Antes de ser definida nos tribunais superiores e na lei, a natureza jurídica da Multipropriedade Imobiliária ou time-sharing constituiu-se em aspecto de forte divergência doutrinária. O instituto diz respeito ao direito perpétuo e dotado de periodicidade de uso e fruição da propriedade. Ou ainda, conforme o artigo do 1.358-C, caput, Código Civil:
Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um
mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de
uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos
proprietários de forma alternada. (Brasil, 2018).
Assim, a multipropriedade diz respeito, por exemplo, à divisão de um chalé na praia em 52 semanas anuais de uso, sendo cada parte adquirida por um indivíduo. Com isso, cada um dos multiproprietários possui o direito de na sua semana usar e gozar do chalé, devendo se ausentar dele quando for esgotado o seu período de posse, podendo retornar no ano seguinte em igual época.
Nesse contexto, a doutrina divergia de maneira que, por um lado, alguns defendiam tratar-se de direito obrigacional. Por isso, não se revestiria o instituto das prerrogativas dos direitos reais. Sendo possível, por exemplo, penhorar um imóvel, sob o regime de time sharing, de seu suposto proprietário, independentemente de direitos de terceiros decorrentes da multipropriedade. Por outro lado, havia também o ponto de vista de que se tratava a multipropriedade de direito real, o que impediria qualquer penhora integral sobre imóvel submetido a esse regime, em razão de dívida contraída por apenas um dos multiproprietários.
À vista disso, chegou ao STJ o recurso especial 1.546.165, no qual se debatia exatamente a questão de o time sharing se tratar de direito obrigacional ou real. No caso em questão, um condomínio havia movido execução perante a totalidade de um imóvel, em virtude de dívida condominial contraída por Jorge Karam Incorporações e Negócios LTDA. Ocorre que o imóvel estava sob o regime de time sharing, o que fez que terceiros os quais não tinham relação imediata com a dívida fossem atingidos pela execução. Em razão disso, a Magnus Landmann Consultoria Empresarial S.C LTDA detentora de uma fração de 2/52 avos (2 semanas no decorrer do ano) do imóvel foi à justiça alegar que a execução não poderia ser contra ela oposta já que a sua parcela de propriedade se revestia de caráter de direito real. Ao chegar o caso para o juiz de primeira instância, ele considerou que a penhora poderia, sim, ser feita, porquanto a multiprorpiedade seria pertencente ao âmbito dos direitos obrigacionais. Em secunda instância, a apelação não foi provida; chegando-se, por último, a questão para o STJ.
No julgamento, o primeiro a votar foi o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (relator). O magistrado iniciou seu voto debruçando-se sobre a alegação de que teria havido revelia no caso. No entanto, como a questão principal do caso era a da natureza jurídica da multipropriedade, a qual se caracteriza por ser matéria de direito, não incidiria a revelia, visto que essa somente produz efeito sobre matéria de fato. Prosseguindo em seu voto e passando a se ater ao instituto da multipropriedade, o ministro tratou de sua origem francesa, de sua expansão para outros países e como é divergente nos ordenamentos alienígenas a tratativa da natureza jurídica da multipropriedade havendo nações, como França e Inglaterra, as quais a consideram ser direito obrigacional e outras, como Áustria, Portugal e Espanha, os quais veem nela um direito real.
Diante do exposto, iniciou-se uma análise acerca das distinções entre esse instituto e os direitos reais. Nessa perspectiva, é citado que, opostamente ao que ocorre com os direitos reais: as faculdades de gozo, uso e disposição são temporalmente limitadas; há impossibilidade de fazer qualquer modificação no bem, nem ainda a título de benfeitoria; o bem é dotado de destinação (turismo, por exemplo), impossibilitando o proprietário de utilizá-lo para fim diverso do preestabelecido. Além de diferenças como essas, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva expõe o fato de os direitos reais serem numerus clausus no direito brasileiro. Com isso, quer-se dizer que o rol de direitos reais é fechado e taxativamente previsto em lei.
