A democracia em uma sociedade do espetáculo

12/08/2022 às 20:40
Leia nesta página:

Vivemos em uma sociedade do espetáculo e até que ponto isso pode ser bom? Esse artigo serve como um ponto de reflexão, muito embora seja um tanto quanto tímido e não esgote o tema.

 

Guy Debord foi um escritor francês, cujo trabalho mais conhecido é Sociedade do Espetáculo.

A crítica de Debord reside no fato da representação da vida, da fabulação da verdade, do que buscamos passar, escondendo a verdade, mantendo a encenação.

O espetáculo se torna parte da sociedade, constituindo o modelo da vida socialmente dominante, alcançado por meio de publicidade, propaganda, consumo. O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens[1].

Para Debord, o espetáculo justifica as condições do sistema existente, de maneira que a realidade é invadida pela contemplação do espetáculo.

A obra foi escrita em 1967, contudo, não se pode negar que hoje vivemos em uma sociedade que vive à base do espetáculo.

No livro Cegueira Moral, Zygmunt Bauman sobre isso vai dizer:

Privacidade, intimidade, anonimato, direito ao sigilo, tudo isso é deixado de fora das premissas da sociedade de consumidores ou rotineiramente confiscado na entrada pelos seguranças. Na sociedade de consumidores, todos nós somos consumidores de mercadorias, e estas são destinadas ao consumo; uma vez que somos mercadorias, nos vemos obrigados a criar uma demanda de nós mesmos. A internet, com os blogs e o Facebook, versões de mercado das ruas comerciais, destinadas aos pobres, dos salões finos voltados para os VIPs, tende a seguir os padrões estabelecidos pelas fábricas de celebridades públicas; os promotores tendem a ter uma consciência aguda de que, quanto mais íntimo, picante e escandaloso for o conteúdo dos comerciais, mais atraente e exitosa será a promoção e melhores serão as avaliações (da TV, das revistas glamorosas, dos tabloides atrás de celebridades etc.). O resultado geral é uma sociedade confessional, com microfones plantados dentro de confessionários e megafones em praças públicas. A participação na sociedade confessional é convidativamente aberta a todos, mas há uma grave penalidade para quem fica de fora. Os que relutam em ingressar são ensinados (em geral do modo mais duro) que a versão atualizada do Cogito de Descartes é Sou visto, logo sou e quanto mais pessoas me veem, mais eu sou[2]

Em uma sociedade do espetáculo, confessional, totalmente escancarada, Bauman vai mais além ao afirmar:

Perdendo a memória, as pessoas se tornam incapazes de qualquer questionamento crítico de si mesmas e do mundo à sua volta. Perdendo os poderes da individualidade e da associação, estão privados de suas sensibilidades básicas em termos morais e políticos. Em última instância, perdem sua sensibilidade em relação a outros seres humanos[3].

Guy Debord vai dizer que no mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso[4].

Hoje em dia é importante chamar atenção de alguma forma, procurar o espetáculo para ficar conhecido e conseguir algo a partir daí; desde uma simples aparição na tv até uma vaga no congresso.

Em época de eleições, o espetáculo se torna lugar comum porque tem potencial para atrair eleitores.

Mario Vargas Llosa, na obra A civilização do espetáculo igualmente irá criticar essa mediatização desenfreada da vida humana, que deteriora relações, moral, criação humana e artística.

O que é privado em nossos dias? Uma das consequências involuntárias da revolução informática foi a volatilização das fronteiras que o separavam do público, confundindo-se ambos num happening em que todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores, em que nos exibimos reciprocamente, ostentamos nossa vida privada e nos divertimos observando a alheia, num strip tease generalizado no qual nada ficou a salvo da mórbida curiosidade de um público depravado pela necedade.

