Diálogo entre o artigo “Ainda o Presidencialismo: um debate a partir do pensamento de Roberto Mangabeira Unger” e o documentário “Democracia em vertigem” à luz da história política brasileira.

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O professor e filósofo Roberto Unger Mangabeira, teórico respeitado mundialmente, se destaca no campo das ciências sociais ao defender uma filosofia humanizante e democrática. Ele se opõe ao pensamento de que os arranjos sociais e o Estado sejam predeterminados e encontrem-se em uma posição de imobilidade mediante a natureza humana, ao contrário, ele acredita na infinitude do indivíduo e na capacidade deste em transformar o meio em que vive. De mesmo modo, no campo jurídico, o pensador opõe-se à crença positivista ao sustentar a ideia de que o Direito é fruto de lutas e movimentos sociais - e não normas e dados permanentes e rígidos - que ao longo da história construíram um aparato jurídico que objetiva preservar os valores sociais basilares. Assim, entende-se que as instituições e organizações que exercem o domínio sobre o corpo social e suas necessidades não são superiores de modo a subjugá-lo, e sim, compõem um conjunto de ferramentas acessíveis ao mesmo. Tais ferramentas são essenciais, pois permitem que os indivíduos busquem melhorias de vida e alterem sua realidade quando esta não lhe for satisfatória, visto que não é imutável, mas está sujeita às transformações e demandas.

Nesse viés, Unger ressalta a importância de se analisar a realidade política brasileira à luz destes princípios, propondo uma reforma no sistema de governo como uma das alternativas para a situação problemática enfrentada pela população, perpetuada ao longo da história. O autor defende a tese do experimentalismo democrático que legitima esse caráter volátil das instituições e organizações em prol da manutenção da democracia e da emancipação do indivíduo, reconhecendo que a sociedade não é somente o resultado de um processo evolutivo mas possui independência e capacidade para, coletivamente, modificar e construir uma configuração política, econômica e jurídica que faça jus à esfera sociocultural brasileira. Dessa forma, o autor refuta duas importantes crenças que parecem reger o ideário brasileiro, sendo a primeira perspectiva essencialmente conservadora e pessimista quanto à reformas, de modo que apenas se atenha à mudanças inevitáveis, evitando a outra perspectiva extremista, que defende a total substituição de sistemas por meio da revolução. Unger aponta como tais sistemas são decompostos em diversas ramificações, que apesar de atuarem em conjunto,

podem sim se dividirem de forma autônoma, estando sujeitas à ações políticas transformadoras sem que o sistema completo venha a cair.

Logo, o filósofo critica os partidários da vertente social-liberal, uma vez que esta almeja trazer para o país modelos de governo que foram bem sucedidos no exterior, com ênfase no Atlântico Norte, como um molde a ser seguido e apenas reparar as complicações que nasceriam dessa aplicação no Brasil. Contrariando, dessa maneira, a ideia chave de se interpretar as estruturas do país separadamente, tendo como objetivo um governo que melhor atenda às necessidades de sua população, por meio da transformação na economia de mercado, na educação e nos níveis de participação popular.

Ciclo histórico da política brasileira

Um tópico interessante à nossa abordagem trata da perspectiva particular do autor no que diz respeito ao exame pormenorizado do plano político brasileiro, sobretudo no tocante a proposição de uma estrutura específica típica e cíclica que manifesta-se por consideráveis vezes no historicidade do país. O ciclo político nacional apresentado, demonstra ser passível de fragmentação em três momentos distintos. A primeira fase é marcada, essencialmente, por um momento de moderação no tocante à doutrina democrática, encerrado por complicações financeiras, é seguido por um estágio de predileção por um líder popular com incalculáveis obstáculos para governar, e, numa última etapa, a decorrência de um golpe de estado.

