A mediação na recuperação judicial: Uma prática para o reconhecimento da pessoa do sócio e dos credores

Resumo:


  • A teoria da justiça social de Nancy Fraser é aplicável à mediação na recuperação judicial de empresas, enfatizando a importância do reconhecimento, redistribuição e representação.

  • A mediação na recuperação judicial promove o diálogo entre devedor e credores, transferindo o poder de decisão para as partes e contribuindo para a preservação da justiça social.

  • A prática da mediação é alinhada com a teoria tridimensional de Nancy Fraser, pois reconhece as partes como sujeitos de direitos, redistribui poder e promove soluções consensuais mais dignas e confiáveis.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo: A proposta do presente artigo é investigar a compatibilidade da teoria da justiça social de Nancy Fraser para o emprego da mediação na recuperação judicial de empresas, que tem sido apontada como um instrumento de reconhecimento da pessoa. A estimativa inicial é pela sua compatibilidade, tendo em vista o caráter negocial do instituto bem como a prevalência da autonomia privada no âmbito da lei 11.101/05. A discussão se justifica em razão do advento da 14.112/20, que alterou de forma substancial a lei de falências e recuperação de empresas, incluindo a mediação como forma consensual de resolução do conflito entre o devedor empresário em crise econômica e financeira, devidamente presentado pelo sócio e seus credores, buscando não só a negociação ou o acordo. Trata-se de deixar a solução nas mãos do próprio devedor e seus credores que assumem o protagonismo nesse procedimento, ajudando a preservar e promover a justiça social. A despeito disso, a pesquisa pretende abordar duas questões: a primeira consiste em identificar e compreender o contexto institucional e discursos justificadores em razão dos quais a mediação tem se mostrado como instrumento de reconhecimento da pessoa do sócio e dos credores, principalmente no âmbito da recuperação judicial. A segunda visa compreender como a mediação na recuperação judicial se insere no contexto da teoria tridimensional da justiça social elaborada por Nancy Fraser. Para esse fim, usaremos a doutrina, a jurisprudência, bem como artigos e periódicos. O artigo é fruto de uma revisão bibliográfica.

Palavras-Chave: Mediação, Recuperação Judicial, Reconhecimento, Nancy Fraser

Abstract: The purpose of this article is to investigate how Nancy Fraser's theory of social justice contributed to the use of mediation in the judicial reorganization of companies, which has been identified as an instrument of recognition of the person. The initial estimate is based on its compatibility, in view of the business nature of the institute as well as the prevalence of private autonomy within the scope of law 11.101/05. The discussion is justified due to the advent of 14.112/20, which substantially amended the Bankruptcy and Business Recovery Law, including mediation as a consensual way of resolving the conflict between the debtor entrepreneur in economic and financial crisis, duly presented by the partner and its creditors, seeking not only negotiation or agreement. It is about leaving the solution in the hands of the debtor and his creditors, who take the leading role in this procedure, helping to preserve and promote social justice. Despite this, the research intends to address two questions: the first is to identify and understand the institutional context and justifying discourses in which mediation has been shown to be an instrument for recognizing the person of the partner and creditors, especially in the context of reorganization. judicial. The second seeks to understand how mediation in judicial reorganization fits into the context of the three-dimensional theory of social justice developed by Nancy Fraser. To this end, we will use doctrine, jurisprudence, as well as articles and journals. The article is the result of a bibliographic review.

Keywords: Mediation, Judicial Reorganization, Recognition, Nancy Fraser

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende trazer a mediação como instrumento transformador de resolução de conflito entre o devedor empresário em crise econômica e financeira e seus credores, contribuindo para o repensar do poder de decisão no âmbito dos processos de recuperação judicial de empresas, a partir das três dimensões da justiça social elaboradas por Nancy Fraser: a redistribuição, o reconhecimento e a representatividade.