O desaparecimento do privado, o fato de ninguém respeitar a intimidade alheia, de esta ter-se transformado numa paródia que excita o interesse geral e de haver uma indústria informativa que alimenta sem trégua e sem limites esse voyeurismo universal, tudo isso é manifestação de barbárie. Pois com o desaparecimento da esfera privada muitas das melhores criações e funções do humano se deterioram e aviltam, a começar por tudo o que está subordinado ao cuidado com certo formalismo, como o erotismo, o amor, a amizade, o pudor, os bons modos, a criação artística, o sagrado e a moral[5].

A situação sai do controle quando a política também é vista como consumo e o eleitor, como mero consumidor, não tendo interesse algum por política, e nessa seara, ganha quem for mais engajado nas redes sociais.

Atualmente exige-se transparência por parte dos políticos, mas essa demanda por transparência não é por pleitos eleitorais transparentes e sim uma forma de transformar indivíduos que disputam as eleições em objetos de escândalo.

Byung-Chul Han vai denominar essa situação de democracia de espectadores. A participação ocorre em forma de reclamação ou queixa. Povoada por espectadores e consumidores, a sociedade da transparência funda uma democracia de espectadores[6].

Alasdair MacIntyre diz que vivemos em uma sociedade emotivista, manipulável, em que os atores vão procurar alinhar suas atitudes com o que o outro espera dele.

Indesmentível que isso para a política é perigoso, porque não expressa a realidade do indivíduo que na verdade, é um boneco, vai para o lado em que for mais vantajoso.

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Há então muitos casos em que há uma certa distância entre o papel e indivíduo e onde, consequentemente, uma variedade de graus de dúvidas, compromisso, interpretação ou cinismo pode mediar a relação do indivíduo com o papel [...]. Esse eu democratizado que não tem conteúdo social necessário e nenhuma identidade social necessária pode então ser qualquer coisa, pode assumir qualquer papel ou qualquer ponto de vista, porque ele é em si e para si, nada.[7]

Byung-Chul Han diz que vivemos em uma sociedade de desempenho, precisamos ser vencedores e se não somos, não culpamos o sistema e o que está errado e precisa mudar, mas tão somente nós mesmos.

Quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho, em vez de questionar a sociedade ou o sistema, considera a si mesmo como responsável e se envergonha por isso. Aí está a inteligência peculiar do regime neoliberal: não permite que emerja qualquer resistência ao sistema. No regime de exploração imposta por outros, ao contrário, é possível que os explorados se solidarizem e juntos se ergam contra o explorador. Essa é a lógica que fundamenta a ideia marxista da "ditadura do proletariado", que pressupõe, porém, relações repressivas de dominação. Já no regime neoliberal de auto exploração, a agressão é dirigida contra nós mesmos. Ela não transforma os explorados em revolucionários, mas sim em depressivos[8].

Em uma das inúmeras extraordinárias entrevistas concedidas pelo jornalista e escritor Laurentino Gomes[9], que escreveu os livros 1808, 1822, 1889 e Escravidão, nesta em específico, um retrato do Brasil, ele diz que o que está no Parlamento é reflexo da nossa sociedade e definitivamente, nós, brasileiros, temos o instrumento de mudança nas nossas mãos, nos nossos votos.

Quem constrói o Brasil, somos nós e por isso, a cada eleição, temos que prestar atenção em quem votamos, nas propostas, no plano de governo e o mais importante, acompanhar o que está sendo feito, o que foi feito e o que será feito.

Devemos exercer a democracia e cidadania com responsabilidade, em meio ao caos em que a sociedade do espetáculo se fortalece.

[1] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005, p.9

[2] BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira Moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2014, p.28.

[3] Ibidem, p.28.

[4] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005, p.11.

[5] LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012, p.81.

[6] HAN, Chul-Byung. Psicopolítica - O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ed. Ayiné, 2020, p.21/22.

[7] MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory, Indiana: University of Notre Dame Press, 2007, 3ª Ed, p. 29-32.

[8] HAN, Chul-Byung. Psicopolítica - O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ed. Ayiné, 2020, p.16.

[9] Um retrato do Brasil, por Laurentino Gomes. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=dKrVsZi6xSc>

Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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