Todos têm algo que queiram esquecer: seja uma experiência ruim, um episódio triste vivido, uma lembrança desagradável. Trazendo esta premissa ao diálogo jurídico, logo concluímos que temos o direito de esquecer, embora, no mais das vezes, seja um tanto quanto difícil. Mas será que há o direito de ser esquecido, pelos outros, por algo feito ou vivido? É este questionamento que buscaremos aqui responder.
Esta reflexão pode parecer, à primeira vista, distante do contexto jurídico. Mas como se verá a seguir, há grande construção jurisprudencial e doutrinária acerca do tema, defendendo posições divergentes, sobre a real existência, ou não, de um direito ao esquecimento.
O direito ao esquecimento é entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais (STF, 2021).
Em 12 de dezembro de 2012, um Jornal Gaúcho republicou texto, de edição do ano de 1977, que versava sobre caso de violência doméstica, em que o marido obrigava a esposa a fazer uso de cinto de castidade. A vítima dos fatos ajuizou ação pleiteando indenização pelos graves danos morais sofridos, ao ser novamente atrelada aos eventos cruéis que desejava deixar no passado. O TJRS (2015) entendeu que a vítima da violência doméstica teria direito ao esquecimento, e que o jornal ultrapassou o espaço da informação, afetando, assim, a moral e o bem-estar social da demandante.
Em 2013, no julgamento do Recurso Especial n. 1.334.097/RJ, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, o STJ reconheceu o direito ao esquecimento, de sujeito que foi absolvido da acusação de crime de homicídio. Na decisão, entendeu-se que fora desnecessária a menção feita pela Rede Globo de Televisão, ao vincular aquele sujeito, novamente, aos fatos.
No STF se vislumbrava certa divergência no debate acerca do conflito entre intimidade de alguns e liberdade de expressão de outros, mormente porque esta corte, no mais das vezes, prestigia esse valor constitucional em detrimento daquele, o que se percebe no julgamento da Reclamação 22328:
DIVULGAÇÃO, FATO; ATUAÇÃO, ÓRGÃO PÚBLICO; PREFERÊNCIA, SANÇÃO, MOMENTO POSTERIOR. DISTINÇÃO, CENSURA, DIREITO AO ESQUECIMENTO. - FUNDAMENTAÇÃO COMPLEMENTAR, MIN. LUIZ FUX: DIREITO AO ESQUECIMENTO, MODALIDADE, PRESCRIÇÃO, ANISTIA, REABILITAÇÃO PENAL. - TERMO(S) DE RESGATE: ATIVISMO ANTILIBERAL. Direito Constitucional. Agravo regimental em reclamação. Liberdade de expressão. Decisão judicial que determinou a retirada de matéria jornalística de sítio eletrônico. Afronta ao julgado na ADPF 130. Procedência. 1. O Supremo Tribunal Federal tem sido mais flexível na admissão de reclamação em matéria de liberdade de expressão, em razão da persistente vulneração desse direito na cultura brasileira, inclusive por via judicial. 2. No julgamento da ADPF 130, o STF proibiu enfaticamente a censura de publicações jornalísticas, bem como tornou excepcional qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões. 3. A liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades. 4. Eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização. Ao determinar a retirada de matéria jornalística de sítio eletrônico de meio de comunicação, a decisão reclamada violou essa orientação. 5. Reclamação julgada procedente (STF, 2018).
Depreende-se que há controvérsia de tamanha complexidade envolvendo o direito ao esquecimento, pois dele surge a colisão entre a intimidade e integridade emocional da pessoa envolvida em fatos prejudiciais à sua honra[2] e a liberdade de expressão, de imprensa e o acesso à informação (TARTUCE, 2019). Mas como resguardar todos estes preceitos, mormente quando os primeiros são reflexos diretos e imediatos da dignidade da pessoa humana[3] (TEPEDINO, 2004) e os últimos espelham o ideal de democracia[4], que baseia o Estado de Direito (BULOS, 2012). Acrescenta-se, ainda, que vivemos em meio à era da informação e do acesso amplo à internet, em que todos podem criar e propagar conteúdo livremente, o que dificulta ainda mais a coexistência harmônica entre aqueles preceitos constitucionais (MEDINA, 2013).