A crise na empresa (atividade econômica organizada) pode ser sanada através da recuperação empresarial, judicial ou extrajudicial. A lei 11.101/05 privilegia a negociação e a autonomia privada. O objetivo da atual lei, ao contrário do antigo DL 7661/45, é superar a crise econômica da empresa, com o fim o de recuperá-la para que possa voltar a exercer sua função social, conforme dispõe o art. 47 da LRF. Para Sérgio Campinho, o instituto da recuperação judicial vem sendo concebido com o objetivo de promover a viabilização da superação deste estado de insolvência, motivado por um interesse na preservação da empresa desenvolvida pelo devedor (Campinho, 2020, p. 53). Com o advento da lei 14.112/20, que alterou de forma substancial a lei de recuperação de empresas e falências, tornou-se possível resolver os conflitos entre o devedor empresário e seus credores de forma consensual, através da mediação.

A mediação vem sendo usada nos processos de recuperação judicial desde 2016, com o pioneiro processo de recuperação judicial do grupo Oi, que acabou se tornando o caso mais emblemático até hoje. De fato, representou um divisor de águas, pois este processo serviu de espelho para que os seguintes pudessem fundamentar a mediação no âmbito do direito empresarial. Na época, o juízo da 7ª Vara Empresarial do TJ/RJ, atento ao soerguimento da atividade econômica, nomeou um mediador para auxiliar, através do diálogo, a resolução do conflito entre o devedor insolvente e seus credores visando a aprovação do plano de recuperação judicial, o que representou um marco no âmbito empresarial. A partir da entrada em vigor da lei 14.112/20, esta prática, anteriormente realizada apenas pelos olhos da jurisprudência, especialmente do STJ, foi regulamentada, possibilitando a nomeação de mediadores nos processos de recuperação judicial.

Como expressão da cidadania, a mediação nos processos de insolvência judicial, tem se demonstrado como uma metodologia compatível com o instituto. Neste contexto, esse ainda recente meio adequado de resolução de conflitos tem sido encarado como uma forma de humanizar o direito, na medida em que o objetivo é cuidar e reconhecer a pessoa humana como capaz de resolver o conflito por si própria, traduzindo o que se denomina de empoderamento. Com efeito, o poder de decisão que, na heterocomposição, pertence ao Estado, é transferido às partes na mediação, que resolvem o conflito com alteridade, a partir do diálogo promovido por um terceiro imparcial e da aplicação de técnicas de mediação, preservando suas relações interpessoais.

Seguindo essa linha de raciocínio, de acordo com o entendimento de Maillart e Junior a mediação é uma forma de reaproximação com o outro e um reconhecimento do próprio eu, pois as partes se afastam de sua visão egoísta sobre o conflito, abrindo-se para o diálogo e afastando o resultado ganhar/perder promovido pela heterocomposição (2015, p. 9).

Neste viés, percebe-se que a mediação promove a redistribuição do poder de decisão, o reconhecimento da pessoa, e sua representação enquanto sujeito de direitos. Portanto, nesta análise tem-se a pretensão de demonstrar não o embate entre as partes como ocorre na concepção tradicional de justiça, mas o consenso dialogado. A mediação representa um importante instrumento de transformação da realidade social e da prática da cidadania, expandindo a promoção dos direitos humanos (Silveira, Bentes, 2012, p. 17).

Embora a mediação no âmbito do direito de empresa seja linear, na medida em que se preocupa em estabelecer um acordo, é possível dizer que toda mediação tem um caráter transformador. Assim, como na recuperação judicial o poder de decisão pertence ao devedor empresário, na pessoa do sócio e aos credores, permite-se que um se coloque no lugar do outro para que se chegue, através do consenso, a um valor do crédito compatível para que a empresa possa se recuperar e voltar a exercer sua função social. Nesse contexto, de acordo com Bonilha,

o mediador tem o papel de identificar os interesses comuns, facilitar o diálogo, limpar os ruídos de comunicação que, porventura, possam ter contaminado a relação empresarial e, por fim, auxiliar o processo de negociação, estimulando as partes a criarem opções que possibilitem gerar uma nova situação, que atenda quantitativa e qualitativamente aos interesses dos envolvidos (Neto; Longo, Apud Bonilha, 2018, p. 390).

