Lei de drogas: As modificações normativas em detrimento a seletividade penal na tipificação do traficante

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RESUMO:

O presente artigo visa analisar os aspectos de grande relevância na Política de Drogas nacional. Contendo uma breve explanação acerca das modificações implementadas na Lei de Drogas, no tocante às penas para usuários e traficantes de drogas, desta forma, busca problematizar a eficiência de tais alterações principalmente no que se refere a aplicação do art 28 da referida Lei, assim como, os aspectos subjetivos na diferenciação entre usuário e traficante de drogas. Sendo assim, a interpretação do juiz do parágrafo 2° do art. 28 assume fundamental importância em tal diferenciação, podendo acarretar sérios problemas como por exemplo a seletividade no combate às drogas.

Palavras-chave: Lei de Drogas; Usuário; Traficante de drogas.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a política de drogas tornou-se alvo de grandes debates e discussões no âmbito nacional, sendo esta, de múltiplos fatores, assim como, de realidades sociais diversas, tornando-se um tema demasiadamente complexo. Por ter um alto grau de complexidade a drogadição é um fenômeno que tende a ser abordado de forma predominantemente emocional, nomeadamente em virtude da faticidade de cada intérprete. No tocante ao âmbito legislativo, observam-se alterações no que diz respeito a tal política a partir da Lei de Drogas (Lei 11.343/06), tanto na observância em relação ao traficante de como também ao usuário de drogas.

No entanto, pode-se constatar distorções na aplicação da lei supracitada, principalmente no diz respeito aos critérios utilizados na diferenciação entre usuário e traficante de drogas. Assim, a má aplicação de tais critérios pode influenciar diretamente na população carcerária. De forma que, segundo Campos (2016) nossa população carcerária dos delitos relacionados às drogas saltou de 32.880 no ano de 2005 para 146.276 presos no final de 2013, o que se demonstra alarmante tendo em vista, que, a pena privativa de liberdade é aplicada apenas no casos de tráfico de drogas.

MÉTODO

A metodologia utilizada no presente artigo baseia-se-á na pesquisa bibliográfica. Tal pesquisa, se dará a partir de livros, artigos científicos e pesquisas nacionais, com o intuito de analisar a aplicação penal no combate às drogas com ênfase na distinção entre traficante e usuário de drogas, bem como, os problemas acarretados a partir de decisões judiciais seletivas.

Além disso, por meio da revisão bibliográfica busca-se analisar as transformações em alguns dispositivos penais da Lei de Tóxicos, e consequentemente suas implicações no contexto social. Sendo objeto de análise também no artigo, a pesquisa nacional sobre a aplicação do artigo 28 da Lei de Drogas, feita pena SENAD em 2016.

MODIFICAÇÕES NORMATIVAS

As inovações trazidas pela referida Lei, tal como, a aplicação de tais modificações no meio jurídico, necessitam de uma análise. Deste modo, de acordo com a SENADE (2016):

O porte de drogas para uso próprio, antes punível com pena de prisão, passou a levar exclusivamente a penas alternativas - a saber, advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida de a programa ou curso educativo. (p. 11).

Assim, as penas a que o usuário está sujeito encontram-se no art. 28 da Lei 11.343/06, de forma que não se admite prisão em flagrante por porte de drogas para uso pessoal (SENADE, 2016, p.11). Isto é, não há hipótese de que o tratamento dado ao usuário de drogas tenha caráter privativo de liberdade, pelo contrário, este deve ser encaminhado a assistência médica e social para que possa receber o devido tratamento, de modo que este seja reinserido socialmente.

Seguindo, portanto, tendências internacionais avança-se para o abrandamento - ou, em certos casos, a abolição - das punições para o uso de drogas (SENADE, 2016, p.24), no caso do Brasil, abandonando a pena privativa de liberdade para os dependentes e usuários de drogas, de forma a encarar tal realidade social do ponto de vista da Saúde Pública e encaminhando tais indivíduos ao tratamento adequado.

