Brasil, Direito e Ideologia

21/07/2022 às 21:55
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Crítica ao neoliberalismo que permeia a atividade legiferante nacional. Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. Eu não quero e nem irei me resignar. E você, leitor?

RESUMO

Este trabalho foi realizado numa perspectiva comparativa, nos âmbitos jurídico, histórico, sociológico e filosófico, sob método descritivo-crítico quanto ao Direito e Ideologia. Trata-se de um artigo voltado à criticidade quanto às balizas ideológicas fundantes do Direito, numa perspectiva acadêmica. Infelizmente, os estudantes não se atêm às nuances do discurso jurídico, fato que será brevemente exposto neste artigo científico, na esperança de um despertar à questão, a qual é latente, cruel e, com efeito, manifestada cotidianamente, seja na atividade legiferante, seja na aplicação do Direito ou seja no imaginário popular.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Ideologia; Direito Comparado; História do Direito; Sociologia jurídica;

ABSTRACT

This work was carried out in a comparative perspective, in the legal, historical, sociological and philosophical spheres, under a descriptive-critical method regarding Law and Ideology. It is an article focused on criticality regarding the founding ideological beacons of Law, from an academic perspective. Unfortunately, students do not stick to the nuances of legal discourse, a fact that will be briefly exposed in this scientific article, in the hope of an awakening to the question, which is latent, cruel and, in fact, manifested daily, whether in the legislating activity, whether in the application of law or whether in the popular imagination.

Keywords: Human Rights; Ideology; Comparative Law; History of Law; Legal Sociology;

RESUMEN

Este trabajo se realizó en una perspectiva comparada, en los ámbitos jurídico, histórico, sociológico y filosófico, bajo un método descriptivo-crítico respecto del Derecho y la Ideología. Se trata de un artículo centrado en la criticidad en torno a los faros ideológicos fundacionales del Derecho, desde una perspectiva académica. Desafortunadamente, los estudiantes no se apegan a los matices del discurso jurídico, hecho que se expondrá brevemente en este artículo científico, en la esperanza de un despertar a la pregunta, latente, cruel y, de hecho, se manifiesta a diario, ya sea en la actividad legisladora, ya sea en la aplicación de la ley o ya sea en el imaginario popular.

Palabras llave: Derechos Humanos; Ideología; Ley Comparativa; Historia del Derecho; Sociología jurídica;

INTRODUÇÃO

O Brasil sofre saques e pilhagens há séculos. Essa dinâmica foi catalisada pelo relacionamento entre indígenas e europeus, o qual moldou nossa cultura e, por conseguinte, o ordenamento jurídico pátrio.

A partir da década de 1970, com experiências de Chile e do Reino Unido, com o posterior Consenso de Washington de 1989, o mundo se viu entregue a uma ideologia perniciosa que nascia e destruía direitos por todo país que passou: o neoliberalismo.

No Brasil, devido à forte tradição desenvolvimentista, essa corrente demorou a se popularizar, fato que inseriu o Brasil tardiamente nessa lógica internacional de se pensar o capitalismo, porém seu efeito destrutivo não tardou a massacrar os brasileiros.

Esse trabalho, com efeito, foi realizado para incentivar o leitor a pensar o Direito de forma menos positivista e, sim, numa perspectiva etiológica, isto é, em busca das causas que fundamentam a produção político-normativa no País.

A cidadania passa por um pensamento macro, um entendimento social menos dogmático e mais crítico, amplo.

DA IDEOLOGIA E DO DIREITO

1 Breve esboço sobre a origem acadêmica do vocábulo ideologia

O primeiro registro do vocábulo ideologia, como indicam os historiadores e pesquisadores das demais áreas humanas, provém do contexto revolucionário francês, isto é, deriva da produção intelectual francófona entre os séculos XVIII e XIX.

