O véu de ignorância na construção de uma Teoria da Justiça de John Rawls

18/08/2022 às 16:59

Resumo:


  • John Rawls propõe uma teoria da justiça baseada em princípios que seriam escolhidos em uma "posição original" sob um "véu de ignorância", garantindo que as decisões sejam justas e imparciais, sem influência de status social ou habilidades naturais.

  • Os dois princípios fundamentais de sua teoria são: (1) cada pessoa deve ter iguais direitos às liberdades básicas, e (2) as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de forma que beneficiem os menos favorecidos e estejam ligadas a posições acessíveis a todos.

  • Rawls argumenta que, sob o véu de ignorância, as pessoas escolheriam um sistema de justiça que maximiza o bem-estar dos menos favorecidos, promovendo uma sociedade liberal e democrática com oportunidades iguais, independentemente da classe social de nascimento.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo

Na tradição do contrato social de Locke, Rousseau e Kant, inserem-se as ideias de Rawls que tem o pensamento de que as pessoas escolherão princípios justos se tiverem de escolher os princípios de justiça sem saber como poderão ser por eles afetados. Imagina, assim, uma experiência mental em que todas as pessoas se encontram numa "posição original" sob um "véu de ignorância", isto é, em que desconhecem quais as suas aptidões, posição social, riqueza, religião e concepção de valor e de bem. Assim, diante desta situação, nota-se que as pessoas chegarão através de um contrato social hipotético àquilo a que chama justiça como equidade. Basicamente dois princípios expressam esta concepção de justiça, um que estabelece que as desigualdades devem ser distribuídas de forma a beneficiarem todos e que devem decorrer de posições e funções a que todos tenham acesso; e outro que garante liberdades básicas iguais para todos, como as políticas de expressão e reunião, de consciência e de pensamento etc. O primeiro princípio nos diz que o ideal seria que a riqueza fosse distribuída de modo a fazer com que os que estão em pior situação fiquem tão bem quanto possível. Uma sociedade justa será liberal, democrática e um sistema de mercado no qual se procede à distribuição da riqueza e em que pessoas com capacidades e motivações iguais têm possibilidades iguais de sucesso, independentemente da classe social em que tenham nascido.

Palavras-chave: Justiça como equidade. Princípios de Justiça. Véu de ignorância.

Abstract

In the tradition of the social contract of Locke, Rousseau and Kant, there are the ideas of Rawls who have the thought that people will choose just principles if they have to choose the principles of justice without knowing how they can be affected by them. Imagine, therefore, a mental experience in which all people are in an "original position" under a "veil of ignorance", that is, in which they do not know what their aptitudes, social position, wealth, religion and conception of value and well. Thus, in the face of this situation, it is noted that people will arrive through a hypothetical social contract to what is called justice as equity. Basically, two principles express this conception of justice, one that establishes that inequalities must be distributed in a way that benefits everyone and that they must result from positions and functions to which everyone has access; and another that guarantees equal basic freedoms for all, such as the policies of expression and assembly, conscience and thought, etc. The first principle tells us that the ideal would be for wealth to be distributed in such a way as to make the worst off as well as possible. A just society will be liberal, democratic and a market system in which wealth is distributed and in which people with equal abilities and motivations have equal chances of success, regardless of the social class into which they were born.

Keywords: Justice as equity. Principles of Justice. veil of ignorance.

Sumário: Introdução. O Véu de ignorância na construção de uma Teoria da Justiça. Conclusão. Referências.

