SUMÁRIO
Introdução.........
1 Da Propriedade Rural e Suas Limitações...........
1.1 Do direito de propriedade em geral.......
1.1.1 Das características da propriedade em geral.......
1.1.2 Das limitações da propriedade em geral......
1.2 Da propriedade rural............
1.2.1 Breve histórico da função social da terra.......
1.2.2 Requisitos para o cumprimento da função social da terra...
2 O bem Estar do Trabalhador Rural.......
2.1 Conceitos e considerações iniciais....
2.2 Disposições legais e mecanismos para garantia do bem estar social do trabalhador rural....
3 Desapropriação Para Fins de Reforma Agrária...
3.1 Considerações iniciais sobre a reforma agrária...
3.1.1 Características da reforma agrária....
3.1.2 Órgão responsável pela reforma agrária..
3.1.3 As formas de implantação da reforma agrária..
3.2 Desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária...
3.2.1 Natureza jurídica, classificações e fins..
3.3 Ação de desapropriação para fins de reforma agrária..
3.3.1 Imóveis insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária..
3.3.2 Procedimento administrativo...
3.3.3 Procedimento judicial...
3.3.4 O inciso IV do artigo 186 da Constituição Federal e sua aplicação prática.
Considerações Finais.....
Referências....
RESUMO
O presente estudo cujo tema é o bem estar social do trabalhador rural e a função social da terra versus a desapropriação par fins de reforma agrária, procurou responder ao seguinte problema: o bem estar do trabalhador rural é elemento efetivamente influenciador para desapropriação para fins de reforma agrária? A relevância deste estudo justifica-se em função da necessidade de se analisar o direito agrário e a lacuna deixada pelo legislador ao estabelecer o bem estar do trabalhador rural com requisito para o cumprimento da função social, sem estabelecer os critérios objetivos que esse bem estar deve apresentar. O bem estar social ou especificamente o bem estar do trabalhador rural é uma questão amplamente subjetiva e não comporta qualquer interpretação elucidativa, haja vista o tamanho da abrangência do assunto. Não se pode mensurar, sem um estudo aprofundado e criterioso, o bem estar de um indivíduo sem que nesse processo de mensuração ou avaliação fique um elemento importante de fora. Com isso, discute-se a inconsistência jurídica do inciso IV, do artigo 186, da Constituição Federal, ante a amplitude do conceito de bem estar, que por sua maioria depende de fatores indiferente às obrigações do empregador rural. O objetivo do legislador foi justo e importante ao configurar que a propriedade rural somente compreenderá a função social da terra, se cumprido todos os requisitos dispostos no artigo 186 da Carta Magna, quais, sejam, a produtividade, combinado com o uso racional da terra e a preservação do meio ambiente e seus recursos naturais, a observância das leis de trabalho e relações justas de trabalho, e o objeto desta pesquisa, o bem estar do empregado e do trabalhador rural. Diante disso, foram analisadas as disposições do texto Constitucional e as legislações trabalhistas e as disposições no âmbito agrário para o cumprimento da função social da propriedade rural, inclusive levantada à hipótese de antinomia jurídica entre o inciso II do artigo 185 e o artigo 184 da CF/88, analisando se os princípios intrínsecos e extrínsecos na Carta Magna estão sendo de fato analisados e aplicados dentre o ordenamento jurídico. Através do método hipotético-dedutivo, foram analisadas doutrinas correlatas de Direito Constitucional, Agrário, Civil, Processo Civil e Administrativo.
Palavras chave: Desapropriação. Bem estar. Função Social. Reforma agrária.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa, cujo tema é o bem estar social do trabalhador rural e a função social da propriedade rural versus a desapropriação para fins de reforma agrária, e procurou responder ao seguinte problema: o bem estar do trabalhador rural é elemento efetivamente influenciador para desapropriação para fins de reforma agrária?
A relevância deste estudo justifica-se em função da necessidade de se analisar o direito agrário e a lacuna deixada pelo legislador ao estabelecer o bem estar do trabalhador rural com requisito para o cumprimento da função social, sem estabelecer os critérios objetivos que esse bem estar deve apresentar.
Assim sendo, a possível hipótese para explicar ou solucionar este problema vem do fato de que o bem estar social ou especificamente o bem estar do trabalhador rural é uma questão amplamente subjetiva e não comporta qualquer interpretação elucidativa, haja vista o tamanho da abrangência do assusto. Não se pode mensurar, sem um estudo aprofundado e criterioso, o bem estar de um indivíduo sem que nesse processo de mensuração ou avaliação fique um elemento importante de fora.
Com isso, é notória a inconsistência jurídica do inciso IV, do artigo 186, da Constituição Federal, ante a amplitude do conceito de bem estar, que por sua maioria depende de fatores indiferentes às obrigações do empregador rural. O objetivo do legislador foi justo e importante ao configurar que a propriedade rural somente compreenderá a função social da terra, se cumprido todos os requisitos dispostos no artigo 186 da Carta Magna.
A pesquisa teve como foco o trabalhador rural, não sendo abordada a subjetividade do bem estar do proprietário de imóvel rural, visto ser esta uma seara mais objetiva e com elementos próprios e de melhor constatação, haja vista a condição superior que o proprietário exerce em relação ao trabalhador.
Desta forma, o objetivo geral deste estudo é identificar o bem estar do trabalhador rural e a sua influência no cumprimento da função social da terra, sendo buscado mais especificamente nas seguintes etapas: analisar a função social da terra os seus requisitos gerais; estudar a conceituação do bem estar do trabalhador no campo enquanto requisito da função social da propriedade rural; e identificar a aplicabilidade do bem estar do trabalhador rural como requisito para o cumprimento da função social da terra e sua consequente relação com a desapropriação para fins de reforma agrária.
Diante disso, foram analisadas as disposições do texto Constitucional e as legislações trabalhistas e as disposições no âmbito agrário para o cumprimento da função social da propriedade rural, analisando se os princípios intrínsecos e extrínsecos na Carta Magna estão sendo de fato analisados e aplicados dentre o ordenamento jurídico.