O termo ideologia aparece pela primeira vez na França, após a Revolução Francesa (1789), no início do século XIX, em 1801, no livro de Destutt de Tracy, Eléments dIdéologie (Elementos de Ideologia). Juntamente com o médico Cabanis, com De Gérando e Volney, Destutt de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das idéias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Elabora uma teoria sobre as faculdades sensíveis, responsáveis pela formação de todas as idéias: querer (vontade), julgar (razão), sentir (percepção) e recordar (memória).

Esse grupo de pensadores, conhecidos como os ideólogos franceses, era antiteológico, antimetafísico e antimonárquico. Ou seja, eram críticos a toda explicação sobre uma origem invisível e espiritual das idéias humanas e inimigos do poder absoluto dos reis. Eram materialistas, isto é, admitiam apenas as causas naturais físicas (ou materiais) para as idéias e as ações humanas e só aceitavam conhecimentos científicos baseados na observação dos fatos e na experimentação. Pertenciam ao partido liberal e esperavam que o progresso das ciências experimentais, baseadas exclusivamente na observação, na análise e síntese dos dados observados, pudesse levar a uma nova pedagogia e a uma nova moral.[2]

Ora, salta aos olhos que, desde primeiro momento, o termo ideologia fora usado de forma combativa, crítica à tradição, contrária ao status quo e adverso ao propagandeado à época pelas elites ligadas ao Ancien Régime.

Ocorre que em 1812, o então famigerado Imperador da França, Napoleão Bonaparte, utiliza-se do vocábulo de forma pejorativa, com claro uso instrumental político em benefício próprio, mas com marcas sociais inefáveis.

O sentido pejorativo dos termos ideologia e ideólogos veio de uma declaração de Napoleão, que, num discurso ao Conselho de Estado em 1812, declarou: Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições de história. Com isso, Bonaparte invertia a imagem que os ideólogos tinham de si mesmos: eles que se consideravam materialistas, realistas e antimetafísicos, foram perversamente chamados de tenebrosos metafísicos, ignorantes do realismo político que adapta as leis ao coração humano e às lições da história.[3]

Anos mais tarde, em 1830, ideologia voltou às produções acadêmicas por meio do positivismo filosófico de Auguste Comte, outrossim na França. Nota-se, pois, um efeito dialético quanto ao conceito, em que a cientificidade é adequada ao contexto histórico, fato que culmina em um conceito dúplice.

O termo ideologia voltou a ser empregado com um sentido próximo ao do grupo de ideólogos franceses pelo filósofo Auguste Comte em seu Cours de Philosophie Positive (Curso de Filosofia Positiva). O termo, agora, possui dois significados: por um lado, a ideologia continua sendo aquela atividade filosófico-científica que estuda a formação das idéias a partir da observação das relações entre o corpo humano e o meio ambiente, tomando como ponto de partida as sensações; por outro lado, ideologia passa a significar também o conjunto de idéias de uma época, tanto como opinião geral, quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época.[4]

Quase no fim do século XIX, no ano de 1895, o pai da sociologia, Émile Durkheim, volta a contribuir na formação conceitual do vocábulo em sua obra Les règles de la méthode sociologique, fato que enriquece e possibilita novas análises acadêmicas quanto à ideologia.

Vamos reencontrar o termo ideológico no capítulo II do livro do sociólogo francês Émile Durkheim, As Regras do Método Sociológico.

Como se sabe, Durkheim tem a intenção de criar a sociologia como ciência, isto é, como conhecimento racional, objetivo, observacional e necessário da sociedade. Para tanto, diz ele, é preciso tratar o fato social como uma coisa, exatamente como o cientista da Natureza trata os fenômenos naturais. Isso significa que a condição para uma sociologia científica é tomar os fatos sociais como desprovidos de interioridade, isto é, de significações e interpretações subjetivas, de modo a permitir que o sociólogo encare uma realidade da qual participa como se não fizesse parte dela. Em outras palavras, a regra fundamental da objetividade científica é a separação entre sujeito do conhecimento e objeto do conhecimento, separação que garante a objetividade porque garante a neutralidade do cientista, que pode, assim, tratar relações sociais (relações entre seres humanos) como coisas diretamente observáveis e transparentes para o olhar do sociólogo. Assim sendo, Durkheim chamará de ideologia todo conhecimento da sociedade que não respeite tais critérios de objetividade.[5]

Apesar de todas essas colaborações, seria com o inigualável germânico Karl Marx que o termo ideologia seria popularizado, superando as barreiras acadêmicas e alcançando espaços sociais plurais e multifacetados.