Introdução

Os princípios de justiça que devem governar a estrutura básica da sociedade, que por sua vez é entendida como o "[...] modo pelo qual as instituições sociais, econômicas e políticas se estruturam sistematicamente para atribuir direitos e deveres aos cidadãos, determinando suas possíveis formas de vida." (Oliveira, 2003, p. 14)

Dois aspectos devem nortear os princípios de justiça escolhidos, assim como, o primeiro com relação à liberdade, regulando o direito igual de cada um perante um sistema total de liberdade, pois nenhuma liberdade pode ser restrita se não for para beneficiar a liberdade partilhada por todos; em segundo lugar, as diferenças sociais e econômicas só podem ser aceitas se estiverem garantidos os maiores bens possíveis aos menos favorecidos e tais desigualdade surjam em decorrência do desempenho desigual daqueles que tiveram o mesmo acesso às oportunidades dadas. Dessa forma, os dois princípios básicos que correspondem aos princípios de justiça escolhidos em uma posição original são liberdade e diferença. Tais princípios atendem, entre outras exigências, à estratégia de maximização dos ganhos e minimização dos prejuízos. As pessoas têm de tomar uma decisão sem saber qual posição ocupam e nem o ganho que obterão. Preferem, portanto, maximizar o menor dos ganhos que possam vir a obter, quaisquer que sejam as possibilidades.

Temos como a primeira apresentação dos dois princípios a seguinte:
1º) Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras;
2º) As desigualdades sociais e econômicas precisam ser distribuídas de forma a que ao mesmo tempo: a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de todos; e b) decorram de posições e funções às quais todos têm acesso.

Constituem as sociedades bem ordenadas, os princípios de justiça aceitos por todos que fazem parte da sociedade, com conhecimento comum, que se refletem nas instituições sociais básicas. Aquelas são capazes de propiciar o bem de todos os seus integrantes, sendo regulada pelas regras efetivas de uma concepção pública de justiça. A condição de publicidade das escolhas dos princípios de justiça, fazem com que sejam excluídas todas as concepções de grupos que queiram dominar as outras, e, uma vez que as convicções verdadeiras se impõem na formação da sociedade, não haveria espaço para argumentação teológica ou metafísica na defesa dos princípios adotados, pois, bastam apenas as condições cotidianas conhecidas por cada um para justificar suas concepções de justiça.

Rawls chega então à concepção da sociedade bem-ordenada, que é aquela regulada de maneira efetiva por uma formulação de política e pública de justiça na qual cada indivíduo aceita os mesmos princípios de justiça e, portanto, os termos equitativos da cooperação social, assim como as suas instituições políticas, sociais e econômicas, que são, por todos, reconhecidas como justas. Portanto, a posição original pressupõe o objetivo de estabelecer uma sociedade bem-ordenada, ou melhor, uma sociedade de cooperação mútua para que cada indivíduo possua meios materiais e psicológicos, já que Rawls inclui como um dos bens do sujeito a sua auto-estima, para alcançar seus objetivos escolhidos sem imposição.

Como já dito, a idéia de posição original, na medida em que procura ser compatível com um pluralismo de valores que estão subentendidos, busca preservar seu procedimentalismo, que ocorre em razão da proposição básica de que as partes, na posição original, escolhem os princípios de justiça sob certas condições, ou seja, as condições do véu da ignorância. Este, por sua vez, impõe restrições ao conhecimento das partes sobre sua situação pessoal real, introduzindo uma neutralidade. E só através desta neutralidade que as partes serão capazes de chegar num consenso sobre os princípios da justiça, uma vez que, ainda que sejam auto-interessadas, não conhecem a sua real condição e, portanto, uma parte não estará em condições de procurar impor à outra princípios que sejam favoráveis à sua condição pessoal.

A posição original tem, assim, por objetivo firmar princípios gerais capazes de produzir uma sociedade bem-ordenada - ou neutra. Esses princípios necessitam ser escolhidos sem imposição, onde a liberdade é assegurada pela neutralidade do véu da ignorância. Esta neutralidade é, entretanto, atenuada pela introdução do equilíbrio reflexivo, com o único objetivo de formular as condições em que o contrato é celebrado, e ainda alterar a posição das partes adequando-as aos princípios da justiça.

Na teoria de Rawls, a introdução do "equilíbrio reflexivo", culmina na formulação de uma concepção de sujeito, ou uma teoria da pessoa, ainda que velada. Com isso, o equilíbrio reflexivo confere à posição original uma duplicidade, ou seja, as circunstâncias da justiça (subjetivas e objetivas) e a reflexão sobre a justiça, onde esta por sua vez, é produto de um sujeito que reflete sobre sua condição, daí a necessidade de uma antropologia filosófica (de início negada por John Rawls).