Percebe-se que o mediador, na recuperação judicial, ajusta o desequilíbrio de poder entre o devedor empresário em crise e seus credores para permitir que as negociações prossigam de maneira justa e suave. Nesse sentir, a mediação oferece uma oportunidade única para ajudar os envolvidos a preservar e promover a justiça social.

A proposta deste artigo é examinar a viabilidade da aplicação da Teoria da justiça social elaborada pela filósofa Nancy Fraser na mediação no âmbito dos processos de recuperação de empresas. Assim, esse texto partiu de uma pesquisa bibliográfica, lançando mão da doutrina, jurisprudência e artigos publicados sobre o tema.

  1. Nancy Fraser e sua Teoria sobre a Justiça Social

Nancy Fraser é uma filósofa norte-americana afiliada à escola de pensamento denominada de teoria crítica que, inicialmente, elaborou uma teoria acerca da justiça social, argumentando que a justiça é um conceito complexo que envolve duas dimensões separadas, embora inter-relacionadas: a redistribuição e o reconhecimento, denominada de teoria bidimensional. Neste contexto, o seu objetivo era unir o aspecto sócio-econômico (dimensão econômica, de classe) e o aspecto cultural (de status), atualmente dissociados.

Com efeito, argumenta a autora que existem duas formas de compreender as injustiças: a primeira refere-se à falta de distribuição (injustiça sócio-econômica), que relaciona-se com a falta de garantia de direitos sociais básicos, tais como: alimentação, saúde, moradia, educação, desaguando em diversas formas de exploração, marginalização econômica e toda sorte de privações. Para tais injustiças, Fraser aponta como remédio, a denominada redistribuição (de renda, reorganização e divisão do trabalho, controles democráticos do investimento ou transformação de outras estruturas básicas), o que equivale à garantia de igualdade; a segunda refere-se à falta de reconhecimento (injustiça cultural), que não ocorre em função do acesso a bens materiais, mas sim de um processo de valorização de identidades normalmente subalternizadas e que levam alguns grupos minoritários a serem vítimas de estigmas relacionados à sexualidade, raça, gênero, etnia ou alguma deficiência.

Nesse sentido, Fraser apresenta como solução para essa ausência de reconhecimento, justamente o próprio reconhecimento, que pode envolver os movimentos sociais, bem como as políticas públicas destinadas a garantir a efetividade desses direitos sociais. São ações que buscam promover a luta pelo reconhecimento, a valoração de determinados grupos. Trata-se do reconhecimento de que há diferenças entre as pessoas há diversidade mas sem desvalorizá-las. No caso das diferenças de gênero, o que implica em manifesta injustiça social, destaca-se que o Pacto Internacional dos Direitos sociais, econômicos e culturais garante, em seu artigo 3º[1], a igualdade entre homens e mulheres como um direito humano. A despeito disso, III Relatório do PIDESC dispõe de medidas para a promoção da igualdade de gênero, o que inclui políticas públicas no combate da violência contra a mulher e a promoção da igualdade.

Segundo Fraser, a luta por reconhecimento, que implica numa revalorização das identidades desrespeitadas e numa valorização positiva da diversidade cultural, caminha de mãos dadas com a luta pela redistribuição, pois não pode haver justiça social sem as suas duas facetas: econômica (dimensão de classe) e cultural (dimensão de status), ao que essa filósofa chamou de bidimensionalidade da justiça social.

A despeito disso, Fraser propõe um modelo de paridade participativa, na medida em que as normas e regras que organizam as instituições públicas somente serão justas quando todos os segmentos da sociedade, sejam grupos majoritários ou minoritários, tenham a possibilidade de participar de forma igual dessas regras. Há, assim, duas condições para que essa paridade seja atingida: as de cunho objetivo, o que implica excluir níveis de dependência econômica e desigualdade; as de cunho subjetivo, que consiste em eliminar os estigmas, implicando numa mudança estrutural de valores culturais.

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Posteriormente, numa releitura de sua teoria, a autora passou a sentir necessidade de pensar em uma concepção de justiça que alcançasse todas as dimensões que impeçam tal paridade. Desta forma, propôs uma concepção tridimensional da justiça social para incluir além das duas dimensões já mencionadas, a denominada representação, que, por sua vez, está relacionada ao aspecto político.