No entanto, em se tratando do traficante de drogas alguns autores têm opiniões contrárias as modificações feitas, ressaltando que:

sob o manto enganador de supostos avanços decorrentes da não aplicação de pena privativa de liberdade para usuário, aumentou a pena mínima do traficante de drogas e 3 para 5 anos. Tal fato revela a incoerência político-criminal do legislador brasileiro, Pois de um lado suaviza a situação do usuário, embora continue, de forma inaceitável e conservadora, a prever uma conduta punida com supostas penas, e de outro impede, por exemplo, que um traficante primário (em geral jovens e oportunidades chamados mulas do tráfico) receba o benefício da substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, tendo em vista o quantum mínimo de pena que alcança 5 anos. (CALLEGARI; WEDY, 2008, p. 9-10).

Percebe-se o surgimento de um paradigma, que segundo Campos (2016), em um mesmo movimento político, reduz para um e aumenta para outro. Portanto, a mesma lei que visa uma abordagem de viés humanitário, tendo em vista, também a autonomia da vontade da pessoa humana em relação aos usuários e dependentes de drogas, torna a pena ao traficante de drogas mais severa, e reafirma a repressão estatal ao tráfico ilícito de drogas.

USUÁRIO OU TRAFICANTE?

Uma das grandes problemáticas do contexto atual é a distinção entre usuário e traficante de drogas. Analisando a Lei de Tóxicos, é perceptível que tanto o artigo 28 (que trata do usuário), bem como o artigo 33 (que disciplina sobre o tráfico de drogas), tipificam determinadas condutas que podem ser caracterizadas como sendo de uso e como sendo de tráfico, como as de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo(GANEM, 2016).

Dessa forma, a interpretação do julgador acerca dos aspectos contidos no parágrafo 2° do art. 28 da Lei de Drogas adquire um papel de fundamental importância nessa distinção. Assim, destaca GANEM (2016) que:

Nesse passo, pela interpretação sistemática da Lei nº. 11.343/06, não se pode compreender os tipos adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo substância entorpecente sem que se investigue a destinação da droga. Assim, aquele que comprar drogas pode ser usuário ou traficante; assim como quem transporta drogas pode praticar tal ato como sendo um usuário ou um traficante. (sem paginação).

Além disso, SAMPAIO (2012) também destaca:

Portanto para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, segundo o art. 28, §2º da Lei 11.343, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. Todos esses elementos terão que ser considerados em conjunto, não bastando apenas a existência de um elemento na determinação. (sem paginação).

Fica, portanto, perceptível que o papel do juiz em tal diferenciação, entre traficante de drogas e usuário dependerá da interpretação deste acerca do agente infrator e suas características sociais, e das circunstâncias em que este se encontra.

SELETIVIDADE PENAL

Sendo assim, de acordo com Campos a atual política brasileira de drogas possibilita uma seletividade nas decisões judiciais. Este problema é causado principalmente pela falta de critérios objetivos na identificação do traficante, o que propicia, em muitos casos, a arbitrariedade do julgador, ocasionando com que determinadas camadas sociais tenham uma probabilidade muito mais elevada em ser punida como tal, daí:

O grande problema, ao meu sentir, é que os critérios utilizados pela Lei para diferenciar o usuário do traficante ajudam a aumentar e a efetivar a seletividade existente no sistema penal, visto que a quantidade de substância apreendida; o local e condições em que se desenvolveu a ação criminosa; as circunstâncias da prisão; e a conduta e antecedentes do agente são critérios que possibilitam, via de regra, a caracterização do rico como usuário e do pobre como traficante.
O pobre, infelizmente, terá muito mais chance de ser considerado um traficante do que aquele que possui condições financeiras um pouco melhores, principalmente quando levamos em consideração o local e as condições em que se desenvolveu a ação, visto que o pobre quase sempre será flagrado em periferia, na boca de fumo, sendo esse inclusive um dos argumentos utilizados para a acusação de tráfico (foi flagrado com drogas em um local de intenso tráfico de drogas). (GANEM, 2016, sem paginação).