Conforme demonstra Sandel, esta antropologia é o fundamento da posição original:

A descrição da posição original é o produto de dois ingredientes básicos: por um lado, os nossos melhores juízos de razoabilidade e plausibilidade (ainda por explicar) e, por outro, as nossas convicções refletidas sobre a justiça. A partir das matérias-primas fornecidas pelas nossas intuições, devidamente filtradas e enformadas pela posição original, emerge um produto final. No entanto, trata-se de um produto final de dimensões duais, e é aqui que se encontra a chave da nossa concepção já que o que emerge numa extremidade como uma teoria da justiça tem necessariamente que emergir na outra como uma teoria da pessoa, ou, com maior precisão, como uma teoria do sujeito moral. Olhando numa direção, vemos através das lentes da posição original dois princípios da justiça; perscrutando na outra, vemos um reflexo de nós próprios. Se o método de equilíbrio refletido funciona com a simetria que Rawls lhe atribui, então a posição original tem de produzir não só uma teoria moral, mas também uma antropologia filosófica. (Sandel, 2005, p.78)

Então, para efeito de formular os princípios da justiça, a teoria, não deve prescindir do pressuposto da racionalidade das partes. Por "racionalidade das partes" podemos compreender que: a) os contratantes possuem um sentido de justiça, onde visam a igualdade e a liberdade; b) têm projetos pessoais auto-interessados; e c) têm auto-estima e não possuem inveja umas das outras. Estes são os atributos do "sujeito racional" de Rawls que finda o ciclo conceitual inicial da justiça como equidade, ou seja, se os sujeitos não têm conhecimento prévio de sua posição social e de seus atributos pessoais (véu da ignorância), são racionais, objetivam estabelecer uma cooperação mútua, e, ainda, se partem de uma situação contratual fundante, deverão concordar sobre o conteúdo dos princípios contratuais que servirão de base à sociedade.

O Véu de ignorância na construção de uma Teoria da Justiça

Rawls exibe uma concepção de Justiça Antiutilitarista onde dá preferência ao contratualismo num plano mais abstrato, que prescinde do modelo clássico, trabalhando com um consenso original a partir de pessoas livres e racionais - não num estado de natureza, mas já na condição de membros da sociedade - que aceitassem uma posição inicial de igualdade, especificando, mediante princípios morais, os tipos de cooperação social e as formas de governo.

No Neocontratualismo de Rawls, os princípios decorrentes construiriam o que ele denomina de justiça com equidade, aproximada da teoria tradicional do contrato social, mas num ambiente hipotético, a-histórico, no qual os princípios de justiça seriam escolhidos sob um véu de ignorância provisório até o momento da concordância com o contrato.

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Destaca Rawls:

Na justiça com equidade a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética, caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção de justiça. Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. [...] Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância. Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. [...] A posição original é, poderíamos dizer, o status quo inicial apropriado, e assim os consensos fundamentais nela alcançados são equitativos. Isto explica a propriedade da frase justiça com equidade: ela transmite a idéia de que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é equitativa. A frase não significa que os conceitos de justiça e equidade sejam a mesma coisa [...]. (RAWLS, 2002. p. 13 e 14)

São as principais referências à teoria de justiça apresentada, os princípios de justiça de caráter universal, pois, afinal, irão constituir o fundamento de todo o sistema jurídico de regras que orientarão a sociedade.

Podemos destacar agora, o ambiente proposto por Rawls para a descoberta dos princípios de justiça - sob um véu de ignorância - numa condição ideal para que as pessoas racionais definam regras de conduta. Na escolha dos princípios de justiça, o véu de ignorância garantiria que não fossem consideradas concepções particulares do bem, talentos e habilidades das partes, a posição social e cidadãos representados.