As especificidades desse círculo vicioso apresentado pelo autor, podem ser exemplificadas mediante a contemplação da conjuntura atual. A fim de que seja possível conectar os estudos referenciados ao cenário de turbulenta crise recente, utilizaremos, como instrumento de apoio, o documentário Democracia em Vertigem. O longa-metragem mostra, entre outros pontos, como ocorre a fragilidade da relação entre o poder legislativo e o poder executivo no âmbito federal. Para isso, em primeiro lugar, é apresentado como se deu a realização do governo Lula, eleito com 61% dos votos em cenário de grande oposição no Congresso Nacional, o que resultou em um dos maiores esquemas de corrupção do país. Na sequência, o governo Dilma, marcado por atritos entre os membros da Câmara e o Chefe do Executivo, resultando no processo de impeachment.

Se analisarmos essa circunstância a partir das estruturas que organizam a sociedade podemos constatar que as particularidades reprodutoras do desequilíbrio precedem até mesmo o governo Dilma. Desde as primeiras cenas é cognoscível identificar em Lula a segunda etapa do ciclo político aprofundado anteriormente. Um líder que manifesta a expressão de um ideal popular, mas que mesmo antes de sua posse, no decorrer de suas candidaturas, aparta-se da

radicalização da esquerda e aposta mais na moderação e na atitude de conciliar. No entanto, apesar de ter sido eleito com alta porcentagem dos votos, o presidente não contava com apoio na esfera legislativa. Assim, para garantir a aprovação de projetos, seu partido é envolvido em esquema de compras de votos que ficou conhecido como Mensalão.

Divórcio entre Legislativo e Executivo na ótica do documentário "Democracia em vertigem"

É imprescindível pontuar, nesse momento, alguns agentes e propósitos circunscritos na problemática da corrupção, estabelecida de maneira profunda no plano político brasileiro e aqui bem representada pelo Mensalão. O esquema supramencionado traz à tona as dificuldades em manter uma conexão entre os poderes, tamanho é o impedimento referente às tentativas de consenso entre entes completamente destoantes e adversos. Essa contrariedade é justamente uma preocupação pertinente à abordagem de Balestra, segundo ele:

O eleitor escolhe, para a formação do governo, um candidato a Presidente que lhe pareça crível. Simultaneamente, escolhe, em outra ponta, quem deseja que represente sua região, sua corporação ou seus interesses mais imediatos no Congresso. Não é incomum que, nessa escolha, o eleitor vote em um Presidente de aspirações progressistas, e num deputado federal francamente conservador. (BALESTRA, 2021)

Como um dos principais motivadores desse aspecto da crise governamental do sistema político, está a ausência de consenso entre as votações para ambos os poderes. Dessa forma, os eleitores votam em deputados que divergem ideologicamente das suas escolhas presidenciais, criando empecilhos governamentais desde o momento da sua eleição. Assim, de acordo com o texto, restam duas alternativas à essa problemática:

Sem um Congresso que lhe dê respaldo, esse líder logo descobre que não tem força política suficiente para aprovar suas propostas. Logo se abrem duas alternativas: apelar às massas desorganizadas (aquelas na retaguarda do mercado nacional) contra as elites nacionais e oligarquias locais, ou com estas se aliar. Se escolhe o segundo caminho, o da capitulação, logo se vê acusado de traição e sujeito a encontrar um adversário com os mesmos traços personalistas. Se apela às massas contra as elites, cresce uma onda de agitação e conspiração que se volta contra o mandatário, e resulta num golpe de Estado (a terceira fase do ciclo). (BALESTRA, 2021)

Considerando que o divórcio entre Executivo e Legislativo inviabiliza a prática da política, visto que este assegura mecanismos de entraves governamentais em prol dos interesses individuais ou partidários, analisaremos como ocorre a segunda alternativa e suas

consequências. Para isso usaremos como exemplo a trajetória do governo Dilma apresentada ao longo do documentário anteriormente citado.

