"Entre Realidades" e a questão da imputabilidade: uma interface entre Psicologia e Direito

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O presente trabalho trata de forma objetiva a relação entre a obra cinematográfica "Entre Realidades", a Psicologia e o Direito.

"Entre Realidades" é um filme de drama psicológico americano de 2020. Sarah (Alison Brie) é uma mulher socialmente desairosa, gosta de arte e artesanato trabalhando, inclusive, em uma loja de artesanato cavalos e uma série de crimes sobrenaturais. Repentinamente, percebe que seus sonhos são quase a realidade e a partir daí se pergunta o que é realidade e o que é ilusão, pelo fim do filme, devido os diversos acontecimentos inexplicáveis racionalmente, Sarah acredita que está sendo abduzida por alienígenas.

O filme conversa sobre o subconsciente humano e mostra sua influência sobre o cotidiano de quem sofre de algum transtorno mental. É estrelado por Alison Brie, Debby Ryan, John Reynolds, Molly Shannon, John Ortiz e Paul Reiser. O longa tem duração de 1h44min e está disponível na plataforma de streaming Netflix.

A obra cinematográfica trata de temas que são trabalhados por Eagleman em sua obra Incógnito: As vidas secretas do cérebro. Subjetivação, consciente e inconsciente, imputabilidade (que além de Eagleman, é abordado por Thays Clara em seu artigo A definição da imputabilidade no Direito Penal Brasileiro), livre-arbítrio, são exemplos dos temas abordados pelo autor. Ademais, situações hipotéticas que podem ser criadas e contextualizadas com a obra Psicologia Jurídica de José Osmir Fiorelli e Rosana C. R. Mangini.

Conforme será evidenciado ao longo deste trabalho, a escolha do filme em relação à temática abordada se dá pela personagem principal da trama, as características psicológicas (a complexidade do psicológico), as características sociais, a enfermidade que a protagonista apresenta e a sua não aceitação são pontos intrigantes para a compreensão da subjetividade da personagem, levando-nos como citado anteriormente, à criação de casos hipotéticos que poderiam acontecer no dia a dia jurídico.

A partir do filme fica claro de que maneira as subjetivações humanas constroem a pessoa e, ainda, de que maneira essas influenciam na produção do comportamento e, a partir da problematização, de que maneira pode-se estabelecer conexões com o direito penal e a questão da imputabilidade.

A Questão da Subjetivação

Entende-se subjetividade como um processo no qual o sujeito se apresenta como resultado da convergência de vetores de produção que ganha forma ao se conectar a múltiplos elementos como as relações familiares, a mídia, a cultura, a arte, a violência social, entre outros (GUATARRI, 2000 apud PARPINELLI; FERNANDES, 2011).

Os modos de subjetivação referem-se às práticas pelas quais os sujeitos se formam [...] (FOUCAULT, 1985 apud PARPINELLI; FERNANDES, 2011).

Em uma primeira aproximação pode-se entender a subjetivação como uma descoberta do sujeito psicológico. Conforme esclarecido por FILHO e MARTINS (2008):

Mas, tratar do nascimento de um sujeito nos domínios da Psicologia implica falar da sua colocação como objeto para um discurso científico socialmente autorizado a enunciar verdades a respeito de instâncias psicológicas que compõem este sujeito: o psiquismo, a cognição, a mente, a consciência, a identidade, o self; mas também, as percepções, as interpretações, e uma certa dimensão "intrapsíquica", das emoções, do desejo, do inconsciente, o reino da subjetividade. Implica, portanto, enunciar o psicológico objetivando tais instâncias: construindo-as como realidades psíquicas [...].

A subjetivação está relacionada com a construção da pessoa da protagonista da obra cinematográfica, o seu psiquismo, a forma que ela pensa sobre si e sobre os outros, a consciência, a questão da identidade que ao longo do filme percebe-se em crise do seu inconsciente em interface com os fatos vivenciados durante a sua infância e juventude, por exemplo, a morte de sua mãe vítima de depressão e de que maneira o seu inconsciente associa o barulho de água caindo do chuveiro a esse evento.

Esclarece EAGLEMAN (2012, p. 21):

Freud percebeu que era frequente entre seus pacientes que não houvesse nada de óbvio em sua mente consciente impelindo o comportamento, e, assim, dada a nova visão do cérebro como máquina, conclui que devia haver causas subjacentes e ocultas [...].