Durante a pesquisa, através do método hipotético dedutivo e por meio de revisão bibliográfica, foram identificadas possíveis falhas na aplicação destes princípios, sob um aspecto social e econômico, o que demonstrou certa dificuldade em fiscalizar e comprovar as situações que envolvem a condição de vida do trabalhador rural e seu bem estar enquanto cidadão, fato este que não permite maior aplicabilidade das sanções cabíveis ao sujeito descumpridor da função social da terra, no que se refere ao bem estar social e sua relação com a desapropriação para fins de reforma agrária.
No primeiro capítulo foi abordado um breve estudo sobre a propriedade em geral e suas principais características, e especificamente a propriedade rural. A propriedade em si, sofreu inúmeras mudanças de propósito durante sua evolução, destaca-se a socialização do instituto em prol do bem comum (função social da propriedade). A propriedade rural seguiu mesma linha histórica e ao passar dos anos aliou-se a solidariedade, em busca do bem estar social de toda sociedade (função social da terra), sem, contudo, deixar de lado a economicidade que se faz necessária também.
Por meio dessa união entre economicidade e solidariedade é que se foi necessário instituir certos requisitos a fim de que fosse possível verificar se a propriedade de fato passou a cumprir seu papel econômico e também social, têm-se então os requisitos para o cumprimento da função social da terra.
O bem estar do trabalhador rural é o assunto do segundo capítulo, buscando demonstrar seu conceito não só na disciplina jurídica como também em áreas afins, como a psicologia. A vida no campo pode revelar facetas que não contribuem para a dignidade da pessoa humana, como nos casos em que existem iminentes tentativas de invasão ou até mesmo nos casos em que o proprietário não cumpre as normas de segurança no trabalho. O bem estar do trabalhador rural, foco deste capítulo, quando não verificado nas propriedades rurais, é elemento que possibilita a intervenção do Estado por meio da desapropriação para fins de reforma agrária.
Um dos principais instrumentos da Reforma Agrária é a desapropriação das propriedades rurais que não estejam cumprindo sua função social. Conforme exposto anteriormente o bem estar do trabalhador rural é um requisito para que a propriedade seja não seja considerada como descumpridora da função social. No decorrer do terceiro capítulo, são demonstradas as características do instituto da desapropriação, com foco na desapropriação para fins de reforma agrária e sua aplicação prática no que se refere ao bem estar do trabalhador rural.
2 DA PROPRIEDADE RURAL E SUAS LIMITAÇÕES
A propriedade desde os tempos do homem primitivo já havia de ser condicionada ao interesse comum de seus iguais. Estudiosos da antropologia ressaltam que já na idade primitiva o homem tornou-se possuidor de uma determinada faixa de terras para que ali pudesse prover o seu sustento e o de sua família, sem, contudo, deixar de auxiliar o seu igual que não havia a mesma sorte na sustentação de seu clã [1].
A partir da análise dos estudos de Aristóteles, os doutos do estudo da propriedade registram que foi ele o primeiro a manifestar-se sobre a necessidade de uma destinação social para propriedade do homem.
Ao longo do desenvolvimento da humanidade, a propriedade privada foi substancialmente relativizada em razão dos interesses da coletividade, para que sua existência fosse justificada, uma vez que, o direito natural da propriedade era por sua natureza condicionado a satisfazer os anseios individuais como também os da comunidade em que estava inserido.
Os aspectos principais do direito de propriedade como, os direitos e deveres do proprietário, e as limitações da propriedade imóvel em geral, e especificamente da propriedade rural no sistema jurídico brasileiro atual, serão discutidos nos próximos itens.
- Do Direito de Propriedade em Geral
Durante os principais processos histórico-culturais, no mundo todo o direito de propriedade foi alvo de discussões em torno de sua característica, tendo como foco a necessidade de o Estado garantir o uso ideal da propriedade como fonte garantidora do idealismo vivido por cada época.
Salienta-se que durante cada marco histórico os interesses eram diferentes, mas, a destinação da propriedade teve discurso único: propiciar a vivência em harmonia entre os indivíduos.
No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988 o legislador preocupou-se em incluir no texto constitucional o direito a propriedade como garantia individual fundamental, incluindo tal disposição no art. 5º, inciso XXII, que diz: é garantido o direito de propriedade [2].
O Código Civil vigente não oferece uma definição certa de propriedade, limitando-se a enunciar os poderes do proprietário, conforme redação do art. 1.228: O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha [3].
Desta forma, a conceituação de propriedade remota a ideia de que a propriedade é um instituto eivado de garantias ao proprietário ensejando que sua utilização seja plena e sem intervenções particulares.
A propriedade tem alguns elementos que a definem por si só, e que quando reunidas numa pessoa, considerar-se-á o proprietário da coisa: direito de usar, gozar, dispor e reaver a coisa de quem a possua indevidamente.
- Das características da propriedade em geral
A propriedade é um direito primário ou fundamental, isto, pois, os demais direitos reais são decorrentes do direito de propriedade. Ao analisar o artigo 1.231 do Código Civil, percebe-se com clareza o objetivo do legislador em tornar a propriedade como primórdio do direito das coisas, ao dizer que a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário [4].
O proprietário que possuir todas as faculdades do direito de propriedade, estará envolto na plenitude que trata o artigo 1.231 do Diploma Civil, refletindo o absolutismo da propriedade e podendo dela extrair todas as utilidades que esteja apta a oferecer, sujeitando-se apenas a determinadas limitações impostas pelo interesse público.
Vale aqui dizer que a propriedade tem ao longo dos anos, sofrido limitações e restrições no seu caráter absoluto e ilimitado, importando na redução dos direitos do proprietário.
O segundo elemento do direito de propriedade é ser exclusivo, não podendo a mesma coisa pertencer com exclusividade a duas ou mais pessoas, não se confundindo aqui com o condomínio, em que várias pessoas possuem o domínio em conjunto da coisa, mas cada um é proprietário de sua proporção, implicando na divisão abstrata da coisa.