Com efeito, a dimensão política permite aos cidadãos a luta pela redistribuição e reconhecimento, a partir do momento em que adquirem a representação política, as lutas por suas demandas adquirem viabilidade e visibilidade, passando a ser considerados como sujeitos de direitos.

Desta forma, a ideia de justiça social de Nancy Fraser baseia-se na redistribuição de renda, no reconhecimento da pessoa e na sua representação política como sujeito de direito. Conforme se verá a seguir, essa teoria tem se mostrado harmonizável com a mediação, especialmente na recuperação judicial.

Diante disso, no capítulo seguinte, examinaremos como a ideia da Teoria tridimensional sobre a justiça social pode ser aplicada à mediação como mecanismo de reconhecimento da pessoa.

  1. A Mediação de Conflitos como forma de reconhecimento do outro, redistribuição do poder e representação da pessoa como sujeito de direitos:

Sendo os conflitos um fenômeno inerente ao convívio social, com o fim de superar essas tensões, as partes podem optar por dois caminhos: o primeiro é através do poder de coerção, em que o Estado-Juiz obriga alguém a fazer ou deixar de fazer algo, como um reflexo de uma solução com base na violência. Neste tipo de solução heterocompositiva, o que se tem são soluções decorrentes de litígios aparentemente encerrados, atribuindo razão à parte ganhadora e estabelecendo um pesado ônus à parte perdedora.

Em outras palavras, ao invés de resolver o conflito, o potencializa, na medida em que a relação entre as partes que já era ruim, tende a aumentar mais com a plena satisfação de uma das partes; o segundo é através do diálogo, que permite o reconhecimento do outro, pois o poder é transferido para as partes, que decidem o conflito por si mesmas. Desta forma, não há que se falar em ganhador e perdedor, na medida em que quando as partes tornam-se protagonistas do próprio embate, haverá um ganho conjunto aliado a uma divisão proporcional de perdas. Seguindo o entendimento da doutrina

A mediação é uma técnica não adversarial de resolução de conflitos, por meio da qual duas ou mais pessoas procuram um terceiro imparcial e expert em técnicas de composição de litígios, para ajudá-las a encontrarem uma solução consensual e satisfatória para seu problema (Netto; Longo, 2020, p. 59).

Neste sentido, de acordo com o entendimento de Alvarez, a mediação traz o reconhecimento da pessoa na medida em que

a alteridade, que promove o efeito transformador do conflito, a reciprocidade e o diálogo, uma das técnicas aplicadas nesse meio consensual de solucionas o embate, são elementos constitutivos da configuração do homem, de tal forma que o outro é elemento constitutivo do eu; noutros termos, eu me reconheço na medida e na proporção que eu reconheço o outro. Implica a concepção do homem como ser em relação, isto é, que a relação é o fundamento do ser. Portanto, o diálogo aparece como primordialmente humano e como primeiro fundamento da ética (Alvarez, 2012, p. 2).

Nota-se que a mediação por promover o diálogo entre as partes reconhece o outro como sujeito de direito. Por isso, considera-se a mediação como expressão da cidadania e dos direitos humanos, tanto aqueles relacionados às liberdades como os relacionados à igualdade. Nesse contexto, conforme entendimento da doutrina

A mediação centra-se não no embate entre as partes, mas no consenso dialogado. Nesse sentido, a mediação representa uma ferramenta de transformação da realidade social e de práticas de cidadania, favorecendo a concretização dos direitos humanos. Com efeito, compreendida como ação dirigida aos protagonistas dos conflitos sociais, a mediação propicia a abertura de um amplo debate sobre os antagonismos existentes no próprio seio da sociedade (Bentes, 2012, p. 98).

Seguindo essa linha de raciocínio, no contexto da filosofia moral e da teoria sócio-política e jurídica, uma das formas em que o homem se reconhece é pela capacidade de dialogar com o outro e com o mundo. Portanto, o diálogo promovido pelo mediador reconhece o outro como pessoa, tendo em vista que, de acordo com Ricoeur, a constituição da identidade realiza-se através da mediação do outro na relação intersubjetiva, porquanto o si só constitui sua identidade numa estrutura relacional que faz prevalecer a dimensão dialógica sobre a dimensão monológica (Bentes Apud Ricoeur, 2012, p. 12).

