Essas são as primeiras linhas sobre a multivulnerabilidade de determinados consumidores. Trata-se de uma proposta teórica inspirada nos conceitos de vulnerabilidade e de hipervulnerabilidade no âmbito das relações de consumo reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei n. 8.078/1990. Sugestão que busca contribuir favoravelmente para o conhecimento das dificuldades ligadas à concretização da dignidade da pessoa humana e da igualdade na economia de mercado.
Argumenta-se que entre as categorias dos consumidores existem determinadas pessoas que demandam uma carga adicional de proteção jurídica devido a suas condições pessoais. Primeiro, cabe diferenciar vulnerabilidade de hipervulnerabilidade; segundo, ilustrar esse último conceito com alguns exemplos; terceiro, esboçar o conceito de multivulnerabilidade apoiando-se no Recurso Especial n. 1.329.556/SP julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em parte, apoia-se na teoria do diálogo das fontes, desenvolvida na Alemanha por Erik Jayme e introduzida no Brasil por Claudia Lima Marques, no sentido de determinar influências e aproveitamentos recíprocos sobre as fontes dos direitos.[2] Cujo objetivo central reside em ampliar a proteção jurídica de determinados consumidores.
I - Da vulnerabilidade à hipervulnerabilidade
Em primeiro lugar, cabe recordar que o CDC atribuiu genericamente a todo e qualquer consumidor a condição de vulnerabilidade. Isso implica que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo.[3] A decisão legislativa considera que toda pessoa natural que adquire ou utiliza produtos e serviços na qualidade de destinatário final, a coletividade de pessoas e as vítimas do acidente de consumo possuem algumas desvantagens em relação aos fornecedores.
Presunção legislativa que se origina de dificuldades técnica, econômica, jurídica e informacional por parte dos consumidores. Daí conferir maior proteção jurídica para essa categoria face aos desmandos do mercado econômico, vale acrescentar que essas desvantagens são inerentes aos consumidores dentro das relações de consumo. Não se pode deixar seduzir pela igualdade formal perante a lei - típica da tradição dos pensamentos liberais - enquanto condição suficiente para gerar relações justas no livre mercado. Importa reconhecer que dentro da categoria dos consumidores existem outras especificidades.
Nessa tônica, existem condições particulares ou personalíssimas que reclamam maior comprometimento institucional para a efetivação da proteção jurídica dos consumidores. Isso demanda um raciocínio jurídico-hermenêutico específico capaz de assegurar o cumprimento dos objetivos da política nacional das relações de consumo, os direitos básicos dos consumidores, a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, entre outros exemplos possíveis.
II - Diálogos com a hipervulnerabilidade
Recentemente, o tema da hipervulnerabilidade vem recebendo bastante atenção.[4] Hipóteses exemplificativas são os consumidores indígenas, analfabetos, idosos, crianças, turistas e pessoas com deficiência. Devido ao caráter acentuado de suas vulnerabilidades corre-se o risco de tornar sem efeito as disposições protetivas do CDC caso não sejam levadas em consideração a hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade agravada[5] quando da elaboração de políticas públicas ou da prolação de decisões judiciais.
Com efeito, percebe-se um movimento ético que conduz os consumidores em abstrato à condição de pessoa humana concreta. As disposições contidas no CDC precisam ser dialogadas com outros diplomas jurídicos, nessa perspectiva, busca-se combinar as disposições legislativas distintas de modo a ampliar a proteção jurídica aos grupos hipervulneráveis.
Nessa esteira, as crianças exigem maiores atenções. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069/1990, criança é a pessoa humana com até doze anos de idade incompletos, cuja condição de não estar diretamente nas relações de consumo não impede sua especial proteção contra a publicidade abusiva endereçada para o público infanto-juvenil. Apesar da proibição da venda de bebidas alcóolicas, armas e tabacos para esse público (art. 79, ECA), a publicidade comercial ainda hoje carece de uma regulamentação específica.