As pessoas, na posição original, seriam racionais e mutuamente desinteressadas, numa condição de igualdade. Como resultado dessa equidade e da condição de desconhecer suas habilidades e posição social, o homem racional não aceitaria uma estrutura básica que elevasse ao máximo a soma algébrica de vantagens e não preservasse seus interesses e direitos básicos.

Assim, Rawls, tem a idéia clara de que estaríamos em condições de estabelecer os princípios de justiça apenas quando cobertos pelo véu de ignorância, de modo que assegura uma escolha na qual ninguém é influenciado por acasos da natureza ou circunstâncias. Como os princípios de justiça escolhidos sob essas condições conferem a cada indivíduo a maior vantagem possível, Rawls fala de justiça enquanto equidade.

Portanto, diante do exposto, chega-se à conclusão de que para a construção dos princípios de justiça, as pessoas não poderiam conhecer sua condição política, social, econômica e outras que pudessem condicionar suas ponderações. O véu de ignorância garantiria que o conhecimento ficaria limitado a atos genéricos da sociedade humana e, nesse sentido, ignorando sua situação na sociedade, é que cada pessoa estaria nas melhores condições para, de uma forma neutra, ajustar os princípios de justiça que fossem aceitáveis por todos.

A vantagem do desconhecimento pessoal é flagrante quando da construção dos princípios de justiça, já que, desconhecendo sua situação na sociedade e seus dotes naturais, o indivíduo não poderia propor princípios adequados para o favorecimento próprio. Alerta oportunamente Rawls para a condição de pressão que existiria, caso não adotássemos o véu de ignorância:

Se for permitido um conhecimento das particularidades, o resultado será influenciado por contingências arbitrárias. [...] dar a cada um de acordo com seu poder de ameaçar não é um princípio de justiça. Para que a posição original gere acordos justos, as partes devem estar situadas de forma equitativa e devem ser tratadas de forma igual como pessoas éticas. A arbitrariedade do mundo deve ser corrigida por um ajuste das circunstâncias da posição contratual inicial. (RAWLS, 2002. p. 152)

Essencial, então, um véu de ignorância que deixasse racionais e livres as pessoas, em condições de definir quais os princípios de justiça a prevalecer no seio social: Esses princípios são válidos, segundo Rawls, para os membros de uma sociedade quando eles decidem atrás do véu de ignorância, e ainda quando não conhecem a sua posição na sociedade, bem como o seu status, seus talentos naturais, tais como a força física e a inteligência. E, quando decidem de forma completamente imparcial, é porque não sabem que ordem que é vantajosa para eles, e qual poderia ser desvantajosa, porque, enfim, atrás do véu de ignorância o próprio interesse individual não pode ser considerado.

Porém, considerando a racionalidade exigida para alcançarmos um consenso original, como insuficiente, Rawls reúne também o sensato como elemento a ser considerado num sistema equitativo de cooperação. O sensato traz uma idéia de reciprocidade, onde o seu caráter público é visto como uma das diferenças básicas em relação ao racional. Leciona Rawls:

[...] o razoável (com sua idéia de reciprocidade) não é altruísmo (consistindo a conduta altruísta em agir exclusivamente em favor dos interesses dos outros) nem o mesmo que preocupação consigo mesmo (e mover-se somente pelos próprios fins e afetos). Numa sociedade razoável, ilustrada da forma mais simples possível por uma sociedade de iguais e questões básicas, todos têm seus próprios fins racionais, que esperam realizar, e todos estão dispostos a propor termos equitativos, os quais é razoável esperar que os outros aceitem, de modo que todos possam beneficiar-se e aprimorar o que cada um pode fazer sozinho. Essa sociedade razoável não é uma sociedade de santos nem uma sociedade de egoístas. É parte de nosso mundo humano comum, não de um mundo que julgamos de tanta virtude que acabamos por considerá-lo fora do nosso alcance. No entanto, a faculdade moral que está por trás da capacidade de propor, o de aceitar, e, depois, de motivar-se a agir em conformidade com os termos equitativos de cooperação por seu próprio valor intrínseco é, mesmo assim, uma virtude social e essencial. (RAWLS, 2002. p. 97)

Nesse sentido, nota-se que a racionalidade individual será insuficiente para o encontro de uma sociedade de iguais, necessitando que a cooperação social seja alcançada pela razoabilidade com sua dimensão pública de reciprocidade. É preciso que todos estejam voltados a encontrar seus interesses que exprimem razão, mas também devem estar dispostos a propor termos justos que os outros têm condição de aceitar.

