Manipulação do Genoma Humano e o risco de Eugenia

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Com o avanço da biotecnologia ensejaram necessidades que o ordenamento pátrio ainda não foi capaz de acompanhar, trazendo lacunas a conteúdos que modificariam diretamente a convivência em sociedade. Em contrapartida, a manipulação genética para o Direito ainda é um palco que não foi descortinado, a omissão a respeito de regras e disposições claras carregam uma série de questionamentos ora não respondidos.

Conforme demonstra Sandel (2013), a manipulação do genoma humano representa um plácito onde se encontra a possibilidade de tratar e prevenir doenças e um óbice, além dos riscos, a possibilidade de manipular a natureza humana para principalmente escolher o sexo, definir características físicas, tais como melhoramento estrutural, muscular, aumento da memória, alteração da estatura, etc. Essa distinção, contudo, desemboca em uma linha tênue e polêmica no domínio do aperfeiçoamento genético.

Buchanan, et al. (2000), revela ainda que os avanços da engenharia genética constantemente traz a tona os velhos temores da eugenia. Afinal, como demonstra Burrin (1990), Adolf Hitler buscava obstinadamente o progresso de seus três erres: reich (império), raum (espaço) e rasse (raça). No entanto, a eugenia não foi uma ideia original do nazismo por já difundir na Europa entre cientistas do século XIX. Todavia, Hitler, auxiliado por um grupo de médicos e outros cientistas que apoiavam o Reich, levou a cabo o projeto que tinha o propósito de purificar a sociedade germânica dos seres indesejáveis. Dentro desses grupos indesejáveis estavam aqueles que viviam confinados em hospícios e asilos. Além disso, crianças que apresentassem algum problema grave de saúde e deficientes físicos integravam também essa lista de indesejáveis.

Burrin (1990) ainda descreve o início dos campos de concentração onde

Hitler e a sua elite eugenista faziam os experimentos para a sua solução final. Diz Burrin (1990, p.68):

[...] Solicitado por um casal que lhe pedia para autorizar a morte do filho incurável, Hitler respondeu favoravelmente. Decidiu então que o mesmo destino seria imposto sem apelação a todos os recém-nascidos portadores de deformações ou anormais. No dia 18 de agosto de 1939, uma circular do Ministério do Interior obrigava os médicos e parteiras do Reich a declarar as crianças que sofriam de uma deformidade. Reunidos em seções especiais, elas foram mortas pela injeção de drogas ou pela fome. Hitler e seu alto escalão de oficiais também preparavam o isolamento e o extermínio de judeus, ciganos, poloneses e outros grupos que julgavam inferiores ou nocivos. No mesmo período em que colocavam em prática essas atrocidades. Em 1945, já somavam mais seis milhões de pessoas mortas nos campos de concentração.

Contudo, de acordo com Sandel (2013) deve-se analisar os fatores que distanciam a eugenia que no século passado causou atrocidades, da eugenia relacionada aos atuais avanços da manipulação genética. Enquanto a primeira abrangeu uma coletividade, a segunda delimita a escolhas individuais, sendo menos rigorosa do que aquela, que nasceu da aspiração de aprimorar a humanidade.

Entretanto, mesmo a eugenia liberal tendo como objeto o indivíduo e seja identificada pela neutralidade do Estado, também poderá implicar uma possível compulsoriedade estatal. Segundo os autores que defendem o melhoramento genético não há diferença entre melhorar as capacidades intelectuais de uma criança por meio da educação ou mediante intervenção genética. Nesse raciocínio, o que importa é que nenhum dos dois lados atravesse a autonomia da criança, ou seja, que as habilidades melhoradas sejam um meio adequado para todos os fins e não direcionem a criança para nenhum segmento ou modo de vida específicos.

Nada obstante, em torno de tais discussões, Habermas (2004) entende que é necessário estabelecer uma distância entre eugenia negativa e eugenia positiva, diferentemente do que aceitam de eugenia liberal. A primeira atribui-se às intervenções genéticas para a prevenção de doenças hereditárias graves e outras enfermidades, a segunda, refere-se às intervenções para o aprimoramento genético das características do ser humano. Em contrapartida, a eugenia liberal, segundo o mencionado filósofo, não reconhece um limite entre as intervenções terapêuticas e de aperfeiçoamento.

Neste contexto, Habermas (2004) expõe críticas às técnicas de aperfeiçoamento genético e manifesta-se favoravelmente à prática eugênica somente com objetivos terapêuticos, acreditando que a evolução da biotecnologia poderá ditar o futuro da evolução biológica da espécie humana, assinalando uma ameaça à dignidade, à autonomia, e à natureza humana. O aprimoramento genético, nesta visão, teria a capacidade para fabricar os seres humanos e transformá-los em máquinas projetadas para alto rendimento e objeto de interesses econômicos, militares, políticos, entre outros.