Diante de tamanha relevância e sensibilidade dos valores jurídicos em conflito, esperava-se um posicionamento do STF, que veio com o julgamento do tema 786, de Repercussão geral:
É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível (STF, 2021).
Em sua tese, a Corte entende que não haveria um direito ao esquecimento, por ser ele incompatível com a Constituição, no que toca à liberdade de imprensa e de expressão. Conforme dito a pouco, o Judiciário Brasileiro tem uma postura rígida quanto à proteção destas liberdades, pois em um passado próximo foram, em diversos momentos, suprimidas pelo poder público. Verifica-se, entretanto, que houve equívoco, por parte STF, ao afirmar que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição.
Trata-se de conflito de direitos fundamentais: de um lado a liberdade de expressão e de imprensa daqueles que propagam informações e do outro a intimidade e integridade emocional daqueles envolvidos em eventos danosos à sua honra. Deve-se levar em conta que desde Kelsen (2021) prevalece a ideia de supremacia das normas constitucionais, o que significa dizer: todas as normas constitucionais, simplesmente por o serem, são dotadas de valor intangível, logo, não podem ser afastadas em nenhuma hipótese[6], mesmo que por outra igualmente constitucional. Cuida-se da máxima do princípio da unidade da constituição:
Também conhecido como princípio da unidade hierárquico-normativa da constituição, serve para evitar contradições, harmonizando os espaços de tensões das normas constitucionais. Pela unidade da constituição, o texto maior não comporta hierarquia entre suas próprias normas, pois o que se busca, por seu intermédio, é o todo constitucional, e não preceitos isolados ou dispersos entre si (BULOS, 2012, p. 456).
Os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (MORAES, 2005, p. 28). Em suma, quando se trata de conflito de direitos fundamentais, não se deve eleger um para prevalecer sobre o outro; é necessário, para preservação da unidade constitucional, a compatibilização dos preceitos conflitantes, para que possam coexistir (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2017).
Cabe ao aplicador do direito, no caso concreto, realizar a ponderação de qual direito fundamental deverá ser limitado em detrimento de outro, e qual a medida de limitação, valendo-se, para tanto, das técnicas e ferramentas que a hermenêutica constitucional oferece (MENDES; BRANCO, 2015).
Em suma, não é que o direito ao esquecimento sempre existirá; até porque, em um Estado Democrático as liberdades fundamentais, sobretudo de expressão de pensamento, devem ser resguardadas. Mas também não se pode afirmar, como expressamente fez o STF, que aquele é incompatível com a Constituição. É necessário se ponderar, adotando-se posição intermediária, que a partir do caso concreto identifica se o sujeito por de trás dos fatos narrados tem, ou não, o direito de ser esquecido.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Verbetim, 2017.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
KELSEN, Hans. Trad. Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Forense, 2021.
MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
STF. Tema 786: Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares, 2021. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5091603&numeroTema=786. Acesso em 24 jun. 2022.
STF. RCL. 22328/RJ. STF, Rel. Ministro Roberto Barroso, 2018. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur384883/false. Acesso: 24 jun. 2022.
STF. ADPF. 130. STF, Rel. Ministro Carlos Britto, 2009. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur169063/false. Acesso em: 27. jun. 2022.
STJ. RESP. 1.334.097/RJ. STJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 2013. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201.334.097. Acesso em 24. jun. 2022.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, volume único. 9. ed. São Paulo: Método, 2019.
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. t. I, p. 50.
TJRS. APEL. 70063337810. Rel. Des. Túlio de Oliveira Martins, 2015, DJE n. 5697-7. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a%20do%20RS&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=&num_processo=70063337810&codEmenta=7706337&temIntTeor=true. Acesso em 24. jun. 2022.