A propriedade também é dita como irrevogável ou perpétua, devido a não extinção pelo não uso do proprietário. Enquanto o proprietário não alienar ou enquanto não sofrer nenhum dos modos de perda previstos em lei, como a usucapião, desapropriação, etc., o proprietário continuará a exercer o direito de propriedade de forma plena.
- Das limitações da propriedade em geral
A propriedade deixou o caráter individualista do direito romano e a dualidade de sujeitos da idade média, para se tornar a alavanca para realização dos conceitos dogmáticos de justiça social, sendo fundamental estabelecer regras para que todos os indivíduos capazes de gerar riquezas o façam atendendo princípios maiores e de abrangência coletiva.
No ordenamento pátrio, a Constituição Federal estabelece em seu artigo 5º, inciso XXIII, que a propriedade deverá atender a sua função social e, ainda, que a ordem econômica observará a função social da propriedade. Tais dispositivos referem-se a uma das limitações do direito de propriedade, considerada pela maioria da doutrina como o mais importante.
No entendimento de Carlos Roberto Gonçalves, as inúmeras limitações ao direito de propriedade não podem ser consideradas de fato como impasses ao seu exercício em virtude de sua natureza se voltar ao interesse social, que nos mandamentos da atual Constituição Federal, é de responsabilidade de todos, e assim, necessárias ao estado democrático de direito, afim de que se subsistam os direitos individuais em busca de um direito maior e coletivo[5].
Parece mais conveniente falar-se, na atual concepção do direito de propriedade, não em limitações ao direito de propriedade, mas em características que contribuem para a formação dos alicerces do direito de propriedade, como se fossem componentes de sua estrutura dorsal.
Em suma, inúmeras são as limitações, ou elementos, do exercício do direito de propriedade, cita-se, o Código de Mineração, o Código Florestal, a Lei de Proteção ao Meio Ambiente etc. No entanto, se vislumbra com clareza que o objetivo final do legislador em estabelecer tais elementos ao fio de condução do direito de propriedade, é o uso racional da propriedade para que o proprietário tenha o proveito que lhe é de direito sem, contudo, prejudicar direitos alheios, ainda que difusos.
Todo esse conjunto acaba bosquejando o perfil atual do direito de propriedade, que acompanhando a atual acepção do direito moderno, deixou de apresentar as características de direito absoluto e ilimitado, para se transformar em direito de finalidade social.
1.2 Da Propriedade Rural
A propriedade rural existe desde os primórdios da humanidade, mas sua forma atual também se deu após alguns anos de eventos históricos sociais, como as Revoluções Francesa e Industrial. A Igreja Católica, como sendo a dominante de vasto império ao redor do mundo, definiu que a terra era um bem de domínio da Igreja como herança de Deus para seu povo, e com isso era ela a responsável por sua distribuição.
Entre a transição do Liberalismo para Feudalismo, a propriedade rural foi tornando-se cada vez mais objeto de egoísmos individualistas e sua principal destinação foi tornando-se mais impossível de ser atingida.
No Brasil, tem-se registrado o surgimento da propriedade rural após a edição da Lei nº 601, de 18/09/1850, a chamada Lei das Terras que instituiu no ordenamento nacional o instituto jurídico das terras devolutas e das terras de Marinha, que não são objeto deste estudo.
A partir da extinção da Lei de Sesmarias, o país ficou sem legislação sobre as terras durante um período relativamente longo, o que resultou numa desordenada legitimação de posse indevida, visto que as terras que eram ocupadas no regime sesmarial tornaram-se propriedade de indivíduos que não detinham legitimidade para possui-las, mas, que o fizeram e as tornaram produtivas.
Após o período das posses, foi editada a Lei de Terras que buscou preencher a lacuna deixada pela revogação do regime das sesmarias, instituindo mecanismos para a distribuição e legitimação das terras que foram ocupadas durante o período extralegal.
Insta salientar que a partir da promulgação da chamada Lei de Terras, o ordenamento agrário brasileiro começou a perceber os rumos sociais do direito agrário, vez que do seu texto já se lia termos para uma utilização adequada e melhor distribuição das terras. É certo que com a regulamentação dada pelo Estatuto da Terra, a aplicação da Lei de Terras começou a atender ao princípio da função social da terra que teve seus primórdios introduzidos já no sistema de sesmarias.
1.2 Da Função Social da Terra
A concepção da função social da terra no direito brasileiro não é recente, uma vez que, conforme lições do professor Benedito Ferreira Marques, os sesmeiros tinham que cumprir determinados deveres impostos pelo Governo de Portugal, como por exemplo, a obrigação de cultivar a terra, dando-lhe certo aproveitamento econômico, o que para o nobre pesquisador agrarista, era o embrião da função social da propriedade da terra[6].
Nesse sentido, observa o professor e jus-agrarista Fernando Pereira Sodero:
De fato, na concessão de sesmarias, fora determinado que se concedessem glebas em quantidade que um homem de cabedais pudesse explorar... E que se ele não a explorasse dentro de um determinado lapso de tempo, que prefixado, esta terra reverteria ao patrimônio da Ordem de Cristo, que era administrada por Portugal (...) [7].
Após o período das Sesmarias, a Coroa deixou o Brasil órfão de qualquer legislação sobre terras num período aproximado de vinte e oito anos, quando já no regime imperial, foi editada a Lei nº 601 (Lei das Terras), primeira lei sobre terras e considerada um marco no contexto legislativo agrário brasileiro.
A chamada Lei das Terras também não logrou êxito devido ao rígido sistema de fiscalização e a falta de pessoal qualificado para sua execução, sendo certo que tampouco trouxe inovação quanto a função social da terra, vindo a ocorrer com a Carta Magna de 1946 e com a Emenda Constitucional de 1964, que instituiu a previsão constitucional do Estatuo da Terra.
Somente em 1964, com a edição da Lei nº 4.504 (Estatuto da Terra), o ordenamento jurídico agrário avançou e com características peculiares, acolheu a função social da terra, passando a ser desta forma a primeira legislação latino-americana sobre reforma agrária a definir a função social da propriedade da terra e estabelecer os seus requisitos.
