Artigo original em https://advambiental.com.br/flexibilizacao-do-uso-de-area-de-preservacao-permanente-app/
Em locais com alto grau de antropização, nos quais se encontram toda a infraestrutura necessária à vida em comunidade em ambiente urbano, como asfaltamento de ruas, serviço de energia elétrica, distribuição de água encanada, entre outros, deve-se permitir a flexibilização do uso das áreas de preservação permanente.
Isso porque, conquanto o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado seja um direito fundamental, eventual determinação de demolir construção erigida em APP traria conflito com os também fundamentais direitos à moradia e dignidade da pessoa humana.
Assim sendo, é necessário adotar critérios hermenêuticos integrativos, de modo a compatibilizar os direitos e garantias fundamentais em conflito, visando a melhor solução da situação, sem que se possa afirmar, apriorística e abstratamente, a prevalência da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Ocorre que, na maioria das vezes, constatamos demandas inócuas que objetivam a recuperação de danos ambientais, vez que eventual procedência de uma ação assim, não alterará a situação de consolidação urbana da área, mormente quando existirem diversos imóveis em situação semelhante, tampouco restaurará a função ecológica do córrego.
1. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE x DEMOLIÇÃO DE IMÓVEL EM APP
Sobre o tema demolição de imóvel construído em área de preservação permanente, é cabível o ensinamento de Humberto Ávila[1]:
A razoabilidade exige a consideração do aspecto individual do caso nas hipóteses em que ele é sobremodo desconsiderado pela generalização legal. Para determinados casos, em virtude de determinadas especificidades, a norma geral não pode ser aplicável, por se tratar de caso anormal (...).
No caso acima referido a regra geral, aplicável à generalidade dos casos não foi considerada aplicável a um caso individual, em razão da sua anormalidade. Nem toda norma incidente é aplicável.
É preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese. Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas.
Uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária. Nessas hipóteses as condições de aplicação da regra são satisfeitas, mas a regra, mesmo assim, não é aplicada (...).
Essa concepção de razoabilidade corresponde aos ensinamentos de Aristóteles, para quem a natureza da equidade consiste em ser um corretivo da lei quando e onde ela é omissa, por ser geral.
Essas considerações levam à conclusão de que a razoabilidade serve de instrumento metodológico para demonstrar que a incidência da norma é condição necessária mas não suficiente para sua aplicação.
Para ser aplicável, o caso concreto deve adequar-se à generalização da norma geral. A razoabilidade atua na interpretação das regras gerais como decorrência do princípio da justiça (preâmbulo e art. 3º da Constituição Federal).
Ainda sobre o princípio da razoabilidade e a aplicação do Código Florestal em áreas urbanas consolidadas, relevante pontuar o magistério de Guilherme José Purvin de Figueiredo[2]:
Seria, porém, rematado despropósito pretender a demolição da infraestrutura urbana existente nessas áreas. Não é necessário invocar a regra do direito adquirido para solucionar tais hipóteses, mesmo porque não existe direito adquirido a degradar o meio ambiente.
Aplicando-se, porém, o princípio da razoabilidade, quando a reversão ao status original de APPs exigir a realização de obras de tal porte que acarretem significativo impacto ambiental e de vizinhança (art. 36 a 38 do Estatuto da Cidade: demolições, retirada de camada asfáltica, problemas de tráfego, poluição sonora e visual, dentre outros) e, ainda, naquelas em que o custo da recuperação seja despropositado, a mesma não deverá ser exigida.
A contrário senso, desde que os custos com a demolição de obras situadas em áreas de preservação permanente e o impacto ambiental pelas próprias obras sejam de pequena monta, se comparados com os benefícios trazidos pela revitalização da APP, a exigência de sua recuperação será pertinente.
Tome-se, por exemplo, os casos de áreas de preservação permanente já inteiramente urbanizadas e degradadas, mas que, em períodos de chuvas, sofrem frequentemente enchentes.
Logo, quando a APP perde sua função ecológica, eventual determinação de demolir imóvel construído violará o princípio material da razoabilidade, e revelar-se-á impertinente a aplicação das regras previstas no art. 4º, do Código Florestal.
2. FUNÇÃO DA ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE EM REGIÃO CONSOLIDADA
As áreas de preservação permanente, sobretudo às de margens de rios e dos entornos de nascentes, são compostas por matas ciliares e a sua proteção se fundamenta na necessidade técnica de manutenção da vegetação destinada a garantir alguns aspectos protetivos: permeabilidade do solo, evitar a erosão, garantir o encontro da água com vegetação marginal, dentre outros.
Daí porque quando a ocupação é antropizada e consolidada há muito anos, com vias pavimentadas, com serviço público de fornecimento e água e esgoto, energia elétrica, verificar-se-á, na maioria das vezes, que a área de preservação permanente perde sua característica, sua essência de existir.
A reparação do dano, mediante a recuperação da área, nem sempre se mostra adequada ao fim de proteção do meio ambiente, posto que, se há uma situação consolidada, na qual a paisagem original não mais existe, tendo sido descaracterizada, eventual demolição das construções pouca, ou nenhuma diferença faria.
Resta nítido, a nosso ver, que o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade em casos envolvendo demolição de imóvel em área de preservação permanente consolidada é de aplicação obrigatória, já que a remoção e demolição de bens erigidos por força humana não se mostra como a melhor solução para restaurar ou recuperar o meio ambiente.
3. CONCLUSÃO: IMPOSSIBILIDADE DE DEMOLIR IMÓVEL EM APP
Embora seja inconteste que determinado imóvel esteja localizado em área de preservação permanente, a circunstância de ter sido edificado há anos e estar inserido em zona urbana de ocupação histórica, torna desarrazoada a sua demolição.
E isso, especialmente em razão da ausência de função ambiental da área de preservação de permanente, que somada à existência de toda uma infraestrutura, como rede de esgoto, pavimentação de ruas, energia elétrica e água potável, impede eventual recuperação ou restauração do meio ambiente ao status quo ante.
Com efeito, descaracterizada a área de preservação ambiental, com a urbanização da área e instalação de sistema viário e demais bens, não se mostra razoável impor aos particulares a demolição dos imóveis erigidos no local para recompor a área ambiental que não existe mais.
A tutela ambiental voltada à restauração da área de preservação permanente, além de não assegurar por si só o objetivo principal, pode resultar em prejuízo a população local, com a alteração da estrutura viária e demolição de todas as construções erigidas.
Neste sentido, de pouca ou nenhuma utilidade ambiental seria o desfazimento de obras para recompor uma faixa de preservação permanente que não mais existe, mormente quando implantados equipamentos urbanos e consolidada a respectiva área urbana.
Assim, insubsistente se falar em abstenção de intervenção ou na obrigação de fazer consubstanciada na demolição de construções erigidas em área de preservação permanente, bem como indenização por dano ambiental, quando absolutamente descaracterizada a área ambiental em processo de ordenamento de espaço urbano.
Portanto, demandas que objetivam a recuperação de áreas de preservação permanente, em especial as ações civis públicas ambientais, na maioria das vezes se revelam inócuas, tendo em vista que a recuperação que se busca perdeu, há muito tempo, sua função ambiental, e sua eventual procedência não terá o condão de restaurar a função ecológica da APP.
[1] in Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 3ª ed., Ed. Malheiros Editores, págs. 105/106.
[2] O Código Florestal e a Biodiversidade, in Os 40 anos do Código Florestal, Maria Collares Conceição (Coord.), EMERJ, 2007, pág. 167.
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