A culpa do constituinte de 87 na crise de (in)segurança pública do Brasil.

16/08/2022 às 13:20
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Vivemos sob a égide da 7ª (sétima) Constituição, a qual foi promulgada em 1988 e denominada Constituição da República Federativa do Brasil, tendo surgido após 21 (vinte e um) anos de um estado de exceção no país (Regime Militar de 64-85).

Como se sabe, as Constituições que são promulgadas, vale dizer, decorrentes da vontade do povo, são antecedidas por uma Assembleia Constituinte, onde representantes eleitos pelo povo vão exercer o Poder Constituinte originário visando a elaboração de uma nova Constituição. E este foi o caso da Constituição de 1988.

A Assembleia Constituinte é denominada por Norberto Bobbio como sendo:

[...]um órgão colegial, representativo, extraordinário e temporário, que é investido da função de elaborar a Constituição do Estado, de pôr em outros termos as regras fundamentais do ordenamento jurídico estatais[...][1] (sic).

Assim, tem-se que as Assembleias Constituintes, por essência, são órgãos representativos, extraordinários e temporários, formados para um fim específico, qual seja, elaboração de uma nova Constituição, sendo certo que após esgotado esse objetivo ela deve ser dissolvida, motivo pelo qual são membros são eleitos apenas para essa finalidade e, em tese, não deveriam ser confundidos com os parlamentares ocupantes de uma cadeira política no Congresso Nacional (no caso brasileiro).

Ocorre, porém, que no caso da Constituinte de 1987, a qual foi responsável por elaborar a Constituição Federal de 1988, a sua composição decorreu da aprovação de uma emenda à Constituição Federal de 1967, qual seja, a emenda constitucional nº 26/1985[2], que dispunha:

[...]Art. 1º Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional[...]. (sic).

Assim, os membros da Assembleia Constituinte de 87 não foram eleitos pelo povo diretamente e com a finalidade específica de elaborar uma nova Constituição Federal, mas, sim, tratavam-se dos deputados federais e senadores eleitos por ocasião das eleições gerais de 1986, os quais foram eleitos para a 48ª legislatura (1987-1991) e não apenas para integrarem a Assembleia Constituinte. Com efeito, esta era, apenas, mais uma das incumbências que teriam naquela legislatura.[3]

Neste sentido, o panorama era o seguinte: foram eleitos 49 (quarenta e nove) senadores e 497 (quatrocentos e noventa e sete) deputados federais, na primeira eleição geral após o fim do Regime Militar e, possivelmente, em sua maioria contrários ao regime, e que iriam compor a Assembleia Nacional Constituinte e, via de regra, responsáveis por estabelecer uma nova ordem constitucional.

Neste pé, a pergunta que devemos fazer é: qual seria o resultado disso tudo? Não existe nenhuma outra resposta a não ser uma reação ao antigo regime e a tudo o que ele representava, de forma real e imaginada.

No antigo regime, vale dizer o estado de exceção controlado pelas Forças Armadas brasileiras de 1964 a 1985, havia uma instituição que funcionava, mais do que todas as outras, como a mão visível do sistema, qual seja, a Polícia, seja ela a Federal, a Militar, a Civil (ou qualquer outra...) e, via de consequência, por ocasião da elaboração da nova Constituição a Polícia foi a instituição que mais sofreu represálias daqueles que não foram eleitos, mas que ali estavam para, além de legislar em causa própria, prover as bases do novo Estado brasileiro.

Neste sentido, não é nenhum exagero dizer que as forças policiais foram extremamente enfraquecidas no texto da nova Constituição Federal e isso trouxe severos prejuízos para toda sociedade brasileira.

Com efeito, antes da Constituição de 1988, por exemplo, a instituição policial responsável pela investigação criminal no país detinha, em suas próprias mãos, diversos mecanismos/instrumentos que propiciavam uma atuação mais efetiva, dentre eles destacam-se a possibilidade de realizarem a chamada prisão para averiguação e a realização de busca e apreensão domiciliar, ambos sem qualquer necessidade de decisão judicial prévia (sobre esses mecanismos/instrumentos já escrevemos em outra oportunidade: clique aqui).

Ocorre que com a subtração desses instrumentos do espectro de atuação direta das Policias investigativas, submetendo o uso deles a uma prévia decisão judicial, sob a alegação de que ocorreram muitos abusos naquela época (regime militar), o efeito prático foi burocratizar e engessar a investigação criminal, uma ciência que luta contra o tempo para recontar a história de um crime e que, de um dia para o outro, ficou refém de um sistema notoriamente lento (já naquela época) e, portanto, fadado ao fracasso.

Assim, atualmente, a sociedade brasileira convive com números alarmantes de crimes, mormente os considerados violentos (roubos, estupros, homicídios...), vivendo numa verdadeira guerra civil com os cidadãos reféns dos criminosos (sobre o tema já indicamos a leitura de um outro artigo de nossa autoria: clique aqui) e, no meio desse caos, temos uma Polícia investigativa que é manca, pois não possuí acesso direto a diversos mecanismos/instrumentos indispensáveis a uma investigação mais célere e eficientes, tais como: I busca e apreensão domiciliar; II prisão para investigação; III acesso a dados cadastrais de instituições financeiras, operadoras de telefonia e outros; IV acesso a gastos atuais de cartões; V acesso a localização atual de suspeito; VI acesso a mensagens armazenadas em celulares e outros dispositivos eletrônicos; VII etc...

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Todos esses mecanismos/instrumentos somente são acessíveis após prévia decisão judicial, obviamente após oitiva do Ministério Público, instituições que estão distantes da sociedade e dos fatos criminosos e, portanto, não são foco de cobranças por celeridade e eficiência, são, apenas, destinatários dos trabalhos investigativos e, portanto, infelizmente, e invariavelmente, não entendem a necessidade de celeridade que permeia toda investigação criminosa, talvez por sempre estarem rodeados de processos empoeirados e longe do alcance de vítimas que clamam por um resultado, seja qual ele for.

Desta feita, como nos processos somente há papel e ele não fala, não transpira e não sente, o tempo quase não é levado em conta, o tempo não é um fator decisivo de sucesso ou insucesso, ao contrário do que ocorre numa investigação criminal e, portanto, representações por medidas cautelares investigativas são, invariavelmente, tratadas como mais uma folha de papel em toda aquela pilha de papeis que, cedo ou tarde, vai ser analisada, seja isso em 1 dia, 1 semana, 1 mês, 1 ano...

As palavras acima não são extraídas de uma achismo intelectual barato daqueles especialistas em segurança pública que nunca seguraram uma arma, ou entraram em uma viatura policial, ou prendido algum bandido. Infelizmente, o que foi dito acima é produto de quase 10 (dez) anos de experiência exclusiva como operador da Segurança Pública. É uma constatação diária que no Brasil, pela forma como o sistema está construído, as forças de segurança brincam de polícia versus ladrão e com um placar, infelizmente, que pende mais para o lado do ladrão do que para o policial.

Há cerca de 35 (trinta e cinco) anos os integrantes da Assembleia Constituinte vingavam-se da Polícia e desde então a sociedade sofre e sangra, dia após dia, ano após ano, a má escolha dos salvadores da Pátria...

Sobre o autor
Gabriel Ciríaco Fonseca

Delegado de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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