A inversão do ônus da prova em ações contra médicos e dentistas

15/06/2022 às 10:56
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A inversão do ônus da prova não é automática, mesmo nas relações de consumo. E depende diretamente da atuação do profissional junto ao paciente, durante o tratamento.

           O Tribunal de Justiça de Santa Catarina afastou a inversão do ônus da prova em uma ação que tratava de acusação de erro médico, em maio de 2022. O recurso do médico foi acolhido pelo tribunal, revertendo o entendimento da sentença que havia deferido o pedido de inversão feito pelo paciente.

            A inversão do ônus da prova é um instrumento jurídico que beneficia o autor da ação em casos específicos, sobretudo quando há relação de consumo. Nestes casos, a produção de provas não segue sua ordem regular (onde cada parte deve provar o que alega), sendo invertida a favor do consumidor. Assim, cabe a ele somente alegar, e ao réu da ação resta provar o contrário, da forma que puder. A medida jurídica visa reequilibrar situações de extremo desequilíbrio (comuns nas relações de consumo), mas desequilibra totalmente a relação processual quando aplicada equivocadamente.

            A decisão do tribunal chamou a atenção de médicos e cirurgiões dentistas em todo o país, e em meio a tantas dúvidas e entendimentos equivocados, mostra-se indispensável tecer alguns esclarecimentos sobre o tema.

           Em primeiro lugar, cumpre informar que a negativa da inversão do ônus da prova não é uma exceção nas ações contra médicos e dentistas, mas talvez uma regra. Pelo menos foi o que apurei, analisando as centenas de decisões proferidas em processos nos quais atuei nos últimos 15 anos, onde a inversão do ônus da prova em favor do paciente foi negada em 73,33%. Obviamente, isso não significa que observaremos este mesmo percentual positivo de indeferimentos em todas as ações que versam sobre o tema no país, até porque, muitas delas são acompanhados por advogados generalistas e não especialistas, agravando o quadro. Mas sem dúvidas, o dado expõe o equívoco da impressão inicial que muitos tiveram com a notícia, ao entender que se tratava de algo raro e inovador.  

            A inversão do ônus da prova não é automática, nem mesmo em relações de consumo. Depende da existência de requisitos legais, que devem ser comprovados pelo paciente para que a medida possa ser deferida pelo juiz. Muito embora a jurisprudência majoritária entenda a relação médico-paciente como de consumo (um grande equívoco, diga-se de passagem) nem mesmo nestes casos, a inversão se impõe de forma automática.

            Assim, não basta que o paciente faça uma série de acusações e ilações, se declare consumidor, e alegue dificuldades para comprovar a culpa do médico (o que via de regra, ocorre nestas ações). Ele precisa cumprir com sua obrigação processual de demonstrar detalhadamente os fatos que alega sustentarem seu direito, e ainda, que existe hipossuficiência na produção de provas (art. 6º VIII do Código de Defesa do Consumidor). Deve provar a existência de uma grande disparidade entre as partes no acesso a informações e detalhes do caso, refletida na produção de provas.   

          Portanto, esta é a nossa primeira premissa: a inversão do ônus da prova não é automática em ações contra médicos e dentistas, e nem mesmo aplicada majoritariamente, pelo menos nos casos onde há uma boa condução da defesa, por um advogado especialista.

          Passemos agora ao segundo esclarecimento que trazemos, que é ainda mais importante: O deferimento ou não da inversão do ônus da prova pelo juiz, não ocorre somente conforme o entendimento do tribunal de seu estado, ou dos argumentos de defesa do advogado do profissional da saúde: Ela depende diretamente da atuação do médico ou dentista junto ao paciente, no decorrer do tratamento, antes mesmo do processo.  

           Pois para decidir acerca do cabimento ou não da inversão do ônus da prova, o juiz precisa analisar a realidade dos fatos retratada no processo, a fim de averiguar se o paciente teve amplo acesso à informação para exercer sua autonomia, e se é mesmo hipossuficiente. E os parâmetros para esta análise não se limitam ao acesso do paciente ao prontuário e à realização de perícia no processo, mas alcançam a forma como a relação entre as partes transcorreu, antes do processo.

          Portanto, cumprir adequadamente com o dever de informação, prezar por uma relação horizontal e equilibrada com o paciente, e possuir uma documentação adequada a comprovar estes fatos no processo, são as principais ferramentas para que o próprio médico ou cirurgião dentista atue de forma a impactar positivamente nesta análise do juiz, evitando o grande prejuízo processual causado pela inversão do ônus da prova. Estes cuidados (além de contar com uma consultoria jurídica preventiva, que lhe auxilie no gerenciamento das crises) é o melhor caminho para que o profissional da saúde garanta o regular andamento de um futuro processo, livre de vícios que agravem seu risco desnecessariamente.  

 

         Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 15 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país. [email protected]

Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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