Após a repercussão do escândalo que foi o Mensalão, o governo PT opta pelo "segundo caminho", previamente pormenorizado. Ocorre então, a partir dessa escolha, uma vinculação, com o PMDB, partido de divergência no espectro político, mais forte no congresso, o que garante, dessa forma, a possibilidade de concretização das propostas do poder executivo. Entretanto, por consequência dessa correspondência, as oligarquias mantêm seu poder. Como relatado no documentário,a necessidade de apoio no congresso resultou na presença de um membro do PMDB, Michel Temer, como vice-presidente. Contudo, no governo Dilma, há uma ruptura entre os interesses desses poderes, ao longo do mandato, a presidente toma medidas que romperam com essa relação, como a retirada de cargos do PMDB e redução da taxa de juros dos bancos citadas na obra audiovisual. A partir desse ponto seu governo começou a se desestabilizar, perdendo apoio político e sofrendo com ameaças de Impeachment.

Nesse sentido, os elementos da realidade brasileira, exibidos pela obra cinematográfica, evidenciam o declínio do governo PT, bem como todo contexto social, político e econômico daquele que seria um indubitável retrocesso democrático, o golpe que culminou no Impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em agosto de 2016. O paralelo traçado, nessa circunstância, relaciona-se com a terceira etapa do ciclo político proposto pelo autor. É interessante observar o que diz o então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aproximadamente nove meses antes de aceitar o pedido de impeachment.

Eu acho que não pode ser usado o instrumento de impeachment como recurso eleitoral. E me parece que é mais esse caminho que estão tentando utilizar. Eu acho que o impeachment sem razão, ele beira o golpismo. O Brasil não é uma republiqueta para tirar um presidente porque ele não tá bem popularmente. (Democracia em vertigem, 2019)

Em determinada altura do documentário, a ex-presidente destituída comenta que o sentimento é de identificação com Josef K, em alusão ao Processo, obra de Franz Kafka, cuja sentença inicial de que alguém devia ter caluniado a Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã espelha, ou pelo menos empenha-se em exprimir essa sensação de golpe. A conjuntura reflete, assim, a possibilidade de analisar o curso da história brasileira recente analogamente à teoria detalhada de forma prévia, de tal maneira que torna-se possível salientar numerosas similaridades.

Os eventos que sucederam essa conjuntura lamentável contribuíram para fragmentar e polarizar a sociedade brasileira. Como fruto de um sequencialismo de atos desastrosos que propiciaram o desfalecimento do regime democrático, está a gênese de uma nova era, extremista, marcada pelo negacionismo científico e pela utilização da mentira como instrumento basilar político. Um capítulo assombroso na história do país, que no jogo da loteria de potencial catastrófico, representou uma caríssima perda ao Brasil.

Presidencialismo x Parlamento

No que tange a visão imputada por Mangabeira Unger, cita-se imperativamente reformas transformadoras ao sistema presidencialista, mas também é negado veementemente a qualquer transposição para um governo parlamentarista. Trata-se então de reparos num ciclo político em que se evidencia notoriamente cíclico através da perpetuação das disparidades no que condiz a respeito da alta segregação econômica e social. É necessário para Unger permanecer adepto ao presidencialismo em sua premissa genuína, todavia torna-se mister algumas adaptações para sanar impasses rotineiros entre o poder Legislativo e Executivo.

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a saber, a possibilidade de convocação de eleições antecipadas e as consultas por plebiscitos e referendos a respeito das reformas propostas, além de um mecanismo de censura de ministros. Só depois do amplo programa de reformas proposto por um presidente empoderado pela eleição direta é que se poderia, numa etapa posterior, contemplar a possibilidade de adoção de qualquer variante do parlamentarismo. (BALESTRA, 2021)

