A possibilidade do aborto em nome do amor e das circunstâncias desumanas

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Nada é imutável, de Jesus até atualmente. Antes de Jesus até presentemente, a dignidade humana sempre foi cogitada na História. E cada vez mais a dignidade tem status principiológico nas democracia.

 

 

 

"Deus proíbe o aborto", assim dizem. Jesus trouxe um novo código de conduta, muito diferente do código anterior. Perseguido pelos seus opositores, Jesus e a crucificação.

Podemos pegar, já que o Estado brasileiro é laico, a passagem de Jesus Cristo na Terra. Ainda que alguns falem que Jesus inexistiu, as máximas sobre a dignidade humana podem ser pontualmente aplicadas na Era dos Direitos Humanos, consequência da Segunda Guerra Mundial.

 

Segundo Flávio Martins:

De fato, há grande semelhança entre a conduta do profeta (na antiguidade), que criticava publicamente o ato do governante, reputando-o como violador das Escrituras e a conduta do magistrado (na atualidade) que invalida o ato do Poder Executivo, por exemplo, que viola a Constituição. Realmente, Karl Loewenstein estava certo: o Constitucionalismo tem origem na Antiguidade, na conduta dos profetas do povo hebreu. (2) 

O autor discorre:

 

Nesse sistema, os detentores do poder na terra são meramente agentes ou representantes do poder divino. [...] O regime teocrático dos hebreus se caracterizou porque o dominador, em vez de ostentar um poder absoluto e arbitrário, estava limitado pela Lei do Senhor, que submetia igualmente a governantes e governados. [...] Os profetas surgiram como vozes reconhecidas da consciência pública, e predicaram contra os dominadores injustos e carentes de sabedoria que haviam se separado do caminho da Lei, constituindo-se na primeira oposição legítima na História da Humanidade contra o poder estatal estabelecido.

(...)

Na cultura hebraica, os governantes também estavam subordinados às leis sagradas. Havendo qualquer transgressão, os profetas apontavam-na. Exemplo importantíssimo, como se verifica no Antigo Testamento, ocorreu durante o reinado de Davi (pai de Salomão), que reinou em Judá por volta  do ano 1010 a.C.: teria ele provocado a morte de um soldado, de nome Urias, a fim de ficar com sua esposa, de nome Betsabé14. Tal falha foi enfaticamente apontada pelo profeta Natã.

 

A Lei Sagrada é a Constituição de um povo, contra ela, inexistem opositores. Aos profetas, como representantes de Deus, cabiam censurar quaisquer condutas humanas atualmente podemos dizer condutas de agentes públicos ou não em face da CRFB de 1988 heterogêneas. Pelo império da Lei Sagrada (Constituição), cada pessoa tinha direitos inalienáveis e universais contra o Poder Estatal. Assemelha-se, na contemporaneidade, a força da CRFB de 1988 pelas suas normas, objetivos e princípios. A Lei Sagrada garantia direitos fundamentais, direitos estes protetivos das pessoas contra os poderes dos governantes, dos legisladores.

Jesus Cristo. Novas condutas humanas, pela nova interpretação da Lei Sagrada dos hebreus. Surgiu o neoconstitucionalismo. Podemos constatar isso na interrupção do apedrejamento de Maria Madalena. Apesar do positivismo da Lei Sagrada, apedrejar quem cometeu adultério, Jesus foi além da norma e garantiu o direito fundamental da dignidade humana contra os poderes dos sacerdotes. Ou seja, Jesus fez nova interpretação, como fazem os operadores de Direito e os constitucionalistas, da Lei Sagrada. Uma possível interpretação do pensamento de Jesus quanto ao ato de apedrejamento de adúltero (a):

Se Deus é amor, como pode Ele aplicar uma Lei de pena de morte? Não há o perdão?

E qual o pensamento, que depois se materializou para os apedrejadores, sobre Lei (positivismo) e "novo constitucionalismo" este pelas reivindicações dos excluídos?

Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra! - Jo 8,1-11.

 

Coaduna-se a frase de Jesus com a de Luís Roberto Barroso:

(...) as Constituições não são eternas nem podem ter a pretensão de ser imutáveis. Uma geração não pode submeter a outra aos seus desígnios. Os mortos não podem governar os vivos. (3)

 

Jesus rompeu com a tradição, com o positivismo da Lei Sagrada dos hebreus. Se Deus é amor, não se aplica o Direito Divino com ódio, rancor, por uma suposta justiça. Amor e ódio podem conviver, mas jamais se misturam, como água e óleo. Se a "erva daninha" é todo o mal, como ódio, guerras fratricidas, ganâncias materiais, justiça pelas próprias mãos, escravidão, eugenia negativa, darwinismo social, o "trigo" é todo o tipo de amor, como fraternidade, perdão, reconciliação, união, tolerância etc. Nada do que eu aqui digitei está dissociado das Boas Novas transmitidas por Jesus.

