Dia 7 de agosto a Lei Maria da Penha comemorou mais um aniversário. Trata-se de data festiva, comemorada, em muito, pelo direito das famílias, pois, como se verá a seguir, o seu surgimento ressignificou a tutela jurídica das entidades familiares.
Desde os primórdios da humanidade existem famílias (ROUSSEAU, 2012), com arranjos, modelos, princípios e ideais que evoluíram com o tempo, mas conservando, sempre, a finalidade de ser entidade doméstica (COULANGES, 1961), ou seja, a base sobre a qual são construídos os lares.
Tamanha a relevância social das famílias que em todas as épocas foi protegida juridicamente pelo Estado. Assim, evoluindo as famílias, evoluiu-se, também, o regramento jurídico delas.
Vislumbra-se, notadamente, esta transformação com o advento da Constituição de 1988; a verdade é que houve verdadeira mudança de paradigma jurídico em todas as relações privadas, isto, porque, a nova ordem constitucional colocou a dignidade da pessoa humana como o eixo em terno do qual deve girar todo o sistema normativo (MEDINA, 2013). Em suma, desde a Constituição vigente há a premissa de que o direito é feito pelo homem e para o homem (NERY JUNIOR; NERY, 2009), devendo ser ele a preocupação primeira do Estado.
Como dito, a família sempre teve proteção jurídica, dada sua relevância, enquanto instituição social, ou seja, protegia-se as famílias com fim nelas mesmas, e não nos sujeitos que as formavam (TARTUCE, 2019). Mas com a nova ordem constitucional, que elegeu a pessoa humana como o valor primeiro (MEDINA, 2013), protege-se as famílias em razão daqueles que as formam; noutras palavras, elas deixaram de ter aspecto finalístico e assumiram natureza instrumental, no sentido de serem instrumento para que seus membros vivam com plenitude em seus lares, sobretudo, no que se refere às suas subjetividades, seus sentimentos. Partindo deste pressuposto, reconheceu-se, como desdobramento da dignidade da pessoa humana nas relações familiares, o afeto enquanto valor jurídico:
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade da pessoa humana e da solidariedade (TARTUCE, 2019, p. 1065).
Cuida-se de construção, inicialmente, doutrinária, mas que, posteriormente, solidificou-se na jurisprudência. Segue trecho de acórdão do STJ, em que se decidiu com base no afeto, enquanto valor jurídico:
A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes (STJ, REsp 1026.981/RJ, 3º T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2010, DJe 23.02.2010).
Aqui se defende ser esta uma das mais importantes evoluções - senão a mais - do direito das famílias nas últimas décadas, tendo em vista que a partir dela ocorreram diversas inovações, das quais merecem destaque:
- O reconhecimento do parentesco socioafetivo, ou seja, baseado no afeto e não nos vínculos biológicos (TARTUCE, 2019);
- A pluriparentalidade, consistente em mais de um pai ou mais de uma mãe, pois sendo o afeto valor jurídico primeiro da tutela familiar, deve ele prevalecer sobre as premissas biológicas (ibidem);
- A possibilidade do reconhecimento de novos modelos de família, antes ignorados pela realidade jurídica (ibidem);
- A desconstrução da heteronormatividade, no sentido de que o afeto de um casal homoafetivo merece a mesma proteção jurídica do afeto que une casal heteroafetivo (ibidem).
Ocorre que sempre houve grande resistência da sociedade ao novo, no que se refere às relações familiares, resistência esta que, em diversas ocasiões, contaminou o Poder Judiciário (DIAS, 2005), que negou tutela jurídica ao afeto.
Conforme há pouco dito, até então se tratava de construção doutrinária e jurisprudencial. Felizmente, o cenário de incerteza e insegurança teve grande reviravolta quando, em agosto de 2006, surgiu a Lei Maria da Penha, pois embora seu objetivo primeiro fosse criar mecanismos de combate à violência contra a mulher, o referido diploma passou a reconhecer, em seu art. 5º, inciso III, como relação íntima de afeto, aquela mantida pelos membros de uma unidade doméstica, ou seja, de uma família.
Concluindo, com o advento da Lei Maria da Penha o afeto, valor primeiro da proteção jurídica das famílias, desdobramento da dignidade da pessoa humana, deixou de ser mera construção doutrinária e jurisprudencial, para estar textualizado em Lei, e é por isso que hoje, 16 anos após o seu surgimento, o direito das famílias ainda se encontra em festa.
REFERÊNCIA
COULANGES, Numa-Denys Fustel de. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. A cidade antiga. São Paulo: Edamires, 1961.
DIAS, Maria Berenice. A ética do afeto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 668, 4 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6668. Acesso em: 16 jul. 2022
MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada, e legislação constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Trad. Paulo Neves. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2012.