Embora Marx tenha escrito sobre a ideologia em geral, o texto em que realiza a caracterização da ideologia tem por título: A Ideologia Alemã. Isso significa que a análise de Marx tem como objetivo privilegiado um pensamento historicamente determinado, qual seja, o dos pensadores alemães posteriores ao filósofo alemão Hegel.

(...)

escreve Marx, conhecemos apenas uma única ciência a ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, contudo, são inseparáveis: enquanto existirem homens, a história da natureza e história dos homens se condicionarão mutuamente. A história da natureza, ou ciência natural, não nos interessa aqui, mas teremos de examinar a história dos homens, pois quase toda ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração completa dela. A própria ideologia não é senão um dos aspectos dessa história.[6]

Portanto, Marx e Engels definem a ideologia como uma parcela distorcida e/ou abstrata da ciência da história, sempre lastreados numa análise de divisão laboral-econômica, A história não seria, com efeito, um desenvolvimento de ideias, mas de forças produtivas. Portanto, ao vocábulo ideologia, os ilustres germânicos atribuem caráter pejorativo.

Nas considerações sobre a ideologia em geral, Marx e Engels determinam o momento de surgimento das ideologias no instante em que a divisão social do trabalho separa trabalho material ou manual de trabalho intelectual. Para compreendermos por que esta separação aparecerá como independência de idéias com relação ao real e, posteriormente, como privilégio destas sobre aquele, precisamos acompanhar em linhas gerais o processo de divisão social do trabalho, tal como Marx e Engels o expõem em A Ideologia Alemã.[7]

Depreende-se, pois, que ideologia passou por diversas fases conceituais e que, nos tempos hodiernos, é carregada de caráter negativo, crítico, justamente pelas contribuições marxistas nas áreas de humanidades.

2 Dos conceitos de Direito e de Estado neste trabalho

Os vocábulos Direito e Estado são polissêmicos, portanto é necessário que se delimite seus usos para se evitar dubiedade.

Neste trabalho, pois, será utilizado Direito como conjunto de normas institucionalizadas, seja por meio da positivação, seja por meio de doutrina e/ou de jurisprudência.

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Não obstante, Estado será conceituado como pessoa jurídica pública institucionalizada. Em perspectiva jurídica, implantado mediante Constituição e, sob aspecto fático, ratificado pela prática do Direito, o qual garante a exteriorização das vontades e funções estatais.

3 Da ideologia no Direito

A Ideologia, numa perspectiva analítico-psicológica, é resultado inerente à capacidade cognoscível epistemológica do ser humano, isto é, todo indivíduo é limitado em seu saber, em suas emoções e em suas percepções da realidade.

O homem, como podemos perceber ao refletirmos um instante, nunca percebe plenamente uma coisa ou a entende por completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distância pode ver, quão acuradamente consegue ouvir, o quanto lhe significa aquilo em que toca e o que prova, tudo isso depende do número e da capacidade dos seus sentidos. Os sentidos do homem limitam a percepção que este tem do mundo à sua volta. Utilizando instrumentos científicos ele consegue, em parte, compensar a deficiência dos sentidos. Consegue, por exemplo, aumentar o alcance de sua visão através do binóculo ou apurar a audição por meio de amplificadores elétricos. Mas a mais elaborada aparelhagem nada pode fazer além de trazer ao seu âmbito visual objetos ou muito distantes ou muito pequenos e tornar mais audíveis sons fracos. Não importa que instrumentos ele empregue; em um determinado momento há de chegar a um limite de evidências e de convicções que o conhecimento consciente não pode transpor.[8]