 

Situações:

  1. Uma escrava. Ela foi estuprada por seu proprietário, o escravocrata. Grávida, a escrava resolve abortar, ainda que a dogmática religiosa dos escravocratas diz que é pecado abortar. A escrava, por força de sua cultura nativa, também não admite o estupro, em nenhuma hipótese. Sozinha reflete. Ela foi escravizada para trabalhar horas exaustivas para gerar riquezas materiais para o seu senhor proprietário, para a sociedade escravocrata e o Estado também escravocrata. Estuprada, para gerar mais propriedades, como força de trabalho, ela questiona sobre a possibilidade de o feto ser do gênero feminino. "É justo minha filha ter que suportar tudo que eu suportei em nome de algo sagrado?", o questionamento. Continua: "Se o Deus de meus antepassados é amor, como Ele pode me condenar quando eu penso no amor de minha filha e da filha Dele? Se o valor da vida, para ELE, é superior a tudo, então ELE admite que eu sofra e minha doce filha sofrerá em nome de Sua Lei? Que Ser é Este que coloca o Direito acima da justiça? Eu, na condição de escrava, estou pagando pelos pecados de meus antepassados sem que eu tenha errado nesta vida? Isso é justo (justiça)?". Entre a Lei Sagrada e o amor pelo feto, e o futuro de sua descendente, o aborto. A deliberação da escrava.
  2. Gueto. Uma etnia confinada dentro de um prédio. Muros impossibilitam suas saídas. Sem alimentos e água, as mortes. Uma mulher grávida dentro do prédio. Tanto ela quanto o feto sofrem. O metabolismo basal do corpo da gestante mal consegue mantê-la viva, pela privação de alimentos e de água. Contrações uterinas, dois meses para dar à luz. O único meio de o feto sobreviver é a gestante se alimentar dos corpos. Não somente o nascituro, mas ela mesma. Entre o pecado do aborto e o pecado de comer carne humana, qual decisão ela tomará? Se ela deixar a sua vida esvair, assim como a do nascituro, o cumprimento da Lei Sagrada: "Não comerás carne humana. Não abortarás!". Podemos considerar que houve bravura da mulher grávida.

Em ambos os exemplos, a vida e sua existência. Seguir ou não a Lei Sagrada? Na tradição judaico-cristã, os pecados: suicídio; homicídio; aborto. A vida existencial é de Deus, e somente ELE pode tirar vidas. Ocorre que, historicamente, Deus deu o poder de guerrear e matar os "injustos". O Código Divino Penal do Inimigo justifica a morte de cidadão quando este é "subversivo".

Dos exemplos, fictícios, acima, um real, abaixo.

Foi juridicamente aceito o Poder Judiciário permitia; este aplicava a lei, positivismo; a lei é fruto do Poder Legislativo, e este é a "voz do povo" o "estupro marital".

 

Exercício regular de direito. Marido que fere levemente a esposa, ao constrangê-la à prática de conjunção carnal normal. Recusa injusta da mesma, alegando cansaço. Absolvição mantida. Declaração de voto. (...) A cópula intra matrimonium é dever recíproco dos cônjuges e aquele que usa de força física contra o outro, a quem não socorre escusa razoável (verbi gratia, moléstia, inclusive venérea, ou cópula contra a natureza) tem por si a excludente da criminalidade prevista no art. 19, n. III (art. 23, III, vigente), do Código Penal, exercício regular de direito (TJGB RT, 461/444). (1)

 

"Conjunção carnal normal" é: a mulher de família faz abdução de suas coxas para o marido penetrá-la, com o seu corpo cavernoso.

A mulher brasileira, estuprada pelo seu marido, grávida deve, por coação, ficar. Ela, por amor ao feto suspeita de ser o nascituro do gênero feminino , resolveu abortar. Por quê? Para a grávida estuprada, a dor física, pelo estupro, a dor emocional de ter que ser estuprada pelo próprio marido quando este é juridicamente defendido pelo Estado. Podemos considerar, então, uma cultura do estupro. Das dores, a grávida não quer o mesmo para o nascituro. Ora, é possível conceber que um povo seja escravizado por outro? É possível conceber que o povo conquistado tenha "paciência" diante do povo conquistador que estupra as mulheres do povo vencido? É também possível pensar que Deus, seja lá de qual religião for, condene os homicídios do povo vencedor por parte do povo conquistado? Estamos analisando o valor da vida. Se a vida é um fim em si mesmo, não há possibilidade de estupro, de homicídio etc. Porém, por legítima defesa, é possível matar. Logo, a vida não é um "bem supremo", mas "direito subjetivo". Tanto no Direito quanto no Direito Divino, a vida não é "suprema", dependendo das circunstâncias.