Com efeito, a mediação como forma adequada de resolução de conflitos, no Brasil, foi implementada pela Resolução 125/10 do CNJ, que inaugurou uma Política Judiciária Nacional para a Solução Adequada dos Conflitos de Interesse. Desde então, tem sido difundida uma releitura do princípio do acesso à justiça nos e pelos Tribunais Superiores, inclusive o STJ, a enfatizar a necessidade de resolver os conflitos não só através do Poder Judiciário, mas também por meio da mediação e da conciliação inclusive extrajudiciais oferecendo aos cidadãos brasileiros meios possivelmente mais rápidos e baratos de resolução dos seus conflitos.

O movimento para usar a mediação como prática do reconhecimento da pessoa na recuperação judicial partiu do enunciado nº 45, na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do CJF em 2016, que já havia firmado o entendimento de que a mediação é harmonizável com a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência.

A partir do mencionado enunciado, o caso pioneiro que usou a mediação como prática para resolução de conflitos entre o devedor empresário em crise econômico-financeira e seus credores foi a ação de recuperação judicial do grupo Oi em 2017, em que o juízo se utilizou, dentre outros argumentos, daquela referência para fundamentar sua decisão. A despeito disso, antes mesmo do enunciado, já era possível a nomeação de mediadores no âmbito da recuperação judicial, uma vez que não só a lei 11.101/05 privilegia a autonomia privada, como também não havia dispositivo nesta lei proibindo a utilização da mediação nestes casos.

Posteriormente, foi publicada a Lei no 13.140, de 26 de junho de 2015, que disciplina a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e dispõe sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, além do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) contemplando o uso da mediação, conciliação e demais meios consensuais, inclusive no curso do processo.

Percebe-se, portanto, que o uso da mediação na sociedade brasileira é muito recente e encontra o seu maior desafio na cultura do litígio, enraizada na sociedade há muitos anos. Para sua implementação, exige-se uma mudança cultural, o que demandará muita dedicação e paciência, implicando numa modificação de hábitos sociais. Enquanto isso não ocorre, a mediação caminha de forma lenta, não obstante a notória necessidade da sociedade pós-moderna em adotar não só a mediação, mas outros meios consensuais de resolver o conflito como, por exemplo, a conciliação ou a arbitragem. A doutrina assim se posiciona

Nesse contexto, surgiu a escola clássica de mediação da Universidade de Harvard, em Cambridge, Boston e a ideia do Tribunal Multiportas (Multi-door Courthouse), que pode receber demandas por programas distintos, já que, além do processo judicial tradicional, há meios alternativos, tais como a arbitragem, a conciliação e a mediação. Apenas em último caso o conflito deve ser resolvido pelo sistema judicial (Netto, Longo, 2020, p. 57).

É possível inferir, portanto, que as resoluções adequadas de conflito, especialmente, a mediação, não possuem a pretensão de extinguir a função jurisdicional do Estado. O objetivo é conferir ao cidadão a opção pelo consenso ou pelo embate.

De toda sorte, a primeira opção é a que promove o reconhecimento da pessoa, pois através do diálogo promovido por um terceiro imparcial as partes resolvem o conflito por si mesmas, implicando num olhar para o outro, na denominada outricidade, expressão usada por Warat. Isso significa que a mediação, como expressão da cidadania, é uma forma de humanizar o direito, de cuidar e reconhecer o outro. Esse é o efeito transformador do conflito que somente o diálogo promovido pela mediação é capaz de oferecer, na medida em que a pessoa se coloca no lugar do outro para entender a si próprio, não havendo ganhador ou perdedor.

Nesse sentido, de acordo com Warat, é a alteridade, a outricidade, que consiste na possibilidade de transformar o conflito e as pessoas nele envolvidas, produzindo, no mesmo tempo, a diferença com o outro (2006, p. 58).