Ocorre que a ideologia perpassa por uma resistência à mudança, seja pelo misoneísmo - medo do que é novo e desconhecido -, seja por interesses.[9]

Nesse sentido, Karl Marx e Friedrich Engels, ao analisarem o contexto macrossocial em que se insere a ideologia, chegaram à conclusão de que as elites - classes dominantes - instrumentalizam o Estado por meio de coerção e de coação - Direito - para manutenção de status quo e, outrossim, legitimam essa dominação por meio da ideologia ostentada, tanto em âmbito político, quanto em âmbito sociojurídico.

Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como Estado de Direito. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não-violenta, deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados, e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado - ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito - ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos. [10] CHAUÍ, 2008, página 83

Outrossim, a ideia de que o Direito seria a legitimação da violência ecoa nas obras de Hans Kelsen e de Alf Ross, consoante exposição do grande professor Óscar Correas.

Com efeito, segundo Kelsen, não é que o direito se valha ou que use a violência, mas sim que o direito é a própria organização da coação:

O que distingue a ordem jurídica de todas as outras ordens sociais é o fato de que regula a conduta humana através de uma técnica específica. Se ignoramos este elemento específico do direito e não o concebemos como uma técnica social específica e o definimos simplesmente como ordem e organização, e não como ordem (ou organização) coercitiva, perderemos a possibilidade de diferenciá-lo de outros fenômenos sociais.

(...)

No mesmo sentido opina Ross:

Um ordenamento jurídico nacional é um corpo integrado por regras que determinam as condições sob as quais deve ser exercida a força física contra uma pessoa Sinteticamente: um ordenamento jurídico nacional é o conjunto de regras para o estabelecimento e funcionamento do aparato de força do estado.[10]

Nesse sentido, o Direito Brasileiro foi fundamentado na organização da sistemática socioeconômica capitalista, sob ideologia neoliberal. Com efeito, essa escolha realizada no final do período militar, catalisada no governo de Fernando Collor de Mello e perpetuada desde então pelo Congresso Nacional, orientou os nomótetas nacionais durante a produção legiferante, por pelo menos, nos últimos 30 anos.

Podemos, portanto, interpretar a neoliberalização seja como um projeto utópico de realizar um plano teórico de reorganização do capitalismo internacional ou como um projeto político de restabelecimento das condições de acumulação do capital e de restauração do poder das elites econômicas. Defenderei a ideia de que o segundo desses objetivos na prática predominou. A neoliberalização não foi muito eficaz na revitalização da acumulação de capital global, mas teve notável sucesso na restauração ou, em alguns casos (a Rússia e a China, por exemplo), na criação do poder de uma elite econômica. O utopismo teórico de argumento neoliberal, em conclusão, funcionou primordialmente como um sistema de justificação e de legitimação do que quer que tenha sido necessário fazer para alcançar esse fim. Os dados sugerem, além disso, que quando os princípios neoliberais conflitam com a necessidade de restaurar ou sustentar o poder da elite, esses princípios são ou abandonados ou tão distorcidos que se tornam irreconhecíveis.[11]

Portanto, na exposição abaixo serão exemplificadas as afirmações acima realizadas, com a clara consciência de impossibilidade material de se exaurir o tema em um artigo científico.

4. Da ideologia do Direito Brasileiro

É inexequível, em apenas algumas dezenas de páginas, traçar todos os casos em que o Direito Pátrio traz, em suas prescrições, a ideologia capitalista neoliberal.

Ocorre que a imensa maioria da população, incluindo-se grande parte de aplicadores do Direito, quiçá questionam as escolhas legislativas realizadas pelas decisões políticas pátrias.

Ora, pois, iniciemos pela Constituição da República Federativa do Brasil. A Assembleia Constituinte, durante o processo constituinte originário[12], desempenhou papel político conciliador, democrático e plural na elaboração da Carta de 1988.

