Doença preexistente não se confunde com invalidez preexistente: Reserva de vagas para deficientes e exclusão de candidato do concurso público com base em doença crônica causadora de deficiência.

24/07/2022 às 23:04
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O Estatuto da Pessoa com Deficiência ingressou no ordenamento jurídico com status de emenda constitucional, por versar sobre assunto disciplinado em tratado de direitos humanos, o qual foi internalizado com quórum previsto pelo art. 5º, § 3ª, da CRFB, para tanto.

Esse diploma legal é um importante instrumento de inclusão de pessoas com deficiência na sociedade.  Com o advento do Estatuto, várias leis deixaram de ser recepcionadas pela Constituição, visto que são anteriores ao mesmo,  as quais  se mantêm no ordenamento jurídico porque os agentes legitimados não se preocuparam em acompanhar a realidade fática, ou porque ainda não se atentaram ao conflito de normas.

A reserva de vagas para deficientes consiste numa ação afirmativa, a qual foi positivada como forma de viabilizar a participação de pessoas com deficiência em concurso público, em atenção ao princípio da Isonomia. Ou seja, participação de candidatos que não estão em condição de igualdade com as pessoas da chamada ampla concorrência, em razão das limitações físicas, psicológicas e barreiras atitudinais, entre outras.

No que diz respeito ao mundo real dos concursos públicos, algumas bancas parecem utilizar a comissão biopsicossocial, prevista pelo art. 2º, da lei 13.146/15, para excluir da participação no concurso pessoas que tenham doenças degenerativas, ou crônicas, notadamente aquelas listadas no art. 146, da lei 8112/90, que ensejam aposentadoria por invalidez.

Argumenta-se o prejuízo à continuidade do serviço público, ou o direito imediato à aposentadoria por invalidez, com direito a proventos integrais, o que não faz o menor sentido. No primeiro caso porque a reserva de vagas é determinação legal, que contempla pessoas com maior grau de dificuldade quando comparadas às pessoas sem deficiência, portanto a norma visa a proteger o deficiente, não a eficiência da Administração Pública. No segundo caso porque ninguém pode afirmar se ou quando uma incapacidade superveniente vai acontecer. O que deve ser analisada é a condição de desempenho das atividades inerentes ao cargo, que segundo a jurisprudência do STJ e STF sequer deveria ocorrer no momento da investidura, mas sim durante o estágio probatório, o que se infere do art. 44, Decreto Federal nº 3.298/1999 combinado com o art. 20, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Além disso, para que o servidor seja aposentado por invalidez é necessário que a perícia constate a impossibilidade de exercício na função ocupada, ou outra função para qual o doente crônico possa vir a ser readaptado. Quanto aos proventos integrais, a legislação foi alterada recentemente.

Cabe asseverar que, até é possível vislumbrar que nem toda pessoa com doença crônica ou degenerativa será enquadrada no conceito de deficiente. No entanto, não é possível negar àquelas que estão enquadradas no conceito de deficiente do artigo segundo do Estatuto do Deficiente, cuja deficiência foi comprovada por laudo médico oficial, excluindo a mesma de um concurso público, sob a justificativa da  possibilidade de progressão de doença, que venha a tornar a pessoa incapaz.

Ou seja, o indivíduo, que já sofre limitações físicas,  sofrerá  também limitações sociais e econômicas, por estar sendo negado o exercício de seus direitos fundamentais.

 Ao admitir que essas pessoas não têm direito a concorrer à vaga de deficiente e tampouco à vaga de ampla concorrência, teríamos um absurdo jurídico que seria a exclusão de uma pessoa - apta para o serviço público - da vida em sociedade (direito ao trabalho, ao salário, à liberdade profissional), aniquilando seus direitos fundamentais. 

Se existe a solidariedade social para pessoas que nunca trabalharam e têm a garantia do direito de receber o benefício de prestação continuada, por que não há solidariedade social para aqueles que ainda podem produzir por muitos anos? Se para o BPC todos têm que dividir o ônus da falta de acesso ao sistema previdenciário de pessoas que nunca contribuíram, a mesma solidariedade social deveria nortear a garantia dos direitos fundamentais dos doentes crônicos, na condição de deficientes.

Por que retirar o direito ao trabalho daqueles cuja doença em tese ensejaria à aposentadoria por invalidez? Não seria uma questão de conformação prática entre os princípios da Dignidade da Pessoa Humana  e a já superada Supremacia do Interesse público?

O ordenamento jurídico certamente garante a todos um leque de condições para vida digna, proporcionando um mínimo existencial, o qual vem sendo construído ao longo do tempo pela evolução social, que materializa assim um núcleo intangível dos direitos fundamentais. 

Qual a diferença entre um deficiente que tem limitações decorrentes de uma doença crônica e outro? Se uma pessoa com deficiência, está numa cadeira de rodas; ou tem graves limitações no convívio social em razão de autismo; por que não permitir a participação no concurso de uma pessoa que tenha doença degenerativa, ou crônica, cujo agravamento poderá, ou não, levar a uma condição de incapacidade de locomoção e/ou a necessidade de utilização de órteses, ou tecnologia assistiva, já utilizadas por outro deficiente?