A esta altura questiona-se de que maneira podemos estabelecer relações entre o filme, a Psicologia e o Direito. De maneira sucinta, ao longo e ao fim do filme conclui-se que a protagonista (Sarah) sofre de esquizofrenia, é nítido suas alucinações, psicose, delírios etc. Utilizando a psicopatologia de Sarah podemos criar um caso hipotético de uma pessoa que cometa um crime e que sofra da mesma doença, essa pessoa é responsável pelo crime? Deve-se atribuir a culpa? A questão a ser tratada é a da imputabilidade do indivíduo. A seguir, a problemática será desenvolvida.

Psicopatologias e a Imputabilidade Afinal, de quem é a culpa?

A partir de um estudo sistemático do comportamento, das subjetivações e das manifestações de ordem somática consideradas anormais surge o entendimento das psicopatologias.

Como citado anteriormente a problemática que envolve o filme, a Psicologia e o Direito se concentra na criação de um caso hipotético em que uma pessoa que sofra, especificamente, de esquizofrenia cometa um crime e, a partir desse fato compreender se aquela é imputável ou não.

A priori, deve-se compreender o que é a esquizofrenia. Segundo TAMMINGA (2020):

A esquizofrenia é um transtorno mental caracterizado pela perda de contato com a realidade (psicose), alucinações (é comum ouvir vozes), falsas convicções (delírios), pensamento e comportamento anômalo, redução das demonstrações de emoções, diminuição da motivação, uma piora na função mental (cognição) e problemas no desempenho diário, incluindo no âmbito profissional, social, relacionamentos e autocuidado.

Contextualizando, ainda, FIORELLI e MANGINI (2021, p. 106) descrevem a esquizofrenia como:

Distorção fundamental e característica do pensamento e da percepção, acompanhada de afeto inadequado ou embotado. São comuns: a) Os delírios de controle, influência ou passividade e de outros tipos, não adequados culturalmente; e b) as alucinações auditivas e de outras modalidades.

Assim, levanta-se o questionamento: É imputável um indivíduo que sofra de esquizofrenia?

A imputabilidade, grosso modo, refere-se ao fato de atribuir algo a alguém.

Reale, entende como ser imputável o agente que, no momento da ação, possuía capacidade de entendimento ético jurídico e de autodeterminação, e será inimputável, aquele que ao tempo da ação, em razão de enfermidade mental, não tinha essa capacidade de entendimento e de autodeterminação (REALE, 2013 apud CLARA, 2019, p. 2). 

Segundo FIORELLI e MANGINI (op. cit. p. 84), a capacidade de atribuir a responsabilidade de alguma contravenção penal está ligada legalmente com aspectos objetivos e subjetivos, sendo os subjetivos de maior interesse para a Psicologia Jurídica.

Juridicamente falando o Código Penal legisla a respeito da capacidade/responsabilização de pessoas que sofrem com transtorno mental, conforme o Art. 26:

Inimputáveis

Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento.

Redução de pena

Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Sob essa óptica, entra em cena um importante agente, o psicólogo. É de extrema importância que o psicólogo consiga distinguir a realidade objetiva da realidade psíquica (que é individual). Cabe, portanto, uma análise cuidadosa de cada caso, é necessário a participação direta e um gigantesco empenho da perícia psicológica para o conhecimento do indivíduo, de sua subjetivação e para a aferição da capacidade de discernimento e autodeterminação durante o fato delituoso. Principalmente, quando se trata da esquizofrenia, haja vista que esta passa por uma fase de latência até o aparecimento claro dos sintomas. Todo esse tempo deve ser levado em conta para compreender o que levou o sujeito a cometer o crime, o que o motivou.

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Ademais, a participação do perito auxilia o juiz a tomar a decisão mais apropriada.

A tomada de decisão é um desafio. Segundo FIORELLI e MANGINI (op. cit. p. 134),

o examinar compreende um confronto de linguagens e pensamentos entre o que pergunta e o que responde.

Exige-se uma técnica, um componente metodológico para retirar qualquer conteúdo que fundamente a interpretação judicial, haja vista toda a influência emocional, social e do próprio conteúdo intrapsíquico.

Nessa perspectiva, reafirma-se a importância da investigação do indivíduo, da sua subjetivação, das suas possíveis psicopatologias e de suas motivações. No trecho a seguir, EAGLEMAN (op. cit. p. 147; p. 150), deixa claro que possuímos uma maquinaria oculta, complexa, que levanta questionamentos de até que ponto possuímos um livre-arbítrio e sobre esse que o psicólogo, deve olhar em uma perícia.