Por outro ponto de vista, Andorno (2009) considera que a liberdade caracteriza o homem e permeia sua dignidade, de modo que a liberdade científica e a dignidade humana devem andar juntos. Enquanto a maioria dos seres vivos são condicionados pelo instinto, o ser humano, através do uso da razão, tem a liberdade para escolher a conduta a seguir.

Entretanto, ao mesmo tempo em que se permite a implementação de novas biotecnologias, também é preciso estabelecer limites para que as intervenções genéticas não cheguem a ocorrer em detrimento do próprio ser humano. Logo, dentro desse caminho é importante ressaltar a visão kantiana de não utilizar pessoas apenas como meio, destituindo-as de sua dignidade. Diante disso, é possível construir limites éticos e jurídicos às intervenções da biotecnologia no ser humano.

Rabinow (1992) argumenta que a crescente impregnação da sociedade pelo conhecimento genético trará mudanças inimagináveis, já que a nova genética remodelará a sociedade e a vida porque será implantada em todo o tecido social por práticas médicas. A Unesco, que aprovou, em 1997, a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, estabeleceu que a clonagem humana não deve ser permitida. Como este diploma não tem força de lei, o que se observa é que os países vão flexibilizando suas posições e vários já permitem experiências para fins terapêuticos.

No Brasil, os estudos e pesquisas advindas de gene somente vieram a causar impacto e ser observado no âmbito jurídico com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, trazendo em seu art.225, §1o:

Art. 225: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1o - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; [...] V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

O caminho das pesquisas que tem como objetivo a busca pela trajetória do desenvolvimento e funcionamento do corpo humano é longa. Osório e Robinson (2001, p. 15) salientam que:

[...] a espécie humana surgiu em nosso planeta há 40.000 ou 50.000 mil anos, e é razoável pensar-se que nossos ancestrais também fossem tão curiosos como nós quanto a questão hereditária. O que nos leva a pensar nisso são gravuras Babilônia, datadas de, no mínimo. 6.000 anos, as quais mostram genealogias sobre a transmissão de certas características das crinas dos cavalos. No entanto, qualquer tentativa de desvendar os segredos da genética teria sido prejudicada por um respeito de processos básicos quanto a concepção e a reprodução.

Myszcuk (2006, p. 38) destaca que a criação da Organização do Genoma Humano em 1988 Human Genoma Organization HUGO teve como objetivo coordenar os esforços internacionais para evitar duplicações e superposições de pesquisas. A HUGO (Human Genome Organization) está diretamente ligada ao comitê de bioética da UNESCO e suas atividades são desenvolvidas a partir de quatro princípios:

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1a: O reconhecimento da característica de patrimônio comum da humanidade;

2a: A adesão às normas internacionais que versam sobre os direitos humanos;

3a: O respeito aos valores, tradições, cultura e integridade dos envolvidos no estudo;

4a: A defesa da dignidade da pessoa humana e da liberdade. Esses princípios são de suma importância, já que as pesquisas estão sendo realizadas tanto pelo setor público como pelo privado, exigindo discussões reflexivas para evitar que os princípios bioéticos impostos pelos países ricos se sobreponham àqueles definidos pelos países em condições econômicas inferiores, pois, do contrário, a forma de exploração às pesquisas genéticas se darão somente para fins de experiências, afastando os benefícios das descobertas. Dispõe a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em seu art. 12- A: os benefícios resultantes do progresso em biologia, genética e medicina, relacionadas com o genoma humano, deverão ser disponibilizados a todos, com as devidas salvaguardas à dignidade e aos direitos humanos de cada pessoa

Conforme Conti (2001), em face de insuficiência das normativas exigentes sobre as novas tecnologias, haja vista que até mesmo os entendimentos da bioética são desprovidos de coerção, havendo a necessidade de se incorporar às discussões bioéticas ao direito, havendo com que surgisse a quarta geração do direito, sendo este denominado de Biodireito, cujas as normas partem da conduta humana em face do princípio à vida.

Referências

ANDORNO, Roberto. Liberdade e Dignidade da pessoa: dois paradigmas opostos ou complementares na bioética? In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 73-93.

BUCHANAN, Allen; BROCK, Dan W; DANIELS, Norman; WIKLER, Daniel. From Chance to Choice: Genetics and Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

BURRIN, Philippe. Hitler e os Judeus Gênese de um genocídio. (trad. Ana Maria Capovilla). Porto Alegre, L&PM, 1990. p. 68.

CONTI, Matilde Carone Slaibi: Ética e direito na manipulação de genoma humano. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?Trad. Karina Janinni. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HUGO. Human Genome Organization. Disponível em: https://www.hugo- international.org/. Acesso em: 19 de agosto de 2022.

MYSZCZUK, Ana Paula. Genoma Humano: limites jurídicos à manipulação. 2 tir. Curitiba: Juruá, 2006, p.38.

RABINOW P. Artificiality and enlightenment: from sociobiology to biosociality. In: Crary J, Kwinter S, editors. Incorporations. New York: Zone Books; 1992. p. 234- 252.

SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Trad. Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 2013.

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