A esse respeito, o ministro relator, partindo daquilo que cunhou Frederico Henrique Viegas de Lima, justificou que não é sem razão serem eles assim caracterizados. Ou melhor, serem numerus clausus constitui-se em garantia aos particulares. Isso se deve ao fato de permitir que eles conheçam previamente sobre quais bens incidem as características dos direitos reais, impedindo o aumento desmedido desse rol de direitos, já que isso ocasionaria insegurança jurídica. À vista disso, concluiu o relator que diante da inviabilidade de criação de um novo direito real por convenção privada, inafastável a conclusão de que o contrato de time-sharing possui a natureza jurídica de direito pessoal (STJ, 2016, online). Portanto, não haveria óbice à penhora da totalidade do imóvel sujeito ao regime de time sharing.
Contrariamente ao que havia proposto o relator, o voto-vista do Ministro João Otávio de Noronha vencedor caminhou no sentido de conferir ao instituto a natureza jurídica de direito real. Em suas palavras:
Isso porque, extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais,
a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos,
detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for a sua própria expressão,
como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não
se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da
preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.
(STJ, 2016, online).
Em sua argumentação, o ministro expôs não haver, em sua visão, inviabilidade
alguma em se dotar o time sharing da natureza de direito real. Assim, ressaltou que
com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a
um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel,
detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que
objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de
tempo. (STJ, 2016, online).
Além disso, pontuou-se que não há vedação legal a se atribuir a qualidade de direitos reais a novas situações jurídicas não regulamentadas.
Dessa maneira, o STJ nos termos do voto do Ministro João Otávio de Noronha deu provimento ao recurso especial e retificou o acórdão da segunda instância, considerando ser, cada titular de parcela de multipropriedade, titular de direito real. Por isso, não seria possível se penhorar a totalidade de um imóvel sob o regime de multipropriedade, em razão de dívida de apenas um dos multiproprietários.
É possível observar que um dos pontos fulcrais nesse julgamento é a questão dos numerus clausus dos direitos das coisas. Diante disso, nota-se que muito bem andou a corte em mitigar a taxatividade desses direitos, haja vista dever-se coadunar esse ramo jurídico com o princípio da autonomia da vontade, o qual vem se fortalecendo cada vez mais no ordenamento jurídico brasileiro.
Ou seja, com a cada vez mais veloz evolução das relações mercantis e o surgimento, por exemplo, de novas formas de se lidar com os negócios imobiliários, não é viável a limitação dos direitos reais aos que estão previstos legalmente. Isso se consubstanciaria em entrave ao avanço econômico e à liberdade comercial, impedindo o avanço do mercado de bens, como o time sharing, por ausência de devida proteção legal. Assim, deve ser possível a criação de novos direitos reais, desde que não se contrariem normas cogentes e se esteja de acordo com o ordenamento jurídico pátrio. Exemplo disso, é a questão do time sharing, o qual se originou de mutações na maneira de lidar com o mercado imobiliário e, conquanto se pudesse a princípio enquadrá-lo nos direitos reais, não o era por ausência de previsão legal expressa. Em síntese, deve-se dar uma maior valoração à autonomia da vontade frente aos numerus clausus dos direitos das coisas e permitir, dentro de certos limites, a criação de direitos reais não expressos em lei. Nesse diapasão, tem-se o que cunhou Flávio Tartuce:
A influência da autonomia privada para o Direito das Coisas, do mesmo
modo, pode trazer a conclusão de que o rol constante do art. 1.225 do
CC/2002 não é taxativo, mas exemplificativo, eis que a vontade humana
pode criar novos direitos reais. Isso está de acordo com o próprio espírito
da atual codificação privada, que adota um sistema aberto, baseado em
cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados, o que fundamenta o
princípio da operabilidade, na busca de um Direito Civil mais concreto e
efetivo. (TARTUCE, 2021, p. 1484).