Contudo, somente com a chegada da Constituição Cidadã de 1988 é que a função social foi totalmente incluída no ordenamento jurídico, além de inovar e incluir a preservação do meio ambiente no rol de requisitos para atingir o seu cumprimento.
As disposições do artigo 186 da Carta Maior regulam o aparelho constitucional da função social da propriedade da terra, objeto da política de reforma agrária. Destaca-se maior atenção ao inciso IV objeto do presente estudo, que estabelece a exploração da terra visando o bem-estar do seu proprietário e de seus trabalhadores, cujo assunto será discutido no próximo capítulo.
Os requisitos gerais para o cumprimento da função social da propriedade da terra serão delineados no item a seguir, observando-se a intenção do legislador em estabelecer tais critérios como forma de garantir o efetivo cumprimento da destinação social da propriedade.
1.2.2 Requisitos para o cumprimento da função social da terra
Destaca-se que a finalidade da função social é estimular o proprietário de terras a dar produtividade a esta sem degradar o meio ambiente e os recursos naturais, de forma a respeitar as relações de trabalho e o ambiente social de seus trabalhadores e de sua família.
Assim, frisa-se que o artigo 186 da Constituição Federal de 1988 e o artigo 2º do Estatuto da Terra, fundam os requisitos que o imóvel rural deve apresentar para garantir o cumprimento da função social.
Noutro ponto, é com o advento da Lei da Reforma Agrária (Lei nº 8.629 de 25 de fevereiro de 1993), que o legislador buscou detalhar de forma objetiva e minuciosa as exigências legais para que se considere cumprida a função social da propriedade do imóvel rural.
É o que dispõe o artigo 9º do referido diploma legal, in verbis:
Art. 9º. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores[8].
Mister se faz transcrever o caput e o §1º do artigo 6º do retro mencionado dispositivo legal, que tratam da exploração eficiente do imóvel rural, ipsis verbis:
Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel (...).
A determinação do grau de eficiência escolhida pelo legislador se faz de modo a abranger delicado procedimento técnico de elevada complexidade que na prática torna-se como grande obstáculo para sua efetiva determinação.
Nas lições de Telga de Araújo é possível extrair o seguinte raciocínio em torno de tal procedimento:
Para determinação do grau de eficiência na exploração da terra, que deverá ser igual ou superior a 100%, fixa a lei procedimento bastante complexo, considerando a natureza da exploração vegetal ou animal, levando-se em conta a soma dos resultados obtidos dos incisos I e II do art. 6º, divida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100, para que se determine, afinal, o grau de eficiência na exploração [9].
Leciona o douto jus-agrarista Benedito Ferreira Marques que tais índices são os mesmos exigidos para a configuração da propriedade produtiva, a qual a Carta Magna vigente atribuiu caráter de imunidade em relação à desapropriação para fins de reforma agrária, como resultado da interpretação de seu artigo 185, inciso I, cumulado com o que preconiza o artigo 4º, parágrafo único da Lei 8.8629/93[10].
A segunda exigência, de modo a garantir a utilização adequada dos recursos naturais enquanto fonte de produtividade, estabelece ser necessária a manutenção do potencial produtivo do imóvel bem como a preservação do meio ambiente.
O terceiro requisito, por sua vez, diz respeito à observância das relações justas de trabalho tanto no âmbito dos contratos empregatícios, regidos pelas normas do direito do trabalho, como também os contratos agrários.
Destarte, as relações devem ser justas de modo a equilibrar o papel dos trabalhadores rurais como principais executores do primeiro requisito da função social, qual seja, a produtividade, que de forma alguma existiria sem a presença da mão de obra humana.
Por último, e não menos importante, o quarto requisito que trata do bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais, destacando-se que o bem-estar enunciado no texto da norma agrária é tanto as condições de trabalho quanto as suas necessidades básicas enquanto ser humano.
A exploração da terra deve observar o conjunto de normas reguladoras do trabalho e ainda respeitar o interesse social e as garantias fundamentais do indivíduo, de forma que as exigências legais examinadas devem ser cumpridas simultaneamente, de modo a observar os quatro requisitos ao mesmo tempo.
A fiscalização do cumprimento da função social é matéria de competência privativa da União, que por meio do INCRA realiza os estudos necessários para a intervenção do Estado, objetivando o melhor uso da terra, o bem comum e o interesse social.
O procedimento desapropriatório e suas peculiaridades serão discutidos nos próximos capítulos sob o enfoque de sua aplicação em consonância com o art. 186, inciso IV da CF/1988.
2 O BEM ESTAR DO TRABALHADOR RURAL
No campo dos princípios constitucionais, o da função social pode ser considerado como um dos motores de rotação do ordenamento jurídico pátrio, tendo por base o Estado Democrático de Direito e com ele o espirito de solidariedade que rege as relações jurídicas entre os indivíduos da sociedade.
Nesse contexto, sendo a dignidade humana o princípio vetor da Carta Magna, a função social da propriedade da terra é considerada como núcleo do direito agrário, e nesse sentido é o entendimento de Marés Filho:
O direito Agrário, tem, assim, como base fundante, a função social da propriedade, isto é, a luta jurídica pela implantação do princípio da Constituição de Weimar, a propriedade obriga, e daquilo que a Constituição Mexicana chamou de subordinação da propriedade o interesse comum. (...) O ideal era assim, assentado na máxima terra a quem trabalha ou nenhum trabalhador sem terra e nenhuma terra sem trabalhador.[11]
Insta acrescentar a este ponto, que no pensamento de Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira, a configuração da função social da propriedade se resume em três ópticas, a saber: (a) econômica; (b) social; e (c) ecológica. A primeira refere-se ao requisito da produtividade, ou seja, aproveitamento racional e adequado, já sumariamente analisado no capítulo anterior. A segunda abraça, a um só tempo, dois requisitos: a observância das disposições que regulam as relações de trabalho e o favorecimento do bem estarem dos proprietários e dos trabalhadores rurais. A terceira cuida dos requisitos relativos à utilização dos recursos naturais à preservação do meio ambiente[12].
No próximo item serão abordados conceitos e definições acerca do bem estar do trabalhador rural sob a ótica do direito agrário e outras disciplinas afins, levando em consideração as disposições a cerca da função social da propriedade da terra.