Nesse sentido, interesses diametralmente opostos foram sopesados e inseridos, porém sob evidente orientação social, fato que levou Ulysses Guimarães a chamá-la de Constituição Cidadã.[13]

Um dos pontos centrais de proteção da sociedade seria o controle do sistema financeiro, diante a interesses gananciosos estrangeiros e, outrossim, de elites internas, sem o menor comprometimento com o desenvolvimento nacional. Essa proteção social fora garantida no artigo 192, in litteris:

CAPÍTULO IV

DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:

I - a autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização de que trata este inciso;

II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial ressegurador;

II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 13, de 1996)

III - as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista, especialmente:

a) os interesses nacionais;

b) os acordos internacionais

IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central e demais instituições financeiras públicas e privadas;

V - os requisitos para a designação de membros da diretoria do banco central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos após o exercício do cargo;

VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósitos até determinado valor, vedada a participação de recursos da União;

VII - os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento;

VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.

§ 1º A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociável e intransferível, permitida a transmissão do controle da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e reputação ilibada, e que comprove capacidade econômica compatível com o empreendimento.

§ 2º Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de responsabilidade da União, serão depositados em suas instituições regionais de crédito e por elas aplicados.

§ 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.[14]

Ora, cerca de apenas 15 anos após a promulgação da Carta, a emenda constitucional 40 de 2003 mitigou a ingerência estatal sobre o sistema financeiro nacional, sob clara influência neoliberal, isto é, defendendo a tese de que o Estado deveria ser mínimo e eventuais regulamentações no mercado financeiro fugiriam à finalidade estatal.

Percebe-se, com efeito, que a ideologia é explícita, literal e visível a todos que tiverem o mínimo interesse em analisá-la: não fica nas entrelinhas, é sempre hasteada como bandeira e como fundamentação.

Se na Constituição Federal percebemos seu dilaceramento motivado pelo neoliberalismo, há em todo ordenamento exemplos contemporâneos claros dessa ideologia.

No Código Civil, o instituto da Desconsideração da Pessoa Jurídica foi dificultado com a lei 13.874 de 2019, a qual previu condições mais rígidas para sua concessão: desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Frise-se que a própria lei delimita a conceituação jurídica desses institutos, num claro movimento legislativo de restrição à tutela estatal quanto a negócios jurídicos privados.

Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)[15]

Ora, a sistemática penal talvez seja a esfera jurídica em que o caráter capitalista neoliberal mais se acentue e inflija suas crenças: vivemos em um país em que gerir fraudulentamente uma instituição financeira (artigo 4 da lei 7.492/1986) é punida com o dobro da pena em abstrato máxima de um infanticídio (artigo 129 do decreto-lei 2.848/1940).

Infanticídio

Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:

Pena - detenção, de dois a seis anos.[16]

Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira:

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.[17]

Se não bastasse isso, ao se compulsar os crimes patrimoniais, percebe-se a completa irrazoabilidade e desproporcionalidade das penas previstas a esse gênero em face às demais punições.

A infeliz constatação à qual se chega é a de que, dentro do ordenamento pátrio, a vida é bem jurídico tutelado de menor importância que o patrimônio, postulado capitalista neoliberal explícito amplamente positivado.

Se não bastasse, o Direito do Trabalho, eterno vilão de ideólogos neoliberais, foi desfigurado nos últimos 6 anos, bem como o movimento sindical sofreu duras perdas normativas.

Sob uma intensa contrapropaganda, os sindicatos foram pintados como inimigos do trabalhador, numa clara ideia neoliberal. A atomização do indivíduo, a precarização do trabalho, o egoísmo extremo, o narcisismo ultrarradical e a cultura do empresário de si mesmo resultou, no âmbito legislativo, no dilaceramento de acordos coletivos de trabalho, na dispensabilidade de sindicatos e, portanto, na mitigação da defesa do empregado perante empregadores.

