No exercício da advocacia, o profissional depara-se muitas vezes com situações que denotam verdadeira falha na prestação de serviços públicos essenciais, que violam direitos e podem ensejar a reparação por danos materiais e morais.
No presente artigo, aborda-se a interrupção indevida do serviço de energia elétrica, na hipótese do consumidor encontrar-se adimplente, ou seja, sem nenhuma conta vencida e, devido a erros no sistema das concessionárias, sofrer tal gravame, que muitas vezes dá-se sem nenhum aviso prévio e com a afixação de lacres ou adesivos contendo informações que geram exposições públicas deletérias e desnecessárias.
Toda essa situação pode ser inicialmente evitada se os prepostos das empresas, antes da interrupção, acionarem os moradores no interior da residência, para que possam confirmar, ou não, a existência do suposto débito. Vale dizer que o aviso prévio é imprescindível, encontrando fundamento no art. 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor (CDC - Lei 8.078/90), pois é direito do consumidor ser totalmente informado de todas as situações que lhe envolvem.
Além disso, o aviso prévio também encontra previsão expressa no art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95, que versa sobre o regime de concessão e permissão nos serviços públicos, ipsis litteris:
Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
[...]
§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
Levando em consideração que a relação havida entre a concessionária e o consumidor é balizada pelas diretrizes da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), deve ser observada, in casu, a Resolução Normativa nº 1.000/21[3], que estabelece as Regras de Prestação do Serviço Público de Distribuição de Energia Elétrica, cujo art. 360 prevê expressamente que:
Art. 360. A notificação ao consumidor e demais usuários sobre a suspensão do fornecimento de energia elétrica deve conter:
I - o dia a partir do qual poderá ser realizada a suspensão do fornecimento, exceto no caso de suspensão imediata;
II - o prazo para o encerramento das relações contratuais, conforme art. 140;
III - a informação da cobrança do custo de disponibilidade, conforme art. 322; e
IV - no caso de impedimento de acesso para fins de leitura, as informações do inciso IV do art. 278.
§ 1º A notificação deve ser realizada com antecedência de pelo menos:
I - 3 dias úteis: por razões de ordem técnica ou de segurança; ou
II - 15 dias: nos casos de inadimplemento.
Por conseguinte, qualquer interrupção do serviço de energia elétrica exige prévia comunicação, escrita e com antecedência, quer seja por questões de ordem técnica, quer seja por inadimplemento do usuário.
Porém, muitas vezes não se verifica tal comunicação e o consumidor só tomará conhecimento quando for acender uma lâmpada ou utilizar algum equipamento elétrico e restará impossibilitado de usufruir do serviço essencial, sujeitando-se, ainda, à vexação pública, pelo fato do lacre de interrupção temporária ou suspensão do fornecimento ficar à vista de todos, junto ao medidor de energia.
A seu turno, o art. 361 da Res. Normativo ANEEL nº 1001/21 traz a lume as hipóteses de suspensão indevida do fornecimento:
Art. 361. A suspensão do fornecimento de energia elétrica é considerada indevida se:
I - o pagamento da fatura tiver sido realizado até a data limite contida na notificação para suspensão do fornecimento; ou
II - a suspensão for efetuada sem observar o disposto nesta Resolução. (Grifos nossos)
E em tais circunstâncias, de interrupções ou suspensões indevidas e que configuram patente constrangimento e já foram reportadas em algumas localidades do país, o que deverá fazer o consumidor? Deverá entrar imediatamente em contato com a concessionária do serviço público, informando sobre o equívoco e o descabimento daquela medida, exigindo a devida solução que, nos termos do art. 362 da Resolução Normativa da ANEEL nº 1.000/21, deverá ser atendida em até 4 (quatro) horas:
Art. 362. A distribuidora deve restabelecer o fornecimento de energia elétrica nos seguintes prazos, contados de forma contínua e sem interrupção:
I - 4 horas: para religação em caso de suspensão indevida do fornecimento;
III - 8 horas: para religação de urgência de instalações localizadas em área rural;
IV - 24 horas: para religação normal de instalações localizadas em área urbana; e
V - 48 horas: para religação normal de instalações localizadas em área rural.
§ 1º Em caso de suspensão indevida:
I - a contagem do prazo de religação inicia a partir da constatação da situação ou comunicação do consumidor e demais usuários, independentemente do dia e horário; e
II - a distribuidora deve creditar ao consumidor e demais usuários a compensação disposta no art. 441. (Grifos nossos)
Ademais, a interrupção temporária e a suspensão da energia elétrica, nos moldes descritos estão em pleno desacordo com o ordenamento jurídico pátrio, violando o art. 22 do CDC que determina a continuidade dos serviços essenciais, dentre eles o fornecimento de energia elétrica, que compõe aquilo que é chamado mínimo existencial à existência digna.
Não encontrando sucesso em seu pleito e diante dessas ilegalidades e omissões, não restará outra alternativa aos consumidores lesados senão a de buscar a responsabilização da concessionária pelos danos materiais e morais sofridos.