Em outras palavras, a mediação não é destinada apenas ao conflito, mas direciona-se ao outro como ser humano, implicando na sensibilização do direito, na humanização das relações entre as pessoas, possibilitando uma melhoria da qualidade de vida. Desta forma, voltaremos a ser um sujeito de direitos com direitos, ser cidadão no sentido de poder opinar e decidir por si mesmo. De acordo com o entendimento de Warat

A mediação seria uma proposta transformadora do conflito porque não busca a sua decisão por um terceiro, mas sim a sua resolução pelas próprias partes que recebem o auxílio do mediador para administrá-lo. A mediação não se preocupa com o litígio, ou seja, com a verdade formal contida nos autos. Tampouco tem como única finalidade a obtenção de acordo. Mas, visa, principalmente, ajudar as partes a redimensionar o conflito, aqui entendido como conjunto de condições psicológicas, sociais e culturais que determinam um choque de atitudes e interações nas relações das pessoas envolvidas (Zanella Apud Warat, 2004, p. 60).

Nota-se que no entendimento do autor, a mediação, como uma prática de ação não violenta, direciona-se não apenas para o conflito, mas ao outro como ser humano, no que Warat denomina de outricidade vista como espaço ético do reconhecimento (Warat, 2004, p. 147).

  1. A Compatibilidade da Teoria tridimensional de Nancy Fraser com a mediação na recuperação judicial:

A lei 14.112/20, que alterou a lei 11.101/05, trouxe a possibilidade de resolver os conflitos entre o devedor empresário em crise econômica e financeira através da mediação. A Lei que trata da matéria permite que a recuperação seja judicial ou extrajudicial. No caso deste artigo interessam as recuperações que acontecem de forma judicial, ou seja, aquelas que são processadas integralmente no âmbito do Poder Judiciário, por meio de uma ação judicial, com rito processual próprio, visando a solução para a crise econômica ou financeira da empresa.

A Recuperação Judicial é um mecanismo fornecido pela lei de falências e recuperação de empresas para superar a crise econômico e financeira da empresa, desde que essa atividade econômica seja viável economicamente. Isso implica em averiguar se a atividade econômica tem potencial econômico para reerguer-se, além do exame da importância social, ou seja, da relevância que a empresa tem para a economia local, regional ou nacional. Percebe-se, com isso, que o objetivo principal da lei 11.101/05 é a preservação da empresa e não a sua liquidação.

Por outro lado, não sendo a empresa viável seja porque não há interesse em investir naquela atividade, seja porque não existe comprovação da função social que a empresa exerce só resta uma saída: a Falência que, de forma bem resumida, significa a formação de um processo concursal (porque há a formação de um concurso de credores) visando a arrecadação dos bens em poder do devedor empresário em crise com objetivo de liquidar em juízo tais bens e, com o produto da venda, pagar seus credores causando o menor prejuízo possível. Nesse sentido, de acordo com Fábio Ulhoa Coelho:

Nem toda falência é um mal. Algumas empresas, porque são tecnologicamente atrasadas, descapitalizadas ou possuem organização administrativa precária, devem mesmo ser encerradas. As más empresas devem falir, para que as boas não se prejudiquem (2010, p. 165).

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Com efeito, o processo de recuperação judicial visa à formação, a aprovação e a homologação do plano de recuperação judicial. De acordo com Sérgio Campinho, todo processo vem orientado para a confecção do plano e sua posterior homologação pelo magistrado (Campinho, 2021, p. 35). Seguindo essa linha de raciocínio, Coelho ensina que o plano de recuperação judicial é a peça mais importante do processo, pois depende exclusivamente dele a realização ou não dos objetivos associados ao instituto, quais sejam, a preservação da atividade econômica e a preservação da função social da empresa (2021, p. 194).

Neste contexto, é importante destacar a relevância da mediação para o processo de Recuperação Judicial, uma vez que sua função alcança não só a negociação do plano de recuperação judicial como auxilia na sua fase de cumprimento. O plano do devedor é o contrato de natureza plurilateral[2] mais relevante deste processo, pois trata-se da forma pela qual as partes envolvidas estabelecem uma estratégia para o soerguimento da empresa em crise.