- Conceitos e Considerações Iniciais
Em pesquisa realizada na doutrina pátria, não foi possível encontrar definição certa acerca do dispositivo contido no inciso IV do artigo 186 da Constituição Federal. Tal dificuldade se dá inclusive pela própria redação vaga que determina que a terra deva ser explorada de forma a favorecer o bem estar dos proprietários e trabalhadores, sem, contudo, definir mecanismos ou requisitos que levem ao alcance de tal.
É sabido que a degradação do meio ambiente do trabalho é uma lástima que se arrasta durante longo tempo e que é iniciante a preocupação com a sua preservação entre os operadores do Direito no Brasil.
Dentre os estudiosos acerca da organização ocupacional e da análise do meio ambiente do trabalho, estudo realizado por doutrinadores da psicologia, é consenso que o bem estar do trabalhador é advindo do meio ambiente em que o trabalhador está inserido, devendo o meio ambiente de o trabalho ser saudável e não oferecer riscos à sua integridade física e emocional.
Tal conceito se deve em grande parte, ao fato da revolução industrial, ter alterado o modo em que se compreendia o bem-estar no ambiente de trabalho, devido a grande concentração de pessoas nas fábricas e nas cidades.
A saúde e o bem estar, assim como o direito à alimentação, à moradia ou à educação, são direitos garantidos no mundo todo, o que inclusive é previsão expressa da Constituição Federal. Nesse norte, o trabalhador também tem direito à segurança, conforto e bem-estar, não se tratando somente da segurança de estabilidade no emprego, mas também a certeza de uma melhor qualidade de vida.
O legislador constituinte pareceu permanecer eivado do sentimento de destinação social da propriedade, mas ao inserir na Carta Magna o inciso IV do artigo 186, deixou lacuna que dificulta a sua execução visto que sua redação é alvo de criticas de inúmeros doutrinadores, dentre eles, Celso Ribeiro de Bastos:
O inciso padece, sem duvida, de falta redacional, uma vez que jamais se poderia supor o bem-estar dos proprietários. Esta é tarefa que deflui naturalmente da condição de dono, presumidamente mais vantajosa que a do empregado. O que se pode dizer é que o preceito necessita de um pequeno torneamento redacional para que possa corresponder ao seu verdadeiro sentido: exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários sem prejuízo de bem-estar dos trabalhadores.[13]
José Cretella Junior já não compactua da ideia de Celso de Bastos, em sua análise, a norma discutida apresenta clareza e objetividade de grande alcance social, haja vista a determinação da exploração agrária que respeite o bem estar social de seus trabalhadores e que o Estado propicie condições favoráveis ao bem estar social dos proprietários[14].
Em suma, a doutrina majoritária concorda com a opinião de Celso Ribeiro de Bastos, em não ser possível dizer propriamente o conceito de bem estar, e tão pouco definir o conceito aplicável ao trabalhador do campo. Contudo, entende-se que por ser o nosso Estado um Estado Democrático de Direito, e, sobretudo, um estado solidário e constituído sob os alicerces da dignidade humana, o intuito do legislador ao editar a redação do inciso sob análise foi garantir que o trabalhador do campo não sofresse das mesmas mazelas que sofriam os camponeses em tempos remotos, e consequentemente fossem atendidas as suas necessidades básicas e condições dignas de moradia, almejando assim, a justiça social.
Existe em nosso ordenamento, além do próprio Texto Constitucional, dispositivos legais que buscam assegurar a segurança e o bem estar social dos proprietários e trabalhadores rurais, citando como por exemplo, a Lei da Reforma Agrária, os quais serão abordados no próximo item.
2.2 Disposições Legais e Mecanismos para Garantia do Bem Estar Social do Trabalhador Rural
Com a inserção do bem estar do trabalhador rural no rol de requisitos para o cumprimento da função social da terra, o legislador buscou garantir a permanência do homem no campo, evitando desta forma o êxodo rural que assolou os anos 70, causador de inúmeras mazelas sociais no campo e na cidade.
A importância do bem estar dos proprietários e trabalhadores rurais se dá por intermédio das mudanças que o campo pode realizar no bojo dos objetivos da República e principalmente para efetivar o principio da dignidade da pessoa humana.
Isso posto, vale dizer que a Constituição de 1988 buscou garantir de forma plena a dignidade dos trabalhadores rurais, equiparando-os aos trabalhadores urbanos e assim garantindo-lhes maiores direitos perante os seus empregadores.
Insta salientar a este ponto, o disposto no artigo 7º da CF/1988 que trata dos direitos sociais dos trabalhadores, do qual pode se extrair o entendimento de que os trabalhadores rurais são igualmente protegidos pelos princípios constitucionais trabalhistas como os trabalhadores urbanos.
Desta feita, o legislador constituinte desde logo quis demonstrar ao operador do direito a importância das relações de trabalho no campo, aplicando os dispositivos constitucionais em toda a esfera de trabalho rural, seja nas obrigações contratuais, seja na qualidade de vida do trabalhador[15].
O inciso IV do art. 186 da Carta Magna, não se iguala aos demais incisos, seja por sua característica social ou por sua difícil conceituação pelo legislador. No entanto, é certo que a inovação do legislador foi no sentido de que diversamente daqueles, o inciso IV além de estabelecer responsabilidade ao proprietário em manter condições dignas a vida do trabalhador rural e sua família, também impôs ao Estado o dever de garantir a todos que exerçam atividade agrária à possibilidade de oferecer condições mínimas de bem estar social e de progresso econômico por meio de politicas públicas como o financiamento agrícola, seguro de safra, assistência tecnológica, entre outros[16].
É nesse sentido o entendimento de Rafael Augusto de Mendonça:
É indispensável, pois, que o Estado propicie a todos os que exercem a atividade agrária condições de bem-estar e de progresso social e econômico, para que permaneçam na terra e, com isso, haja produção agrária e seu aumento. Mas, é preciso, também, que os proprietários de imóveis rurais, que sejam produtores, isto é, que explorem os seus imóveis, procurem dar bem-estar e progresso social e econômico a si, a seus familiares e aos empregados e seus familiares[17].