Rawls pensa que o sistema público de regras não deve ser reconhecido apenas de uma forma exclusivamente racional, o que daria ensejo para arbitrariedades e injustiças, devendo sim existir uma parcela considerável de razoabilidade para alcançarmos termos equitativos de cooperação.

Conclusão

Para Rawls, a sociedade é uma combinação de pessoas que reconhecem caráter vinculativo a um determinado conjunto de regras e atuam de acordo com elas. Essas normas existem para consolidar um sistema de cooperação entre todos para o próprio benefício. É por esse motivo que numa sociedade existe certa identidade de interesses, pois assim, todos têm a ganhar com a cooperação: vivem melhor em sociedade do que viveriam isolados. Mas, também existem muitos conflitos de interesses, pois os sujeitos não conseguem fazer vistas grossas para a maneira como são distribuídos os benefícios acrescidos que resultam da sua colaboração, de modo que, para prosseguirem os seus objetivos, preferem receber uma parte maior dos mesmos.

Então, para resolver estes conflitos são necessários princípios ou regras que nos ajudem a escolher qual será a melhor forma de organizar a sociedade, isto é, a melhor maneira de repartir esses benefícios. Desta forma, a justiça tem um papel na sociedade que não se restringe à reposição das irregularidades e aos castigos aos criminosos. A justiça tem uma função mais profunda, que é a de definir a atribuição de direitos e deveres, bem como de distribuir os encargos e os benefícios da cooperação social.

De acordo com a teoria de Rawls, é a única maneira das pessoas em uma posição original optarem pelos princípios justos, ou seja, aqueles que ele acha que seriam apresentados pela razão de cada um, o que seria conferir sobre esses legisladores iniciais um véu de ignorância, segundo o qual cada pessoa deixaria de tomar conhecimento de todas as suas circunstâncias pessoais anteriores a essa situação fundada em hipótese. Dessa forma, essas pessoas não conheceriam suas condições financeiras como também seus próprios dons naturais. Assim, por exemplo, se um legislador soubesse que ele fosse um grande proprietário de terras, seria muito mais difícil achar justa a distribuição de terras na mesma proporção para todos.

Mas por outro lado, Rawls acentua que, se esses legisladores iniciais não tivessem a informação de que fossem proprietários de terras ou não, se concluiria mais facilmente que a distribuição equitativa de terras é algo justo, haja vista que os mesmos terão medo de que depois de ser levantado o véu de ignorância, vierem a descobrir que não possuíam quaisquer bens materiais. Assim, chega-se a conclusão de que o egoísmo é o ponto que motiva a necessidade do véu de ignorância para a conquista dos princípios da justiça.

Para que possamos entender melhor a teoria de Rawls, necessitamos da utilização de uma metáfora sugerida pelo próprio autor e desenvolvida com mais pormenores por Esteves:

Suponhamos que numa festa de aniversário a mãe de Joãozinho o encarregue de partir e dividir o bolo. Sendo naturalmente egoísta, o primeiro pensamento de Joãozinho é o de dividir o bolo em partes maiores e menores, reservando as maiores para si e para os seus amiguinhos mais chegados. Porém, antes que ele ponha em prática o seu objetivo, sua mãe o adverte de que as partes do bolo por ele dividido serão sorteadas. Assim, Joãozinho se dá conta de que não pode saber antecipadamente para quem vão as partes maiores. Ele então compreende que pode dar o azar de ficar com as partes menores, assim como seus amiguinhos mais queridos. Ora, colocado nessa situação de ignorância quanto à distribuição do bolo, Joãozinho, que é esperto o suficiente, necessariamente concluirá que é melhor dividi-lo de uma maneira justa do que correr o risco de sair no prejuízo. Em termos filosóficos, Rawls diz que a escolha dos princípios da justiça social, ou seja, da justiça distributiva na partilha dos bens produzidos pelo trabalho social, é feita na posição original sob o que ele chama de véu da ignorância, ilustrado na metáfora pela ignorância de Joãozinho quanto ao destino das partes do bolo. O importante é observar que o que faz com que Joãozinho finalmente divida o bolo de uma maneira justa não é uma espécie de conversão moral, como se ele de súbito tivesse deixado de ser aquele menino egoísta que só pensa no seu bem-estar e no dos seus amiguinhos mais chegados. Joãozinho não teve um súbito discernimento de princípios de justiça, que fizessem com que ele viesse a ter respeito e consideração por todos igualmente. Pelo contrário, ele continua sendo aquele menino egoísta, mas esperto. Desse modo, colocado nessa situação de ignorância quanto ao destino das partes do bolo, ele é forçado a ser justo, porque compreende que está no seu interesse próprio e egoísta uma divisão justa do bolo. Desse modo, a pretensão da teoria elaborada por Rawls é a de que princípios da justiça podem ser derivados do interesse próprio racional dos indivíduos, desde que eles sejam colocados, na posição original, em determinadas condições ideais - no caso, o véu de ignorância[2]. (ESTEVES, 2002, p. 93)

O véu de ignorância é um dispositivo utilizado por Rawls para se evitar que contigências sociais, naturais, distorçam os resultados distributivos. Isso funciona como se fosse um obstáculo que evita a influência de interesses pessoais exclusivistas. Todos os acordos conquistados sob o véu da ignorância impedem a orientação segundo os lugares que serão ocupados pelas pessoas na sociedade, depois de ter sido levantado o véu. Por esse motivo, cada um procura evitar que a distribuição dos bens seja desigual.

Nesse sentido, os envolvidos devem escolher os primeiros princípios que determinarão uma concepção de justiça para aquela sociedade. Tal escolha acontece após a análise e debate de várias propostas, onde o resultado deve atender a um equilíbrio refletivo que corresponda ao ponto harmonioso das convicções sobre o bem e o mau de cada um, e esse equilíbrio deve ainda ser sólido em relação aos conflitos rotineiros de forças externas.

Referências

ESTEVES, Julio. As Críticas ao utilitarismo por Rawls. ethic@. Florianópolis: v.1 n.1, p.81-96, Jun. 2002. Disponível em: <www.cfh.ufsc.br/ethic@/ETHIC1~6.PRN.pdfv>. Acesso em: 18 ago. 2022.

FELIPE, Sônia T. (Organização, introdução). Justiça como eqüidade fundamentação e interlocuções polêmicas (Kant, Rawls, Habermas). Anais do Simpósio Internacional sobre Justiça. Florianópolis: Insular, 1998.

MARTINI, Marcus de. Notas sobre o neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/filosofia-juridica/neocontratualismo_rawls.htm>. Acesso em: 23 dez. 2022.

NEDEL, José. John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

OLIVEIRA, Neiva Afonso. Rousseau e Rawls: contrato em duas vias. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Rawls. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2003.

RAWLS, John. Justiça como Equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

________. O Liberalismo Político, 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.

________. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SANDEL, Michael J. O Liberalismo e os Limites da Justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

Sobre o autor
Christovam Castilho Júnior

Advogado, Mestre em Direito, Conciliador do TJ/PR, Professor do Curso de Direito da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos (FAESO) e da Faculdade de Santo Antônio da Platina (FANORPI), e dos Cursos de Tecnologia em Agronegócio, Jogos Digitais e Ciência de Dados da Faculdade de Tecnologia de Ourinhos (FATEC). E-mail: [email protected] http://lattes.cnpq.br/3815097029716383

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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