Ainda de acordo com Baratta há no contexto social uma situação desfavorável para indivíduos de camadas inferiores, isto se dá não só pela ação exercida por estereótipos e por preconceitos, mas também pela exercida por uma série de chamadas teorias de todos os dias, que o juiz tende a aplicar na reconstrução da verdade judicial (BARATTA, 2002, p.177). Assim, torna-se cotidiano a imputação como traficante a indivíduos de classes sociais mais baixas, sendo essa parcela, a maior parte da população brasileira.

Isso, pode explicar o salto nas condenações por tráfico de drogas desde as alterações na redação da Lei de Tóxicos, ao passo que, segundo Machado e Mena (2017) em 2005, antes da lei, 14% dos quais os presos foram condenados ou acusados eram relacionados ao tráfico. Em 2014 esse número subiu para 28% - um incremento da ordem de 340% em números absolutos. Baratta ainda destaca que:

Pesquisas empíricas têm colocado em relevo as diferenças de atitudes emotiva e valorativa do juiz, em face de indivíduos pertencentes a diversas classes sociais. Isto leva os juízes, inconscientemente, a tendências de juízos diversificados conforme a posição social dos acusados, e relacionados tanto à apreciação do elemento subjetivo do delito (dolo, culpa) quanto ao caráter sintomático do delito em face da personalidade[...]. Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência por parte dos juízes a esperar um comportamento conforme à lei a indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o inverso ocorre com indivíduos provenientes de estratos inferiores. (2002, p 177-178).

Vale ressaltar, então, que o juiz não está imune à estereótipos e preconceitos que podem influenciar de forma direta na aplicação penal em questão. Fato é, que 62% dos casos de flagrante por tráfico em São Paulo a pessoa era presa com menos de 100 gramas de droga; 80,6% dos detidos eram réus primários (MACHADO; MENA, 2017). Pode-se observar, então, que apesar das modificações na Lei de Drogas com um pensamento mais humanista em relação aos usuários e dependentes, não se estende ainda a grande parcela dos operadores do direito.

Recentemente, no ano de 2016 a SENAD, junto com o Conselho Nacional de Justiça e com as Faculdades de Direito e Medicina da Universidade de São Paulo, produziu uma pesquisa sobre a aplicação do artigo 28 da Lei n° 11.343/06 com resultados obtidos a partir de juízes, promotores, defensores e advogados. De acordo com a SENAD é perceptível que o sistema judiciário encontra-se distante da justiça restaurativa e reintegrativa objetivada pelo legislador, ao passo que:

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Preocupam ainda algumas verificações da pesquisa nacional - minoritárias convém ressaltar - que indicam decisões judiciais contrárias ao escopo e mesmo a literalidade da Lei n° 11.343/2016. Com base nos resultados, é de se supor - e de se temer - a existência, ainda que rara, de decisões judiciais vulneradoras de direitos de liberdade embasadas em disposições revogadas da lei anterior, cujas consequências podem ser consideradas graves. (SENADE, 2016, p.181-182).

Portanto, tal seletividade na distinção entre usuário e traficante de drogas é algo a ser combatido e extinto do sistema judiciário brasileiro, a partir de uma diminuição de critérios subjetivos, além, sendo de suma importância, da mudança de pensamento dos operadores do direito.

FALTA DE CRITÉRIOS OBJETIVOS

Tendo, portanto, lacunas subjetivas na lei em que critérios subjetivos deverão ser utilizados, principalmente no que diz respeito ao direito penal, abre espaço para a seletividade penal em relação a determinados grupos sociais, em que:

Tais grupos sociais costumam estar relacionado a grupos sociais mais débeis, nas quais o controle penal tende a atuar com maior incidência. Assim, lacunas legislativas que dão margem a subjetividades, como é o caso da diferenciação entre usuário e traficante, tendem a fazer recair sobre esse atores o rótulo de traficante, visto que ocupam grupos sociais estigmatizados. Nessa medida, o excesso de subjetividade possibilitado pela lei para que se aponte que se determinada pessoa portadora de drogas o fez para seu próprio consumo ou para a entrega a terceiro exige que a tipificação do fato pelas autoridades com atribuições e competência para tanto [...] seja feita com a mais absoluta prudência e o mais escrupuloso respeito a valores constitucionais fundamentais incidentes no campo penal e processual penal, com a intervenção penal mínima e o in dubio pro libertat. (SENADE, 2016, p.31)

Daí, percebe-se que o excesso de subjetividade na diferenciação entre usuário e traficante, aliados a falta de prudência a valores constitucionais, além da falta de investigação adequada por parte das autoridades competentes, pode acarretar em problemas seríssimos a sociedade, principalmente no que diz respeito a populações de classes inferiores.

Ainda no campo do debate de tal diferenciação, Martins (2008) nos traz o exemplo de Portugal, que apesar de ter uma política de drogas distinta da brasileira, adota critérios objetivos para a identificação do fim que seria dado a droga encontrada com o indivíduo. Para tal:

O principal critério a ter em conta na hora de distinguir uma contra-ordenação de um crime é a quantidade de substância ilícita encontrada na posse do indivíduo. As quantidades de referência são estimadas em o equivalente a 10 dias de consumo, para todas as substâncias. A Lei 30/2000 remete para a Portaria n° 94/96 que o artigo 9° estipula as doses médias diárias individuais para várias substâncias ilícitas. (MARTINS, 2008, p.83)

Sendo assim, existe uma tabela na qual o julgador pode se basear na tomada de decisão e distinguir o usuário do traficante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar das modificações normativas na Lei de Tóxicos, buscando um viés mais humanitário em relação ao usuário através do artigo 28 da referida lei, nota-se que tais transformações ainda não alcançaram o objetivo almejado pelo legislador. De forma, que aos operadores do direito no sistema judiciário ainda se torna necessário uma mudança de perspectiva no que se refere ao usuário.

Não obstante, há necessidade de extinção da seletividade judicial na tipificação do traficante, sendo esta, objeto de análise no presente artigo. Dessa forma, se faz necessário diminuir os critérios subjetivos presentes na lei.

Por fim, cabe um questionamento sobre a eficácia da Lei 11.343/06, e sobre a necessidade de critérios objetivos na distinção entre usuário e traficante de drogas. Tanto é que, a própria Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas adota algumas boas práticas, e busca divulgar estas tanto em livros, como também, por meio de suas pesquisas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: instituto de criminologia, 2002. p 256.

CALLEGARI, A. L; WEDY, M. T. Lei de Drogas: Aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 9-20, 2008.

CAMPOS, M. S. A atual política de drogas no Brasil: um copo cheio de prisão. 2016. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/a-atual-politica-de-drogas-no-brasil-um-copo-cheio-de-prisao/>. Acesso em: 12 nov. 2018.

GANEM, P. M. Traficante ou usuário de drogas?. 2016. Disponível em: <https://pedromaganem.jusbrasil.com.br/artigos/373859981/traficante-ou-usuario-de-drogas>. Acesso em: 14 nov. 2018.

MACHADO, L; MENA, F. País superlota cadeias com réus sem antecedentes e não violentos. 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1850004-pais-superlota-cadeias-com-reus-sem-antecedentes-e-nao-violentos.shtml>. Acesso em: 29 nov. 2018.

MARTINS, C. E. M. Lei de Drogas: Aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 63-86, 2008.

SAMPAIO, A. L. T. Seletividade no combate as drogas: Lei 11.343/2006. 2012. Disponível em: <https://www.jurisway.org.br/monografias/monografia.asp?id_dh=9430>. Acesso: 26 nov. 2018.

SENADE. Pesquisa nacional sobre a aplicação do artigo 28 da lei de drogas: perspectiva de atores jurídicos e usuários. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2016. 227 p.

Sobre o autor
Pedro Henrique Pereira da Rocha

Graduando em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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