Ademais, o proprietário da terra deve também atender ao princípio constitucional da segurança da atividade agrária, isto, pois, é uma forma de coibir a produção de risco e com isso afetar a segurança do trabalhador e também de sua família. Mesmo com os grandes avanços tecnológicos a mão de obra humana é indispensável para o trabalho no campo, sendo assim, o planejamento rural deve englobar estratégias de produção seguras e com a participação dos trabalhadores e demais setores de produção.
Umberto Machado de Oliveira sabiamente explica a função do Estado no desenvolvimento de políticas públicas para a segurança do meio ambiente de trabalho nas propriedades rurais:
Daí a necessidade de o Estado oferecer mínimas garantias para o empreendimento agrícola, de molde a evitar as graves consequências que advêm para o agricultor em decorrência do sucesso involuntário de sua atividade. Deve propiciar condições favoráveis que estimulem o ingresso na atividade produtiva.[18]
Sobre a intervenção do Estado para garantia da pacificação das propriedades rurais e o incentivo a produção no campo, esclarece em sábias palavras o professor Raymundo Laranjeiras:
Do ponto de vista da segurança, que é um outro direito de cidadania, a intervenção do Estado, que é quem comanda o processo de reforma agrária, tende a reduzir a violência no campo. Porque além de possibilitar o progresso social dos camponeses, que se tornarão aptos a gozar das oportunidades da educação, da melhoria da saúde e de perspectivas culturais, eles fruirão de melhor qualidade de vida, através da paz, não participando dos conflitos, de que terminam sendo vítimas.[19]
A Lei da Reforma Agrária (Lei nº 8.629/93), no §5º do artigo 9º, estabelece que a exploração favorável ao bem estar dos proprietários e trabalhadores rurais é aquela que preceitua as necessidades básicas dos que trabalham a terra, observando as normas de segurança no trabalho, sem gerar conflitos e crises sociais.
Insta salientar aqui, as considerações do procurador federal Bruno Rodrigues Arruda e Silva em relação ao dispositivo legal aqui estudado:
(...) A função bem estar busca que o direito de propriedade seja exercido de forma harmônica entre proprietários e trabalhadores. É o vetor que direciona o exercício da propriedade com foco no desenvolvimento da sociedade, e não somente de seu titular. Reflete o primado da /promoção do bem estar e da justiça social, objetivos da ordem social traçados no artigo 193 da CF/88.[20]
Sob esta égide é necessário transcrever o artigo 193 da Carta Magna, verbum ad verbum: Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.[21]
O proprietário ou possuidor de terras assim considerado pela doutrina majoritária como indivíduo igualmente responsável pelo cumprimento da função social da terra deve desenvolver a atividade agrária observando as disposições legais que regulam a atividade no campo. E para isso, deverá valer-se do apoio do Estado que proporcionará por meio de políticas públicas agrárias, o desenvolvimento da atividade agrária de forma segura, sob o aspecto econômico e técnico.
Como exemplo é importante citar as políticas de boas práticas no campo, de ordem da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), que objetivam tornar o manejo no campo mais favorável ao meio ambiente e ao meio ambiente do trabalho, buscando evitar contaminações, e consequentemente garantir qualidade de vida aos proprietários e trabalhadores rurais, às suas famílias e as comunidades vizinhas.
O cumprimento das convenções coletivas de trabalho, por sua vez, garante o desenvolvimento das atividades de forma a evitar conflitos sociais, especialmente quanto à observância do piso da categoria como forma de melhor distribuir a renda e garantir a satisfação pessoal do trabalhador, permitindo condições dignas de moradia, saúde e alimentação.
Destaca-se a importância do grau de instrução dos trabalhadores que por vezes no trabalho rural é relativamente baixo ou inexistente, como sendo elemento influenciador das medidas de segurança e saúde no trabalho, fatores que contribuem, como dito anteriormente, na formação do ambiente de trabalho saudável e livre de riscos aos seus integrantes[22].
Mais uma vez a intervenção do Estado nas relações de trabalho no campo se torna fundamental para garantir as condições mínimas de saúde e segurança, deve o empregador, observando as políticas públicas agrícolas, elaborar projetos de implantação de práticas seguras de trabalho bem como continuada verificação de requisitos de salubridade em instalações e equipamentos, visando estabelecer níveis satisfatórios no índice de qualidade de vida do trabalhador rural.
O aplicador do direito deve procurar preencher as lacunas existentes no ordenamento jurídico, buscando estabelecer interpretação equitativa dos artigos 184, 185 e 186 da Constituição Federal, tendo em vista a dimensão dos danos sociais causados pelo exercício da atividade agrária, levando em consideração a responsabilidade do proprietário ou possuidor de imóvel rural.
3 DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE RFORMA AGRÁRIA
A reforma agrária em consonância com a política agrícola é o instrumento pelo qual a União realiza ações a fim de minimizar as mazelas sociais e econômicas que cercam os trabalhadores rurais, os posseiros, os movimentos sociais para acesso a terra etc.
Quando se examinou a origem da propriedade rural, em capítulo anterior, foi demonstrada a nocividade gerada pelo regime sesmarial empregado no processo de colonização do país. Afirmou-se, alhures, que esse regime foi, seguramente, um dos responsáveis pela latifundização das terras brasileiras. Também foi realçado o período extralegal que se impôs ao país, depois da extinção das sesmarias, em 1822, até o advento da Lei de Terras.
Mesmo a Lei de Terras, cujo objetivo fora o de corrigir as distorções apontadas, não solucionou o grave problema de má distribuição de terras, ao longo do regime sesmarial de mais de 300 anos, e nem mesmo a mudança para o regime republicano, foi capaz de ensejar mudanças na estrutura fundiária no país.
Nos próximos itens será tratado o principal instrumento para cumprimento da justiça social no campo, assim determinado pela Constituição Federal: a desapropriação para fins de reforma agrária.