Ainda sob a perspectiva supracitada ao que diz respeito às três fases governamentais históricas no Brasil, ainda é acreditado que dotar de um governo presidencialista é o mesmo de isentar-se das grandes oligarquias e furar a segregação elitista no poder, mas historicamente e com grandes conflitos entre os poderes Executivo e Legislativo, vemos cada vez mais essa justificativa como um verdadeiro paradoxo. Ademais, a dualidade entre o Presidente que possui propostas reformistas e o Parlamento opositor e consequentemente conversador fora forjada desde o advento da República brasileira e suas mazelas permanecem enraizadas até a atualidade.

a assunção de um caráter antioligárquico do presidencialismo, uma espécie de ilusão de que a eleição direta de um presidente se constitui numa oportunidade única de furar o cerco elitista do poder (UNGER, 1993)

Apesar de Unger se isentar sobre o parlamentarismo, o autor do presente artigo nos traz à tona inúmeros pensamentos que reforçam alguns benefícios presentes dentro deste tipo de governo se fosse adotado no Brasil como um todo e também buscando mitigar o pensamento

construído pelos revoltosos republicanos desde o final do século XIX. Em suma, o parlamentarismo às avessas não fora uma experiência pífia em sua totalidade e buscava trazer reformas modernizadoras já alvejada pelos liberais em 1869. Sem embargos pela derrubada da monarquia pelos liberais, suas motivações ansiavam uma reforma no judiciário, abolição, liberalização econômica, secularização e uma maior garantia de direitos civis, mas não o fim do regime adotado e assim muitas dessas reformas foram adotadas preteritamente. Logo, é visto que o pensamento brasileiro desde sua premissa que sempre priorizou a busca por reformas sociais de imediato para posteriormente galgar quaisquer reformas na estrutura política. E com isso enraizado até hoje no atual regime, conflitos são acometidos paulatinamente em que há dualidade na escolha de um governante municipal ou estadual que atenderá as demandas singulares dos eleitores, mas por sua vez também estará dentre as muitas das vezes em desarmonia com o poder Executivo e por conseguinte encontrando empecilhos na adoção de sua forma de governo.

Assim, o autor nos traz a luz de seu pensamento em que a escolha de um modelo parlamentar e com as variações na qual este modelo permite, acaba sendo mais coeso e uniforme no que tange a confrontos entre medidas adotadas e o plano de governo. Uma vez que um único partido seria detentor direito no que compete a execução e assim diminuiria drasticamente quaisquer vestígios de impasse na adoção de medidas.

Essa escolha divorciada entre legislador e governante não ocorre, teoricamente, no parlamentarismo. Ao eleitor, é feita uma única pergunta: qual partido deve governar? Naturalmente, em sua decisão, pesará quem lidera cada partido o futuro Primeiro Ministro. Mas a escolha deixa de ser divorciada: o parlamento eleito terá responsabilidade sobre o governo. O governante (ou governantes, já que se trata de um Conselho de Ministros) deverá responder ao parlamento. (BALESTRA, 2021)

Por fim, independentemente da forma de governo adotada pelo sistema que o texto e o filme nos atentam, o povo deve sempre estar unido para que a soma da inquietude das massas seja o caminho para o combate direto contra o discurso populista e qualquer vestígio de opressão do regime totalitário para que não ocorra mais uma vez o ciclo retratado e vivenciado pela história brasileira.

Referências

BALESTRA, Vinicius. Ainda o Presidencialismo: um debate a partir do pensamento de Roberto Mangabeira Unger / And yet, Presidentialism: a debate with the ideas of Roberto Mangabeira Unger. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 12, n. 2, p. 1390-1418, jun. 2021. ISSN 2179-8966. Disponível em:

<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/59625>

Democracia em vertigem. Direção: Petra Costa. Produção de Joanna Natasegara; Shane Boris; Tiago Pavan. Brasil. Netflix, 2019.

KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo:Companhia das Letras, 2005.

UNGER, Roberto Mangabeira. A forma de governo que convém ao Brasil. In: RODRIGUES, Leôncio Martins. Em Defesa do Presidencialismo. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1993. p. 82

Sobre os autores
Amanda de Andrade Gomes

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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