Diante disso, o aborto em caso de estupro é justificado? Cediço é a relativização do gênero feminino na História. Não muito longínquo, juízes perguntavam se as mulheres estupradas não fizeram forças suficientes para manterem suas coxas juntas; a mulher estuprada era vista como culpada pelo ocorrido seja pela indumentária indecente, por andar numa rua mal iluminada. No entanto, a sua resistência ao "crédito do estupro marital" era uma violação contra o marido, contra os "bons costumes", a instituição da "boa família". Os sofrimentos emocionais das mulheres estupradas ao longo de suas existências físicas serviam, e ainda servem, ao "bem maior": pátria; instituição familiar; religião.

Hodiernamente, os direitos sociais, econômicos e culturais. Segundo literatura na área da ciência que estuda e trata dos processos mentais e emocionais, a mulher estuprada tem um sofrimento emocional perturbador para a sua própria saúde, principalmente para o nascituro. Há de ter acompanhamento profissional desta área no decorrer da gestação.

Uma mulher quando é estuprada:

  • O medo de doença sexualmente transmissível;
  • O medo de ser assassinada para não poder prestar queixa crime.

Após o estupro:

  • A vergonha perante uma sociedade cuja mentalidade é culpar sempre a mulher, por sua roupa, por seu modo de gesticular etc.;
  • A hercúlea tarefa de, infelizmente, ter que ver os olhos dos julgadores da área de saúde, não todos, felizmente. Olhos julgadores: o nascituro tem mais valor que a dor da mulher estuprada;
  • A dolorosa vivência com juízes, homens ou mulheres, questionadores da dignidade da estuprada seja ela ser "mulher da vida" (prostituta) ou ser uma "mulher libertina".

Por mais que habilidosos psicólogos e psicanalistas consigam reforçar o superego, atualizando-o com a nova ideologia (direitos humanos) a mulher é digna em si, não é a roupa e muito menos o comportamento da mulher os causadores para o estupro; é justificável a libido descontrolada do homem? , se há na cultura, em quase a sua totalidade, os olhos julgadores contra a mulher estuprada, por ser a estuprada culpada, qual o grau de sofrimento deve suportar para o utilitarismo?

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E quanto à Lei Sagrada? Se um povo oprimido é concedido, por Lei Sagrada, defender-se de seus opressores, por estes causarem sofrimentos contínuos, a mulher grávida também deve ter o direito de abortar quando estuprada. Quem vai mensurar a dor da estuprada? Soma-se a dor emocional com a dor da miséria. Miséria num país de exportações de grãos, de bovinos, mas a maioria do povo passa fome. Tanto a mãe quanto o nascituro sofrem. O nascituro já é violentado em sua dignidade. E a miséria da "virtude do egoísmo" impera desde 1500, apesar de alguns avanços na segurança alimentar. O nascituro é desprezado pela "boa sociedade". Dependendo de sua sexualidade, se LGBT+, a sua existência, num país de homofóbicos, sejam fundamentalistas religiosos ou neonazistas, será amarga. Ou o homicídio em nome da Lei Sagrada é "justificável".

O que importa é o não abortar. Depois, que Deus ajude. A não ser que infrinja alguma lei fundamentalista religiosa. Os fiéis, implacavelmente, caçarão os pecadores. Por tudo dito, o aborto deve ser justificável. Se, pelo menos, a mulher estuprada tivesse o entendimento cultural de que a estuprada é vítima, não causadora, se houvesse, realmente, ajuda financeira para a estuprada não se importar com o estado nutricional do nascituro, e possíveis sequelas pela escassez de nutrientes necessário para a formação embrionária, talvez, a dor da estuprada poderia ser minimizada.

"Talvez", pois, se considerarmos a dor como "tudo igual", um cálculo utilitarista pode ser aplicado. Do cálculo, é possível considerar o dano moral universal, isto é, qualquer violação da dignidade humana terá a mesma indenização.

Podemos considerar como "injusto", o aborto por motivos puramente egoísticos. A mulher que aborta para não ter sua silhueta modificada pela gravidez. Será? Modelo mulher não pode desfilar, por não ter medidas corretas. Mulher, não modelo, quando grávida, o risco de perder emprego, por não ser "produtiva" e "causar prejuízos" na empresa.

É possível justificar o aborto diante do que expus? Quando as mulheres forem reconhecidas como seres humanos também com dignidade, possivelmente, os estupros diminuirão, drasticamente, a violência pelo estupro marital também. Haverá liberdade para a mulher grávida decidir. Não há como falar em "liberdade" de escolha quando a miséria está presente, os sofrimentos são sentidos pela grávida e pelo nascituro, num país de miseráveis e famintos com produções enormes de grãos etc. As atletas fazem abortos por pressões. Patrocinadores querem resultados positivos. Ainda que não as obriguem, diretamente, ao aborto, há pressões sobre os ótimos resultados. Enfim, a mulher é uma propriedade, do Céu e da Terra.

 

NOTAS:

(1) ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Manual de direito penal / Ricardo Antonio Andreucci. 10. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2014

(2)   NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional / Flávio Martins Alves Nunes Júnior. 3. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

(3)   BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo : os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. 7. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

 

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

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