O papel do mediador, uma vez nomeado pelo juiz, é o de auxiliar, através do diálogo, nas negociações entre o devedor empresário em crise e seus credores[3] para que possam chegar a um consenso a respeito do valor do crédito que se deseja negociar, desembocando na feitura deste plano que seja factível para ambas as partes, objetivando sua homologação pelo juiz.

Assim, atuando como um facilitador do diálogo entre as partes do processo de recuperação judicial é possível afirmar que o mediador, utilizando-se de sua imparcialidade, conduz o devedor empresário insolvente e seus credores a uma efetiva negociação. Nesse sentido, há uma aproximação entre o devedor e os credores, permitindo que a resolução do conflito esteja em suas mãos. A despeito disso, Warat entende que o mediador seria uma espécie de mestre zen, que apenas ajuda, orienta e serve de guia para que as pessoas se encontrem como mestres de si mesmos, encontrando a sabedoria dentro de si e suas próprias verdades (2006, p. 68).

Por outro lado, na recuperação judicial há interesses comuns entre o devedor e os credores: ambos querem obter o reerguimento da empresa para que ela possa continuar a exercer sua função social com seus valores de produção recuperados, com o fim de gerar empregos, pagar os tributos, e impulsionar a economia.

Desta forma, o que se quer negociar na mediação neste âmbito é o valor do crédito que cada credor tem a receber. Assim, a mediação permite que o sócio, presentando a sociedade, olhe para os credores e dialoguem entre si sobre qual o melhor meio de recuperação que aquele credor deva se utilizar para que receba seu crédito em um valor justo. Isso implica dizer que a mediação é capaz de transformar o conflito por meio da construção do diálogo, e consequentemente da transferência de poder de decisão para os envolvidos, o que promove o reconhecimento do outro. Nesse sentido, no entendimento da doutrina

O fato de conceder aos envolvidos a possibilidade de manifestar seus interesses e conversar sobre o problema já denota avanço para o litígio em si, que se abre à presença não mais de contentores, mas de pessoas que, mesmo em situação de divergência, racionalizam seus interesses e se dispõem a dialogar sobre o tema (Sales; Andrade, 2011, p. 46).

Diante do exposto, cumpre destacar: [...] ademais de produzir efeitos positivos imediatos, a favorável resolução de um processo de mediação constitui atividade educativa para todos os envolvidos, com reflexos de longo prazo na construção de uma sociedade menos litigiosa, onde os indivíduos busquem de forma negociada a resolução de suas querelas (Sales; Andrade apud Northfleet, 1994, p. 136).

Outrossim, para que ocorra a superação da crise econômica e financeira do devedor empresário, é necessária a formação de uma estratégia para que a empresa possa se recuperar, possuindo esse plano condições de pagamento para as classes de credores, cujas decisões tomadas no âmbito de cada classe implicarão ou não na aprovação do plano.

Com efeito, para que determinada pessoa jurídica possa exercer um negócio jurídico, como é o caso do plano de recuperação judicial, pela teoria do órgão ou princípio da presentação, mostra-se necessário que a pessoa jurídica se faça presente na pessoa do sócio, que a tornam presente para a prática do ato jurídico, desde que possuam autorização legal, estatutária ou contratual para tanto. Assim, a pessoa jurídica é presentada, ou seja, a sociedade faz-se presente na prática de atos jurídicos pela pessoa ou conjunto de pessoas expressamente indicadas nos atos constitutivos/sociais, ou seja, o sócio.

Na recuperação judicial, o mediador tem o papel de auxiliar as partes envolvidas a decidirem sobre as cláusulas que serão apostas no negócio jurídico que se relacionam com o valor do crédito a ser negociado. Neste caso, é o sócio e não a pessoa jurídica que se fará presente na negociação presentando a pessoa jurídica. Assim, a mediação é realizada não entre o devedor empresário (pessoa jurídica) e os credores, mas entre o sócio que possui autorização no ato constitutivo para se fazer presente no procedimento e os credores. Neste contexto, é possível afirmar que a mediação promove o reconhecimento do sócio e não do devedor empresário, pessoa jurídica.