Mais especificamente sobre o dano moral, que é “aquele que afeta a personalidade e, de alguma forma, ofende a moral e a dignidade da pessoa”[4], vale a transcrição de alguns julgados, a exemplo do entendimento exarado pela 34ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que reconheceu que o corte de energia de cliente em dia com suas obrigações, enseja o pagamento de indenização por danos morais:
Apelação. Prestação de Serviços. Fornecimento de energia elétrica. Ação de indenização por danos morais. Sentença de procedência. Suspensão do fornecimento de serviço essencial, apesar do consumidor estar adimplente. Corte efetuado em um sábado, em desrespeito ao art. 172, §5º, da Resolução Aneel 414/2010 (redação dada pela Resolução 479/2012). Serviço restabelecido depois do prazo estabelecido pela Aneel para suspensão indevida. Falha na prestação de serviços da concessionaria. Religação de energia que deveria ter sido efetuada em 4h (art. 176, §1º, da Resolução Aneel 414/2010). Dano moral in re ipsa caracterizado. Indenização bem aplicada em primeiro grau no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Correção monetária desde o arbitramento (Súmula 362 do STJ). Correção monetária e juros de mora. Matéria de ordem pública. Responsabilidade contratual. Juros de mora que devem incidir desde a citação (art. 405 do CC). Precedentes do STJ. Sentença mantida com observação. Honorários majorados. RECURSO DESPROVIDO (Apelação nº 1002356-93.2020.8.26.0019, Apelante: Companhia Paulista de Força e Luz, Apelado: Douglas Henrique de Oliveira Lima, Comarca: Americana (2ª Vara Cível), Juiz: Marcos Cosme Porto) (Grifos nossos).
No mesmo sentido, assim se posicionou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em julgado do ano de 2020:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO. CONSUMIDORA ADIMPLENTE. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DA AUTORA. 1. Trata-se de ação indenizatória em face da concessionária ré, em razão de alegada interrupção indevida do fornecimento de energia elétrica na localidade em que reside a autora, por cerca de dois dias, causando-lhe transtorno e prejuízos a serem indenizados. 2. No caso dos autos, verifica-se que o próprio debate processual assume como premissas os fatos alegados pela parte autora. Com efeito, a ré não controverte a ocorrência da interrupção do fornecimento pelo período noticiado pela demandante; na verdade, ela expressamente o admite, apenas descaracterizando a sua qualificação como defeito na prestação do serviço, de acordo com as normas de direito regulatório aplicáveis à espécie. 3. Assim, o equacionamento da demanda efetivamente se dá a partir da análise jurídica sobre a premissa de que houve a indevida interrupção do serviço pelo prazo de dois dias, a despeito da adimplência da consumidora; não há controvérsia incidente sobre os fatos. 4. Diferentemente do que entendeu o juízo de origem, a Súmula 193 deste Tribunal de Justiça deve ser aplicada a contrário senso, pois o lapso de suspensão do fornecimento ultrapassa a margem de tolerância prevista nas normas regulamentares. 5. E assim é que a Resolução ANEEL 414/2010 estabelece, em seu artigo 176, III e, especialmente, o seu § 1.º, que o restabelecimento do fornecimento, na hipótese de que se trata nestes autos, deve se dar no prazo mínimo de até quatro horas 6. O fornecimento de energia elétrica é um serviço de natureza essencial, que deve ser prestado de maneira contínua, conforme dispõe o artigo 22, caput, do Código de Defesa do Consumidor. 7. Dano moral caracterizado. Aplicação das Súmulas 192 e, a contrario sensu, 193 deste Tribunal de Justiça. A parte autora, com efeito, ao se ver privada da prestação de serviço essencial por aproximadamente dois dias, certamente experimentou transtornos que vão além do mero aborrecimento, merecendo a devida reparação. 8. Quantificação da verba compensatória. Pedido autoral que se afigura de boa monta para atender às finalidades do instituto da proteção aos direitos da personalidade, não constituindo fonte de enriquecimento ilícito e servindo de estímulo para que a parte ré atenda com a devida diligência a solicitação de restabelecimento do fornecimento de energia. PROVIMENTO DO RECURSO. (Grifos nossos)
(TJ-RJ - APL: 00044332120178190075, Relator: Des(a). CARLOS SANTOS DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 16/07/2020, VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 2020-07-21).
E a interrupção do serviço de energia sem a devida comunicação prévia, por si só, também poderá ensejar o dever de indenizar pelo dano moral experimentado, segundo já decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - CORTE DE ENERGIA ELÉTRICA - AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO EM DESTAQUE - DANO MORAL CONFIGURADO - VALOR - RAZOABILIDADE. - Cabe à empresa concessionária de serviço público que fornece energia elétrica, notificar, de forma destacada, o consumidor de modo a viabilizar a realização do conserto das instalações em prazo razoável. - O corte injustificado do fornecimento de energia elétrica em unidade consumidora residencial, por si só, enseja o dever de indenizar, tendo em vista que se trata de serviço essencial, prejudicando sobremaneira ou decisivamente as atividades rotineiras dos moradores privados de luz. - A reparação por danos morais, ao mesmo tempo em que não deve permitir o enriquecimento injustificado do lesado, também não pode ser fixada em valor insignificante, pois deve servir de reprimenda para evitar a repetição da conduta abusiva. (TJMG - Apelação Cível 1.0439.13.000715-6/001, Relator (a): Des.(a) Valdez Leite Machado, 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 25/06/2015, publicação da súmula em 03/07/2015) (grifo nosso).
Em conclusão, tem-se que o corte indevido de energia, por ausência de inadimplência, fere a dignidade humana ao impedir que o consumidor usufrua do serviço essencial a que tem direito. Não se tratando, de modo algum, de mero transtorno ou aborrecimento de somenos importância, ensejando a devida compensação pelo dano moral experimentado, sendo certo que a indenização precisa ser estabelecida em atenção à gravidade das ofensas e às peculiaridades do caso, mormente por se tratar de empresas concessionárias de serviço essencial e que desempenham seu mister em caráter monopolista.
[3] A Resolução Normativa ANEEL nº 1.001/21 ab-rogou a Resolução Normativa ANEEL nº 414/10, frequentemente citada em diversos julgados.
[4] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. STJ define em quais situações o dano moral pode ser presumido. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/3167669/stj-define-em-quais-situacoes-o-dano-moral-pode-ser-presumido. Acesso em 09 mar. 2022. Grifos nossos