3.1 Considerações Iniciais Sobre a Reforma Agrária
Em detrimento da necessidade de se implantar medidas visando à reformulação da estrutura fundiária do país, foram criados dois institutos essenciais ao exercício da justiça social: a Reforma Agrária e a Política Agrária, dispondo o Estatuto da Terra no §1º do artigo 1º:
Considera-se Reforma Agrária o conjunto de terras e medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade[23].
O professor Torminn Borges destaca a inserção da palavra melhor no texto legal, cujo pensamento é de que o legislador ressaltou neste momento o caráter corretivo da reforma, ratificando a ideia de que a simples distribuição não quer dizer corrigir o que estiver malfeito[24].
O artigo 16 do Estatuto da Terra vem complementar o conceito de Reforma Agrária:
A reforma agrária visa estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio[25].
Assim, se pode afirmar que a reforma agrária não visa somente à distribuição de terras, mas, o conjunto de elementos que envolvem o trabalho no campo, como a paz entre os trabalhadores rurais e os proprietários de terras, melhor condições de vida e a garantia de participação no desenvolvimento da sociedade, com o respectivo desenvolvimento rural.
Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira define Reforma agrária como:
(...) a modificação na estrutura agrária, através de uma distribuição mais justa da terra, de mudanças fundamentais no seu regime de posse e uso, acompanhado de novas instituições jurídico-agrárias, implicando em um novo conceito de propriedade fundamentado na doutrina da função social, a fim de que toda a terra tenha uma destinação socioeconômica[26].
Para Benedito Ferreira Marques qualquer conceito que se dê a reforma agrária, não se pode deixar de dizer que seus dois fundamentos essenciais são: a) a igualdade de oportunidade de acesso a terra (democratização da terra); e b) fazer cumprir a sua função social[27].
Neste prisma, é válido apresentar a opinião de José Eli Veiga entre as definições de reforma agrária e o conceito de transformação, que o fez com as seguintes palavras:
A modificação da estrutura agrária de um país, ou região, com vistas a uma distribuição mais equitativa da terra e da renda agrícola é a definição mais usual da reforma agrária. Tal enunciado consta em qualquer bom dicionário. Como geralmente acontece com as conceituações sintéticas, nela está apenas implícita uma ideia-chave para o seu entendimento: de que se trata de uma intervenção deliberada do Estado nos alicerces do setor agrícola. É isto que permiti distinguir reforma de transformação agrária[28].
Deste modo, devem ser considerados os motivos para o legislador instrumentalizar as mudanças necessárias no campo, baseando-se em novos modelos sobre as relações homem-produção, apoiando-se no novo conceito de propriedade criado à luz da função social e econômica.
Com efeito, a reforma agrária se exterioriza pela intervenção do Estado, no sentido de redimensionar a estrutura fundiária do país, visando à melhor distribuição de terras a todos que dela dependam, dando economicidade e aumentando a produção, promovendo a efetivação da justiça social, e colaborando para com a erradicação da pobreza.
Ao passo que a reforma agrária estabelece fundamentos e instrumentos para que o Poder Público possa melhor distribuir a terra e desta forma efetivar a justiça social, a política agrícola visa à manutenção da propriedade da terra e a garantia da produtividade aliada ao bom uso da terra.
Assim, entende-se que a reforma agrária é o instituto pelo qual o Poder Público executa a distribuição de terras modificando seu regime de uso e de posse, visando garantir o acesso a terra e a melhor produtividade. Enquanto que a política agrícola permite os beneficiários da reforma agrária terem acesso a subsídios e fomento para produzirem e garantirem melhores condições de vida.
3.1.1 Características da reforma agrária
A reforma agrária é uma forma de intervenção do Estado na propriedade privada, na medida em que seus principais instrumentos são a desapropriação e a tributação, e que tem caráter transitório, objetivando no Brasil, a extinção gradativa do minifúndio e do latifúndio, sendo a distribuição de terras a ela destinadas feita sob forma de propriedade familiar[29].
Cumpre à reforma agrária, estabelecer o homem no campo e incentivá-lo a praticar a produzir, despertando seu interesse para a atual realidade econômica e social, segundo a qual não é mais a grande propriedade que lhes dá prestígio, e sim por meio do manejo de agriculturas não degradáveis ao meio ambiente e com aproveitamento integral e técnico.
É o pensamento de Oswaldo e Silvia Opitz ao dizerem que:
(...) a reforma agrária não pode esquecer que sua função precípua é a fixação do homem do campo à sua propriedade, em caráter profissional e com o objetivo de grande produção para o mercado. Fica assim alcançado o objetivo da reforma agrária apontado no art. 1º, § 1º, do ET[30].
Na mesma linha de pensamento, posiciona-se Emílio Alberto Maya Gischkow, para quem a reforma agrária tem fundamento constitucional, uma vez que a Constituição Federal prevê a realização da justiça social com base na função social da propriedade [31].
Os assentamentos oriundos da reforma agrária são em regra, formados por uma quantidade numerosa de famílias que trabalhavam em terras integrantes de minifúndios ou latifúndios, e que após o assentamento, recebem uma determinada faixa de terra para que ali se estabeleçam e comecem a produzir. Este fato é considerado como o fio condutor da reforma agrária que, atrelada à sua característica sue generis (certa forma de punição do Estado), formam uma das características da reforma agrária que é a justiça social.
A referida forma de punição se dá na medida em que a indenização da terra nua, no decorrer do processo de desapropriação para fins de reforma agrária, é feita com Títulos da Dívida Agrária (TDA), razão por que o agrarista Paulo Guilherme de Almeida faz as seguintes considerações:
De fato, é característica da reforma agrária que seu instrumento, a desapropriação por interesse social, assuma caráter punitivo para o expropriado, com a agravante representada pela forma de se pagar a indenização correspondente. Isto não ocorre, em princípio, nas demais espécies de desapropriação, que se realizam não com conotação de sanção pelo mau uso da propriedade, mas sim em consideração a interesses públicos que sobrelevam o interesse individual do proprietário, havendo pelo menos teoricamente, a recomposição do patrimônio pela indenização paga em dinheiro[32].