Neste cenário, a mediação preserva e promove a justiça social na medida em que se fundamenta em ideários humanistas, pois o objetivo é redistribuir o poder de decisão entre o sócio e seus credores, através de técnicas de diálogo e reunião de esforços com vistas a uma solução justa e que contente a todos, permitindo o alcance de soluções mais dignas e confiáveis.

Por fim, é possível afirmar que a teoria da justiça social de Nancy Fraser mostra-se harmonizável com a mediação, especialmente, na recuperação judicial, de forma que busca, através do diálogo, reequilibrar o poder de decisão, reconhecendo a pessoa do sócio, que presenta a sociedade empresária devedora, e de seus credores. Nesse sentido, redistribui este poder entre os envolvidos e, ainda, os representa como sujeito de direito, promovendo a justiça social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Quando a crise na empresa, seja ela econômica ou financeira ou ambas, afeta determinada sociedade empresária, o devedor poderá se valer do instituto da recuperação judicial ou extrajudicial, que é um mecanismo criado pela lei 11.101/05 para superar essas crises que acometem as empresas. O objetivo da lei de falências e recuperação de empresas é preservar a empresa para que o empresário possa continuar a exercer sua função social (art. 47 da Lei 11.101/05).

A partir da entrada em vigor da lei 14.112/20, que modificou a lei 11.101/05, foi regulamentada a possibilidade de o juiz, no curso do processo, nomear o mediador para, através do diálogo, auxiliar o devedor empresário e seus credores na resolução do conflito existente entre eles, o que tem representado um grande avanço para o direito de empresas. A razão disso, deve-se ao fato de que a lei de falências e recuperação de empresas privilegia a autonomia privada a significar que os negócios jurídicos ali estipulados apenas dependem da manifestação das partes, não podendo o juiz se imiscuir na questão da viabilidade econômica da empresa. Isso implica dizer que o magistrado está limitado ao exame da legalidade do plano de recuperação judicial, que é formado pelo devedor e seus credores e aprovado através da Assembleia Geral dos Credores. Como este plano do devedor reveste a natureza jurídica de contrato, para que esse negócio jurídico seja realizado, a sociedade empresária faz-se presente na pessoa do sócio, desde que autorizado pelos atos constitutivos.

Diante do exposto, a presente pesquisa analisou a viabilidade da aplicação da teoria tridimensional da justiça social de Nancy Fraser à mediação na recuperação judicial. A mediação, como expressão da cidadania, promove o reconhecimento da pessoa porque o diálogo estabelecido entre o mediador e as partes envolvidas transforma o embate em um debate. Neste contexto, o poder de decisão que, na heterocomposição, pertence ao Estado, na autocomposição é transferido para os envolvidos que decidem o conflito entre si, promovendo a justiça social. A despeito disso, há o que se denomina de humanização do direito, pois o diálogo permite que todos que participam do debate alcancem um nível de autonomia em busca da melhor solução para a desavença.

Na recuperação judicial, o juiz nomeia um mediador para que participe da formação do plano do devedor e no seu cumprimento. Assim, através do diálogo o mediador auxilia o devedor, devidamente presentado pelo sócio e seus credores para que se chegue num consenso a respeito do valor do crédito que pretende receber, bem como com relação às cláusulas que farão parte do negócio jurídico em questão. Embora, neste caso, a mediação seja linear, porque visa a obtenção de um acordo, é possível afirmar que toda mediação tem um efeito transformador, pois o diálogo promovido pelo mediador permite que o sócio olhe para si a partir do olhar dos credores, o que traz o reconhecimento de ambos como pessoa humana. Em outras palavras, a mediação na recuperação judicial é compatível com a teoria tridimensional de Nancy Fraser haja vista que promove o reconhecimento da pessoa do sócio e dos credores, redistribui o poder entre eles e os representa como sujeitos de direitos. A mediação é, assim, um mecanismo de reconhecimento dos próprios direitos humanos.

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Sobre a autora
Patrícia Filomena Fonseca Amaral

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Petrópolis (PPGD/UCP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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