Art. 477-A. As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

Art. 477-B. Plano de Demissão Voluntária ou Incentivada, para dispensa individual, plúrima ou coletiva, previsto em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, enseja quitação plena e irrevogável dos direitos decorrentes da relação empregatícia, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)[18]

Como último exemplo, a lei 14.230 de 2021 é exemplo indubitável da influência neoliberal generalizada. Essa norma simplesmente dilacerou, destruiu e mitigou ao máximo a lei 8.429 de 1992, a qual dispunha sobre improbidade administrativa.

Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)[19]

Ora, sob ideologia de Estado mínimo, de exaltação das grandes corporações, da magnificação de empresários e de precarização do Estado, leis semelhantes são aprovadas diariamente há 30 anos, num espúrio movimento de ataque a direitos e de defesa da assimetria fática em que vivemos.

CONCLUSÃO

O Brasil precisa se libertar desse espúrio, triste e revoltante movimento neoliberal, do qual sofre, durante 30 anos, sem trégua e sem cessar..

Vivemos em tempos em que megaempresários patrocinam e defendem teses neoliberais abjetas como, por exemplo, aumento de desigualdade, de forma explícita, sem o menor pudor, sendo que o Brasil é o 7º país mais desigual do mundo segundo o Índice de GINI, fato público e notório.

Espero que esse trabalho acenda uma faísca no leitor a ponto de se questionar se o rumo da Nação, escolhido por representantes neoliberais, corresponde à consciência e à melhor escolha dentre tantas alternativas possíveis.

Parafraseando-se livremente Darcy Ribeiro, só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. Eu não quero e nem irei me resignar. E você, leitor?

REFERÊNCIAS

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BONAVIDES, Paulo. In Ciência e política. 8ª edição. São Paulo, SP: Editora Malheiros, 2000;

CORREAS, Óscar. In Crítica da Ideologia Jurídica. 1ª edição. Porto Alegre, RS: Editor Sérgio Antônio Fabris, 1995;

CHAUÍ, Marilena. In O que é ideologia. 2ª edição. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 2008;

FICO, Carlos. In História do Brasil Contemporâneo: da morte de Vargas aos dias atuais. 1ª edição. São Paulo, SP: Editora Contexto, 2015;

HARVEY, David. In O neoliberalismo. História e implicações. 1ª edição. São Paulo, SP: Editora Loyola, 2008;

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SARMENTO, Daniel. In Dignidade da Pessoa Humana. 1ª edição. Belo Horizonte, MG: Editora Fórum, 2016;


 2 CHAUÍ, 2008, página 25;

3 CHAUÍ, 2008, páginas 27 e 28;

4 CHAUÍ, 2008, páginas 28 e 29;

5 CHAUÍ, 2008, páginas 31 e 32;

6 CHAUÍ, 2008, páginas 34 e 36;

7 CHAUÍ, 2008, páginas 34 e 36;

8 JUNG, 2022, página 21;

9 JUNG, 2022;

10 CHAUÍ, 2008, página 83;

11 CORREAS, 1995, página 58;

12 HARVEY, 2008; 

13 BRANCO, COELHO E MENDES, 2009;

14 FICO, 2015; 

15 BRASIL, 1988;

16 BRASIL, 2002;

17 BRASIL, 1940; 

18 BRASIL, 1986

19 BRASIL, 1943;

20 BRASIL, 1992;

Sobre o autor
Fernando Luz Sinimbu Portugal

Graduado em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015); especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017); especialista em Direito Constitucional (2021); Direito Administrativo (2021); Direito Civil e Direito Processual Civil (2021) e em Ciências Criminais (2021); em Direitos Humanos (2023) e em Ensino à Distância (2023) no Centro Universitário União das Américas - Uniamérica; graduado em Teologia (2022), em História (2023) e em Administração (2023) na Universidade Estácio de Sá. Mestrando em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2023-2025).

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