A transição do direito de família para o direito das famílias

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O direito de família se tornou direito das famílias, e isto se deu em razão da constitucionalização do direito privado, decorrente releitura do direito civil, à luz da dignidade da pessoa humana.

Desde os primórdios de sua existência, o ser humano vive em família (ROUSSEAU, 2012); trata-se de instituição social de tamanha relevância que em toda a história foi reconhecida e protegida pelas entidades estatais, notadamente, levando-se em conta as premissas éticas e as acepções morais vigentes ao tempo.

Mas o que é família? Na ordem jurídica atual esta indagação ganhou novos contornos, pois com o advento da Constituição Federal de 1988 ocorreu a constitucionalização do direito civil, ou seja, todos os institutos jurídico-privados foram reinterpretados à luz das basilares constitucionais, sobretudo, a partir da dignidade da pessoa humana:

 

Da constitucionalização do direito civil decorre a migração, para o âmbito privado, de valores constitucionais, dentre os quais, como verdadeiro primus inter paris, o princípio da dignidade da pessoa humana. Disso deriva, necessariamente, a chamada repersonalização do direito civil, ou visto de outro modo, a despatrimonialização do direito civil (FACCHINI NETO, 2013, p. 26).

 

A dignidade da pessoa humana foi colocada como eixo central entorno do qual deve orbitar todas as demais normas (MEDINA, 2013). Trata-se da centralização da pessoa humana, cuja plenitude de vida passa a ser a preocupação primeira do sistema normativo (NERY, JUNIOR; NERY, 2009). Em suma, a tutela do direito privado passou a se voltar, primeiramente, para a concretização e satisfação das pretensões da pessoa humana, sobretudo, no que se refere ao regramento das famílias, independentemente de suas formas, composições, aspectos e arranjos, pois é no seio delas que os sujeitos vivem seus dias e desenvolvem suas subjetividades.

Partindo deste pressuposto, prevalece na doutrina (LÔBO, 2008) que as hipóteses legais e constitucionais de família, que, inclusive, veremos a seguir, são exemplificativas, não obstando o reconhecimento de outras.

No art. 226, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, encontra-se prevista a família matrimonial, que é aquela formada a partir do casamento. No §3º, do mesmo dispositivo constitucional, está prevista a chamada família convivencial, decorrente da união estável.

Percebe-se que estas duas espécies têm um ponto de convergência: em ambas o núcleo central é o relacionamento de dois sujeitos. Ocorre que pode acontecer do relacionamento terminar, e nas acertadas palavras da Ministra Andrighi, em recente julgamento do STJ (2022), existem as figuras do ex-marido e do ex-convivente, porém inexiste ex-pai e ex-filho. O que se está a dizer é que relacionamentos podem ser passageiros, mas os filhos fruto deles são para sempre. Assim sendo, atualmente se reconhece a chamada família parental[1], também denominada de casal parental, ou par parental, constituída pelo filho com seus pais, no pós-relacionamento, que embora separados ou divorciados, mantêm vínculo entre si, não por motivação de afeto, mas sim visando o bem-estar daquele (ALVES, 2014).

Na Constituição também se encontra prevista a chamada família monoparental (art. 226, §4º), que é aquela composta por um dos genitores com o filho, como seria o caso, por exemplo, dos pais e mães viúvos que, sozinhos, criam os seus.

No Estatuto da Criança e do Adolescente estão previstas duas espécies de família: a substituta, que seria decorrente da adoção, tutela ou guarda de criança ou adolescente (art. 28 e seguintes), e, a família extensa ou ampliada, que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente conviva e mantenha vínculos de afinidade e afetividade (art. 25, parágrafo único).

Há a família homoafetiva, cuja base é a união de pessoas do mesmo sexo. Trata-se de construção, inicialmente, doutrinária, atribuída a DIAS (2009), mas que se solidificou na jurisprudência, com o julgamento das ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF, em que o STF reconheceu, para todos os fins, as uniões homoafetivas como entidades familiares.

Existe, também, a família anaparental, expressão atribuída a Barros (2003), para designar aquela em que não há a figura dos pais. Para ilustrar, podemos fazer referência ao entendimento do STJ, proferido no REsp 57.606/MG, em que se reconheceu como impenhorável o imóvel em que residiam duas irmãs solteiras, por se tratar de bem de família.

Reconhece-se a chamada família mosaico, recomposta ou pluriparental, formada por casal com os filhos de relacionamentos anteriores:

 

Ilustrando, A já foi casado por três vezes, tendo um filho do primeiro casamento, dois do segundo e um do terceiro. A, dissolvida a última união, passa a viver em união estável com B, que tem cinco filhos: dois do primeiro casamento, um do segundo, um do terceiro e um de união estável também já dissolvida (TARTUCE, 2019, p. 1075).

 

Por fim, há a família celibatária[2], ou single, formada por apenas um sujeito, que, vivendo só, atinge a plenitude de vida; à unidade doméstica em que vive é garantida a mesma proteção jurídica daquelas em que habitam as demais famílias. Exemplificando, o STJ, no enunciado da Súmula 364, considera impenhorável o imóvel em que reside, sozinha, a pessoa solteira adulta, viúva, divorciada ou separada, por se tratar de bem de família.

Concluindo, com a constitucionalização do direito civil, que determinou a releitura de todo o sistema jurídico-privado, à luz da dignidade da pessoa humana, o direito de família evoluiu, transformando-se em direito das famílias.

 

 

REFERÊNCIAS

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ALVES, Jones Figueirêdo. O casal parental. Migalhas, Ribeirão Preto, p. 194869, 6 fev. 2014. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/194869/o-casal-parental. Acesso em: 7 ago. 2022.

BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: principais e operacionais. SRBARROS, São Paulo, 3 dez. 2003. Disponível em: http://www.srbarros.com.br/pt/direitos-humanos-da-familia--principiais-e-operacionais.cont . Acesso em: 8 ago. 2022.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. IURISPRUDENTIA: Revista da Faculdade de Direito da Ajes, Juína, ano 2, n. 3, p. 9-46, jan./jul. 2013. Disponível em: https://www.revista.ajes.edu.br/index.php/iurisprudentia/article/download/121/91. Acesso em: 8 ago. 2022.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil, famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.

MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada: e legislação constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Trad. Paulo Neves. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2012.

STJ. Pai é condenado a pagar R$ 30 mil de danos morais por abandono afetivo da filha. STJ Notícias, Brasília, 23 fev. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/21022022-Pai-e-condenado-a-pagar-R--30-mil-de-danos-morais-por-abandono-afetivo-da-filha.aspx. Acesso em: 8. ago. 2022.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, volume único. 9. ed. São Paulo: Método, 2019.

 

Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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