A mudança da culpa para a ciência reflete a compreensão que hoje temos de que nossas percepções e comportamentos são controlados por sub-rotinas inacessíveis que podem ser facilmente perturbadas [...] O cerne do problema é que não faz mais sentido perguntar: Até que ponto foi por sua biologia e até que ponto foi ele? A questão não faz mais sentido porque agora compreendemos que ambas são a mesma coisa. Não há uma distinção significativa entre a biologia e a tomada de decisão de uma pessoa.

Dessa forma, deve-se levar em consideração que aqueles constatados portadores de distúrbios psíquicos impeditivos de compreensão e discernimento sobre o ato praticado podem sofrer danos futuros aos mais diversos campos em caso da pena de encarceramento.

É sabido que o fenômeno encarceramento pode degradar a personalidade do detento.

Prefere-se, assim, optar pela não culpabilidade/responsabilidade penal do sujeito, seja pela inimputabilidade ou seja pela semi-imputabilidade. Em função deste entendimento, destina-se a esses indivíduos medidas de segurança (internação ou tratamento).

A Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 dispõe em seu Artigo 3º que:

É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.

Um bom exemplo de instituição são os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial).

Considerações Finais

Conclui-se, portanto, que a observação da subjetividade da pessoa é de extrema importância para conhecer as características daquele sujeito. Aplicando ao Direito, tal observação fortifica-se ainda mais assumindo a possibilidade de haver casos que necessitem de uma perícia psicológica para o auxílio na decisão tomada pelo juiz, casos esses muitas vezes relacionados a psicopatologias que alterem de maneira significativa a personalidade da pessoa, dificultando o entendimento de aplicação da imputabilidade, por exemplo.

[...] a maior parte do que fazemos e sentimos não está sob nosso controle consciente. [...] O você consciente o eu que ganha vida quando você acorda pela manhã é a menor parte do que se revela de seu cérebro (EAGLEMAN, op. cit. p. 11).

O filme "Entre Realidades" evidencia de que maneira devemos olhar para os outros e a tamanha complexidade do que chamamos de mente. A criação do caso hipotético pela problemática ratifica o que foi exposto.


Referências Bibliográficas

ELLI EAGLEMAN, David. Incógnito: As vidas Secretas do Cérebro. 1. ed. Trad. de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

CLARA, Thays. A definição da imputabilidade no Direito Penal Brasileiro. Jusbrasil.com.br. 9 dez. 2019. Disponível em: https://thaysclara.jusbrasil.com.br/artigos/537150848/a-definicao-da-imputabilidade-no-direito-penal-brasileiro. Acesso em: 13 jun. 2022.

FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana C. R. Psicologia Jurídica. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2021.

PARPINELLI, Roberta Stubs; FERNANDES, Saulo Luders. Subjetivação e Psicologia: Dualidades em Questão. Scielo Brasil. 10 mai. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/fractal/a/qmd8RSN9whYKpxJmqW74W3L/?lang=pt. Acesso em: 20 jun. 2022.

FILHO, Kleber Prado; MARTINS, Simone. A Subjetividade como Objeto da(s) Psicologia(s). Scielo Brasil. 28 jan. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/NJYycJNvX58WS7RHRssSjjH/?lang=pt. Acesso em: 20 jun. 2022.

TAMMINGA, Carol. Esquizofrenia e Transtornos Relacionados. Manual MSD. mai. 2020. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-de-sa%C3%BAde-mental/esquizofrenia-e-transtornos-relacionados/esquizofrenia. Acesso em: 21 jun. 2022.

COSTA, Renato Peixoto. Esquizofrenia e Responsabilidade Penal: Inimputabilidade, Semi-Imputabilidade e Possibilidade de Intervenção Estatal. Monografias Brasil Escola. Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/psicologia/esquizofrenia-e-responsabilidade-penal-inimputabilidade-semi-imputabilidade-e-possibilidades-de-intervencao-estatal.htm#indice_14. Acesso em: 21 jun. 2022.

BRASIL. Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e dá outras providências. Código Penal. Diário Oficial da União. Brasília, 11 jul. 1984.

BRASIL. Lei 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. Brasília, 6 abr. 2001.

Sobre o autor
Paulo Henrique Dantas Albuquerque

Discente do 1º período do curso de Direito do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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