Os idosos também demandam um reforço protetivo adicional. Definido pelo Estatuto do Idoso, Lei n. 10.741/2003, como sendo a pessoa natural com idade igual ou superior a sessenta anos de idade, também dentro das relações de consumo precisam usufruir das condições para o aperfeiçoamento moral, intelectual, social e comunitário; mesmo porque suas características pessoais conferem maior credulidade ou dificuldade de compreensão dos assuntos cotidianos, a exemplo da contratação de empréstimos consignados.
Quanto as pessoas com deficiência, entendida como a pessoa humana que possui impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146/2015, há que se considerar as barreiras nas comunicações e nas informações dentro das relações de consumo. Tais obstáculos dificultam ou impedem a expressão e o recebimento de mensagens precisam ser levados em consideração quando da aplicação administrativa e judicial da legislação consumerista.
III - Da hipervulnerabilidade à multivulnerabilidade
Percebe-se que as disposições do CDC associadas aos demais diplomas legislativos ampliam a proteção aumentando as chances de sua efetividade, contudo, a tônica incidi sobre a identificação e a interpretação das condições de hipervulnerabilidades. Diante disso, entende-se que as condições especialíssimas de determinadas pessoas ao reunir duas ou mais hipervulnerabilidades dentro de uma mesma situação fática incide na condição de multivulnerabilidade.
Essa perspectiva se sustenta pela compreensão hermenêutica de que existem variados graus ou camadas de hipervulnerabilidade que se conjugam não apenas pelo critério matemático aditivo, mas exponencial. Por outras palavras, a multivulnerabilidade não é apenas a soma das desvantagens pessoais, mas a condição peculiar e excepcional que tornam aquele consumidor destinatário de uma tutela jurisdicional efetiva.
Ao que tudo indica, esse é um posicionamento em construção, identificado num julgado do STJ. Em novembro de 2014, a Terceira Turma do STJ, no REsp 1.329.556/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, deu provimento ao recurso e fixou indenização por danos materiais e morais ao consumidor multivulnerável. Na espécie, tratou-se de propaganda enganosa (art. 37, § 1º, CDC), ante a ineficácia científica de um suplemento alimentar para o combate a doenças graves.
Na propaganda veiculada, o fornecedor afirmava que o produto fortalecia as pessoas com deficiência e seria indicado para o tratamento de pessoas com câncer. O suplemento alimentar foi adquirido onerosamente e ministrado ao consumidor final, que era menor de idade e portador de neoplasia maligna (câncer no fígado) na expectativa de alcançar o resultado prometido. Restou, porém, completamente ineficaz. Devido à frustração da legítima expectativa gerada e o reconhecimento das hipervulnerabilidades do consumidor (menor e enfermo) ensejou o direito ao recebimento de uma indenização pecuniária.
Por fim, cabe considerar que diante das regras de ordem pública e de interesse social deve-se buscar todos os meios disponíveis e juridicamente reconhecidos para tentar contornar a vulnerabilidade, a hipervulnerabilidade e a multivulnerabilidade. Conforme já se disse, trata-se apenas das primeiras reflexões sobre o tema que necessita de futuros refinamentos e ajustes. Por hora, o objetivo central foi colocar o debate em movimento.
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Cf. BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Claudia Lima. A teoria do diálogo das fontes e seu impacto no Brasil: uma homenagem a Erik Jayme. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 115, ano 27, jan./fev. 2018, p. 21-40.
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NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 178.
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Cf. BET VIEGAS, João Ricardo. A Hipervulnerabilidade como critério para a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Res Severa Verum Gaudium, Porto Alegre, v. 04, n. 01, jun. 2019, p. 73-91; GAUDENCIO, Aldo Cesar Filgueiras. (Hiper)Proteção contratual do consumidor: consolidação da defesa dos consumidores hipervulneráveis no direito brasileiro. Revista de Direito, Globalização e Responsabilidade nas Relações de Consumo, Brasília, v. 02, n. 01, Jan/Jun. 2016, p. 149-166; MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014; SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.
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GAUDENCIO, Aldo Cesar Filgueiras. (Hiper)Proteção contratual do consumidor: consolidação da defesa dos consumidores hipervulneráveis no direito brasileiro. Revista de Direito, Globalização e Responsabilidade nas Relações de Consumo, Brasília, v. 02, n. 01, Jan/Jun. 2016, p. 160.