Se um deficiente visual pode ter auxílio de uma terceira pessoa para trabalhar no serviço público (atendente pessoal) seria isonômico impedir a participação de outra pessoa que no momento da avaliação biopsicossocial não tem impedimento para o exercício da atividade burocrática para qual prestou concurso? Não se estaria condenado à marginalidade um grupo de pessoas que não tem culpa de ser acometidas por doença grave e cujo peso deveria ser dividido com o Estado e toda a sociedade

Avanços de tratamentos médicos, mais 30 pesquisas apontam novos tratamentos para Doença de Parkinson (fonte: Clinical Trials); o perfil da pessoa acometida pela doença; a resposta individual aos medicamentos; a atividade física que impede o avanço da doença; a neuroplasticidade: nada disso vem sendo considerado, o que gera uma grave violação de direitos humanos. 

Onde fica a isonomia material? Será que uma pessoa com uma doença pré-existente seria automaticamente incapaz? Será que a limitação física, mental,  sensorial ou intelectual, do deficiente que não tem doença crônica é mais merecedora de proteção do ordenamento jurídico que a limitação das pessoas que poderiam vir a ter uma incapacidade parcial futura? 

Se a lei garante que o deficiente atual possa levar uma vida normal por meio da tecnologia assistiva, ou atendente pessoal, ou alguma lei que garanta sua participação (como o autismo), quem garante que a pessoa acometida por doença crônica não poderá?

Resta patente que as normas que excluem os portadores de doenças graves do serviço público são preconceituosas e ultrapassadas. 

A Convenção da Guatemala, na qual os países signatários, incluindo o Brasil, se comprometeram a tomar medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra natureza, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência e proporcionar a sua plena integração à sociedade, reafirmou-se que as pessoas portadoras de deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que outras pessoas e que estes direitos, inclusive o direito de não ser submetidas a discriminação com base na deficiência, que emanam da dignidade e da igualdade que são inerentes a todo ser humano.

Esta convenção definiu a discriminação contra  pessoas portadoras de deficiência, nos seguintes termos:

a) O termo "discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência" significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, consequência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.

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b) Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação.

Ademais, nestes casos deve ser apurada eventual prática do crime previsto pelo art. 8º da Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989:

 " Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa: (...) II - obstar inscrição em concurso público ou acesso de alguém a qualquer cargo ou emprego público, em razão de sua deficiência; " 

No contexto da evolução social, as leis cada vez mais se amoldam a essa dinâmica. As pessoas negras têm proteção legal para que não sofram discriminação e preconceito, o qual tem raízes históricas relAcionadas ao período de escravidão . Inclusive  para assegurar a redução da desigualdade social,  estes também têm direito a concorrer por cotas nos concursos públicos. Do mesmo modo, a mulher conquistou o direito de votar e ser votada. Os homossexuais receberam proteção jurisprudencial contra  homofobia, passaram a ter direitos patrimoniais decorrentes da união de pessoas do mesmo sexo, bem como direitos previdenciários. As crianças não podem mais sofrer violência física sob o argumento de disciplina. É a evolução da vida em sociedade que enseja o surgimento de normas protetivas, estando vedado o retrocesso. 

O decurso do tempo pode trazer coisas boas como a melhora da capacidade produtiva (tratamentos, medicamentos, neuroplasticidade, ciência),  e ruins, como a perda da mesma, tanto para os portadores de doenças graves, como para quaisquer pessoas.

Num futuro breve, espera-se que haja mais consciência acerca da individualidade da condição de pessoas com doenças graves geradoras de deficiência, a qual permite que esta concorra dentro das vagas destinadas a pessoas com deficiência, mas que apesar de serem prévias ao concurso, não as transformam por si só em pessoas inválidas, pois doença preexistente não é invalidez preexistente. 

Enquanto esse tempo não chega cabe ao Ministério Público, a Defensoria Pública, a Administração Pública Direta e Indireta,  associações constituídas há mais de 1 (um) ano, que incluam, entre suas finalidades institucionais, a proteção dos interesses e a promoção de direitos da pessoa com deficiência, o Legislativo e o JudiciÁrio propor medidas contra o preconceito e a discriminação. 

É preciso que se garanta  um lugar de participação na sociedade, afastando o preconceito decorrente destas normas arcaicas e que se valorize a superação e dedicação destes, possibilitando  uma vida mais digna, justa e igualitária. Ao que tudo indica, este é só o início de uma mudança de perspectiva, para um olhar para o futuro com mais empatia. 

Por fim é importante lembrar que  o deficiente pode comunicar as ilegalidades cometidas em concursos públicos aos Órgãos de Controle Externo da Administração Pública: Comissão de Direitos da Pessoa com Deficiência da AssemblEias Legislativas, Tribunal de  Contas, que são responsáveis pelo controle de legalidade dos atos de admissão de pessoal, ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pelo Disk 100, e ao Ministério Público e ainda registrar na delegacia a ocorrência do crime supramencionado. Se nada disso funcionar cabe solicitar ajuda da ONU em razão do descumprimento do tratado.

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 Na condição de advogada portadora da doença de Parkinson, peço que reflitam: não nos matem em vida. Não nos incapacitem, se somos capazes. Existe vida depois de um diagnóstico. Tratamentos médicos custam caro. Por isso, se o Estado não permite que o doente crônico trabalhe, ele vai ter que fornecer seus medicamentos. Não seria muito melhor que estes doentes crônicos pudessem comprar seus medicamentos com a contraprestação de seu trabalho digno?




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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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