Com o intuito de disciplinar essa matéria, o Congresso Nacional instituiu a Lei nº 13.777 de 2018, a qual inseriu no Código Civil os artigos 1.358-B a 1.358-U, além de alterações na lei de registros públicos. A legislação abrangeu somente a multipropriedade imobiliária, deixando para posteriores legislações apreciar aquilo que diz respeito à mobiliária. Desse modo, no Código civil foram colocadas: disposições gerais (artigos 1.358-B a 1.358-E), tais como a definição do instituto e o prazo mínimo de 7 dias para cada fração de multipropriedade; normas a respeito da instituição da multipropriedade (artigos 1.358-F a 1.358-H), tais como a necessidadede inscrição em cartório de registro de imóveis, além de uma série de faculdades deixadas para serem decididas a partir da autonomia da vontade; uma série de direitos e obrigações do multiproprietário, fora os previstos na convenção de condomínio em multipropriedade ou no instrumento de instituição (artigos 1.358-I a 1.358-K); um artigo, a dizer o 1.358-L, tratando da transferência do time sharing; os artigos 1.358-M e 1.358-N, disciplinando a administração da multiprorpiedade e, por último, a disposição de que mesmo um condomínio edilício poderá adotar o regime de multipropriedade em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas, a teor dos arts. 1.358-O a 1.358-U (GAGLIANO, 2020, p.1666).
Nesse sentido nota-se o esforço do legislador em melhor disciplinar o instituto ora em apreço, haja vista sua indubitável relevância pelo fato tornar possível incentivar a economia pois permite a pessoas de classes menos abastadas a realização de investimento com menor custo e o turismo porquanto tem especial aplicação em empreendimentos como flats e hotéis (GAGLIANO, 2020, p.1665). Assim, avançou a lei em relação ao julgado do STJ, o qual corretamente não se dispôs a disciplinar o time sharing, o que se constituiria em indevido exercício de atividade legislativa e feriria os princípios da separação dos poderes, da inércia e o da congruência ou adstrição.
Não obstante a disciplina legislativa da multipropriedade imobiliária ter sido mais minuciosa do que a judicial, fato é que a lei teve como ponto de partida aquilo que decidiu o STJ. Isto é, o legislativo atento à decisão que colocou ter o time sharing a natureza de direito real, já no segundo artigo que trata do tema no Código Civil, expôs que: cada um dos que adquirem uma fração de tempo para uso do imóvel são proprietários de um igual imóvel. Logo, titulares de um direito real. Destarte, tanto o STJ no REsp 1546165, quanto o Congresso Nacional na lei 13.777 de 2018 colaboraram para a melhor compreensão e disciplina do instituto da multipropriedade no direito brasileiro. Afastando-se, assim, incertezas decorrentes de insegurança jurídica e promovendo um ambiente mais adequado para este nicho do mercado imobiliário.
Por fim, vale ressaltar que a matéria ainda não está plenamente clara, ainda necessitando-se de leis posteriores para uma melhor compreensão do tema. Ou ainda, nas palavras de Flávio Tartuce: parece-me que o legislador pecou por falta de técnica e a regulamentação legislativa traz muitas dúvidas e poucas soluções, o que deve repercutir diretamente na prática (TARTUCE, 2021, p. 1806). Justificando essa crítica, o autor aponta para o fato de a legislação ter focado no time sharing profissional e relegado o amador, em que, por exemplo, conhecidos adquirem juntos um imóvel para usarem (e não para fins comerciais). No entanto, apesar das eventuais falhas e atecnias, é inegável que, em relação à época anterior ao julgado do STJ, teve-se um enorme avanço da disciplina dessa modalidade de comércio, o que sem dúvida contribuiu para uma maior segurança jurídica dos particulares e, por conseguinte, para avanços no comércio.
Referências bibliográficas:
- TARTUCE , Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 11ª edição. Rio de
Janeiro: Forense; Método. 2021.
- GAGLIANO, Pablo; FILHO, Pamplona. Manual de Direito Civil: volume único.
4ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
- Brasil. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código
Civil. Brasília, DF. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em:
31 de outubro de 2021.
- BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1546165/SP.
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO.
MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-SHARING). NATUREZA JURÍDICA DE
DIREITO REAL. UNIDADES FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO
DURANTE CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO MULTIPROPRIETÁRIO.
PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
Relator: Ministro João Otávio de Noronha. DJe 06/09/2016. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201403082061
&dt_publicacao=06/09/2016. Acesso em: 31 de outubro de 2021.