânia da Silva; TUPINAMBÁ, Roberta. O direito fundamental ao cuidado no âmbito das famílias, infância e juventude. Revista do Advogado: direitos fundamentais da criança e do adolescente, São Paulo, ano XXVIII, v. 1, n. 101, 1 dez. 2008.

PRIBERAM. Dicionário, 2022. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/conviver. Acesso em: 10 jun. 2022.

STJ. Pai é condenado a pagar R$ 30 mil de danos morais por abandono afetivo da filha. STJ Notícias, Brasília, 23 fev. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/21022022-Pai-e-condenado-a-pagar-R--30-mil-de-danos-morais-por-abandono-afetivo-da-filha.aspx. Acesso em: 11 jun. 2022.

 

  1. Com intuito de ampliar o debate sobre o exercício conjunto da parentalidade, a Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões da Ordem dos Advogados do Brasil OAB-SP idealizou a campanha Filho não é visita. A iniciativa conta com o apoio do Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM para conscientizar a sociedade brasileira sobre o uso do termo convivência (IBDFAM, 2022).

  2. (...) Percebe-se que, se, de um lado, tem-se o direito subjetivo, isto é, potencialidade ou exercício de um direito, de outro, tem-se um dever subjetivo, colocado em posição diametralmente oposta (NUNES, 2011, p. 171)

  3. Por conseguinte o cuidado consiste em verdadeiro substrato da dignidade da pessoa humana, integrando o rol dos direitos fundamentais, que os ordenamentos jurídicos mais civilizados buscam assegurar a todos os subordinados (PERREIRA; TUPINAMBÁ, 2008, p. 110).

  4. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (BRASIL, 2002).

  5. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo (BRASIL, 2002).

  6. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que um pai pague indenização por danos morais de R$ 30 mil à sua filha, em razão do rompimento abrupto da relação entre os dois quando a garota tinha apenas seis anos de idade. Em razão do abandono afetivo, segundo laudo pericial, a menina sofreu graves consequências psicológicas e problemas de saúde eventuais como tonturas, enjoos e crises de ansiedade (STJ, 2022).

Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Esse texto teve como motivação a campanha "Filho Não é Visita", realizada pela OAB/SP, cujo objetivo é ressignificar a concepção de convivência parental, presente em muitas relações de pais e filhos.

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