O elefante que ninguém viu. Considerações sobre as alterações da Lei nº 6.015/1973 pela Lei nº 14.382/2022

15/07/2022 às 18:21
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Foi recentemente aprovada a Lei nº 14.382/2022, resultante da sanção do projeto de conversão da Medida Provisória nº 1.085/2021. A nova lei traz diversas novidades, em variados campos, tendo por principal escopo o aperfeiçoamento do sistema eletrônico de registros públicos, concebido originalmente pelo art. 37 da Lei nº 11.977/2009. A par desse objetivo principal, são introduzidas diversas alterações em leis correlatas à atividade registral, inclusive na Lei de Registros Públicos, não necessariamente relacionadas com o referido sistema eletrônico.

Tenho assistido todas as lives sobre a nova Lei nº 14.382/2022 que minha agenda consegue acomodar, assim como tenho acompanhado os comentários em várias redes sociais e grupos de discussão voltados para o Direito Registral Imobiliário de que participo.

A imensa maioria dessas manifestações tem se voltado para a análise e exaltação da desjudicialização da ação de adjudicação compulsória, feita pelo novo art. 216-B da Lei de Registros Públicos. Sem dúvida, trata-se de inovação importante, possibilitando que, por meio de um procedimento administrativo conduzido perante o registrador de imóveis, se realize a adjudicação compulsória extrajudicial, aliviando o Judiciário dessa carga.

Impressiona-me, entretanto, o silêncio quase absoluto a respeito de uma novidade muitíssimo mais importante em suas repercussões práticas, capaz de modificar profundamente o cotidiano dos negócios imobiliários. Refiro-me ao cancelamento extrajudicial do registro de compromisso de compra e venda, instituído pelo novo art. 251-A da Lei de Registros Públicos.

Explico melhor.

Todos os dias são celebrados no país centenas, talvez milhares, de contratos de compra e venda com pagamento parcelado. É comum, nesses casos, que seja incluída no contrato uma cláusula estabelecendo uma condição resolutiva expressa (antigo pacto comissório), em que se ajusta que, não pago o preço, o contrato estará desfeito.

Ainda que o art. 474 do Código Civil afirme que tal cláusula opera de pleno direito, essa expressão não tem o alcance que parece ter à primeira vista. Verificado o inadimplemento do comprador, o vendedor prejudicado terá inevitavelmente de recorrer a uma ação judicial para reaver a propriedade, com toda a dificuldade e demora que representa.

Haveria alguma forma de evitar a ação judicial? O mercado criou uma figura híbrida, em que se agrega o contrato de compra e venda a um mútuo com garantia de alienação fiduciária. Funciona assim: o comprador contrai uma dívida para o vendedor, correspondente ao valor parcelado do preço, de sorte que, se a dívida não for paga, o vendedor, como credor, poderá postular a execução extrajudicial dessa dívida, na forma dos artigos 26 a 28 da Lei nº 9.514/1997. Essa solução tem vantagens e desvantagens: por um lado, isenta o vendedor, quando ele é loteador ou incorporador, dos efeitos da chamada Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018); por outro, obriga o vendedor à realização de leilões públicos, e só na ausência de interessados é que ele poderá reaver o imóvel para si.

E quando o vendedor não é loteador ou incorporador? Ou seja, quando é, por exemplo, um cidadão comum, que resolve vender o imóvel que não mais lhe interessa? A opção mais utilizada na prática vinha sendo a compra e venda com cláusula resolutiva. Essa solução, porém, como dito antes, obriga o vendedor a ter de entrar na Justiça quando o comprador falha no pagamento das parcelas.

Essa é a grande novidade do art. 251-A. Agora, basta que o vendedor, ao invés de celebrar com o comprador uma escritura de compra e venda, faça um contrato de compromisso de compra e venda. Esse contrato, que pode ser celebrado por escritura pública ou instrumento particular, será registrado na matrícula do imóvel, o que protege o promitente comprador. E o promitente vendedor, caso se depare com o não pagamento do preço, poderá pleitear, perante o Registro de Imóveis, o cancelamento do registro do compromisso. O registrador dará ciência do pedido ao promitente comprador e, não ocorrendo o pagamento dos atrasados no prazo de trinta dias, o registro do compromisso será cancelado. Tudo isso em poucas semanas.

Talvez pareça pouco à primeira vista, mas livrar o promitente vendedor de entrar na Justiça é um passo gigantesco. Trata-se, em realidade, da primeira vez em que fora do contexto específico dos negócios celebrados por loteadores a lei admite a rescisão extrajudicial de um negócio voltado para a alienação de um imóvel. O imóvel vendido muitos vezes é uma parte substancial do patrimônio do indivíduo, e ver esse patrimônio preso anos a fio a uma ação judicial pode ser uma catástrofe pessoal.

O compromisso de compra e venda, seja pela possibilidade de cancelamento extrajudicial, seja pela adjudicação compulsória extrajudicial, é um dos grandes protagonistas do ambiente de negócios estimulado pela nova lei. Na medida em que advogados, corretores e tabeliães se derem conta dessa grande inovação, as escrituras de compra e venda com condição resolutiva serão abandonadas em prol da utilização cada vez mais intensa do compromisso de compra e venda registrado no Registro de Imóveis.

Sobre o autor
Francisco José Barbosa Nobre

Registrador imobiliário no Paraná. Ex-professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-professor da Faculdade de Direito da UniBennett. Ex-professor da Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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