Não se pode confundir aqui a desapropriação para fins de reforma agrária com a expropriação ou confisco de terras previsto no art. 243 da Constituição Federal regulamentado pela Lei nº 8.257/91, que trata da expropriação das glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas, cujo procedimento não se confunde com o da reforma agrária, visto que o proprietário expropriado não recebe qualquer indenização.
Daí porque a reforma agrária é considerada como forma de punição ao proprietário que não fez cumprir a função social da terra, e desta forma, deixou de atender os interesses sociais e econômicos da propriedade rural moderna. E dessa punição, surgir-se-á a esperança para os que necessitam da terra para viver, vista a dimensão das questões sociais que afligem os rurícolas do país. É a possibilidade de se ter aonde cultivar e consequentemente o seu sustento e o aumento de riquezas da sociedade como um todo.
3.1.2 Órgão responsável pela reforma agrária
Com a promulgação do Estatuto da Terra, em 1964, a questão agrária no país passou a ser tratada por um conselho gestor, que tem por objetivo a implantação da reforma agrária, que hoje é denominado Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), conforme dito no capítulo 1.
É o que se extrai do § 1º do art. 6º do Estatuto da Terra, que tratam da representação da União pelo INCRA nos acordos, convênios e contratos relativos à reforma agrária e sua execução, conforme se lê:
Art. 6º. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão unir seus esforços e recursos, mediante acordos, convênios ou contratos para a solução de problemas de interesse rural, principalmente os relacionados com a aplicação da presente Lei, visando a implantação da Reforma Agrária e à unidade de critérios na execução desta.
§ 1o Para os efeitos da Reforma Agrária, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA representará a União nos acordos, convênios ou contratos multilaterais referidos neste artigo[33].
O INCRA, autarquia federal criada pelo Decreto Lei nº 1.110/70, alterado pelo Decreto nº 7.231 de 1984, extinto e revigorado pelo Decreto Legislativo nº 02 de 1989, é o atual gestor da reforma agrária do Governo Federal. É pessoa jurídica de direito público com personalidade jurídica própria, contudo, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, que teve sua estrutura regulamentada de acordo com o Decreto nº 3.338/2000.
É de responsabilidade do INCRA, promover a implantação da reforma agrária, inclusive, promover as desapropriações e demais atos necessários para melhor distribuir a propriedade rural na busca de melhor produção de alimentos e matéria prima, além de contribuir para diminuir o índice do êxodo rural[34].
Incumbe ao INCRA, portanto, todas as ações e atos relativos ao desenvolvimento das políticas públicas agrárias, em especial da reforma agrária e seus procedimentos de controle e fiscalização, como é o caso do cadastro de imóvel rural, criado para auxiliar na fiscalização dos requisitos da função social e para a cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR).
3.1.3. As formas de implantação da reforma agrária
A distribuição ou redistribuição de terras para fins de promoção de reforma agrária se faz através de três caminhos principais: a) destinando as terras devolutas da União e dos Estados membros e dos Municípios, respeitada a competência de cada ente federativo; b) compra e venda de imóveis rurais, para esta destinação específica; e, c) através da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária.
destinação de terras públicas para fins de reforma agrária está disciplinada no artigo 9º do Estatuto da Terra, que estabelece que dentre as terras públicas terão prioridade, subordinando-se aos itens previstos no referido estatuto, as de propriedade da União, que não tenham outra destinação específica; as reservadas pelo Poder Público para serviços ou obras de qualquer natureza, ressalvadas as pertinentes à segurança nacional, desde que o INCRA considere sua utilização econômica compatível com a exploração agrícola; as devolutas da União, dos Estados e dos Municípios.
De forma acertada, a distribuição de terras públicas para execução da reforma agrária é o meio mais natural e menos oneroso que dispõe a União, haja vista que se o Estado possui terras adequadas para promoção de reforma agrária, deve prioritariamente dar destinação às mesmas, contribuindo com seu patrimônio para a justa distribuição de terras.
É nesse sentido o entendimento de Juraci Perez Magalhães, ao asseverar que:
(...) É evidente que o Estado não pode ter terras. No momento em que arrecada alguma área, deve dar-lhe logo o destino previsto na legislação agrária. O sentido dos dispositivos é de que as terras públicas, como as particulares, devem se submeter aos objetivos da reforma agrária. (...) Se há terras públicas disponíveis, que se permita o acesso dos trabalhadores ás mesmas[35].
O INCRA através do que lhe permite o art. 17 da Lei de Reforma Agrária pode comprar imóveis para posterior distribuição entre os trabalhadores rurais, observando-se os estudos de viabilidade econômica dentre as áreas previamente escolhidas para compra pelo INCRA.
O instituto jurídico da desapropriação, no contexto da legislação agrária, tem uma importância singular, na medida em que dela depende, basicamente, a execução da reforma agrária, visto que as demais formas à disposição do órgão promotor não se coadunam com a realidade prática, e por isso, além de sua conceituação, natureza jurídica, classificação e fins, é necessário repassar alguns aspectos, com vistas à melhor compreensão do tema, os quais serão abordados no próximo item.
3.2 Desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária
Historicamente a desapropriação encontra fundamentos no Direito Romano, de forma divergente da existente no mundo atual, ao construírem novas e inúmeras obras publicas, os romanos enfrentavam a fúria dos proprietários que se diziam afetados pelas mesmas. É interessante salientar que o Código Theodosiano versava, mesmo que de forma obscura e incompleta, sobre a desapropriação, que era aplica de forma arbitrária, uma vez que não havia pagamento de qualquer tipo de indenização ao proprietário[36].
O confisco pode ser considerado como o ancestral da desapropriação, tendo em vista sua aplicação durante a Idade Média, época em que o direito de propriedade era ilimitado e concentrado pela minoria detentora das riquezas da sociedade, o que ocorria com frequência como forma de demonstrar o poder do mais forte[37].
O atual conceito de desapropriação teve seus primórdios durante a idade moderna, especificamente após os movimentos revolucionários iluministas, como a Revolução Francesa, que se tornou marco na delimitação de um novo direito de propriedade (inviolável e sagrado, do qual ninguém seria privado a não ser em caso de necessidade pública mediante justa e prévia indenização)[38].