O DIREITO CIVIL BRASILEIRO E A TUTELA DAS DIFICULDADES DE ADIMPLEMENTO DOS INQUILINOS NOS CONTRATOS LOCATÍCIOS COMERCIAIS FACE A PANDEMIA DE 2020.

26/08/2022 às 20:53
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Trabalho apresentado como requisito para conclusão do MBA em Relações Institucionais e Governamentais do IBMEC Educacional Professor Orientador: Tereza Cristine Almeida Braga. BRASÍLIA 2020.

RESUMO

Com a epidemia de covid-19, surge a necessidade de buscar no Direito Civil brasileiro formas para tutelar as dificuldades de adimplemento dos inquilinos nos contratos locatícios comerciais. O presente trabalho tem o objetivo de analisar os mecanismos que o Direito Civil pátrio oferece frente às dificuldades de adimplemento dos inquilinos nos contratos locatícios comerciais em razão da pandemia. Assim, o presente estudo analisa os artigos 317, 393 e 478 do Código Civil que podem oferecer a proteção dos contratantes surpreendidos com a crise de saúde e econômica de 2020. Pondera-se ainda as possibilidades ofertadas pelos princípios contratuais clássicos extraídos dos mencionados dispositivos e do arcabouço normativo pertinente ao tema em questão, entre eles a cláusula rebus sic stantibus (teoria da imprevisão), que busca solucionar os embates de interesses sinalagmáticos envolvidos e em choque, bem como os postulados da boa-fé, da probidade contratual e da função social do contrato. Tais princípios devem marcar, em tempos de pandemia, o bom senso entre as partes no contrato locatício. O presente estudo foi desenvolvido através de revisão da literatura para a apresentação do disposto acima.

Palavras-chave: Contrato; Locação; Direito Civil; Cláusula rebus sic stantibus; Pandemia; Covid19. ABSTRACT With the covid-19 epidemic, there is a need to seek in Brazilian Civil Law ways to protect the tenants' difficulties in complying with commercial lease agreements. The present work has the objective of analyzing the mechanisms that the Brazilian Civil Law offers in the face of the difficulties of tenants' performance in commercial lease contracts due to the pandemic. Thus, the present study analyzes articles 317, 393 and 478 of the Civil Code that can offer protection to contractors surprised by the health and economic crisis of 2020. The possibilities offered by the classic contractual principles extracted from the mentioned devices and of the normative framework pertinent to the topic in question, among them the clause rebus sic stantibus (theory of unpredictability), which seeks to resolve the clashes of signagmatic interests involved and in shock, as well as the postulates of good faith, contractual probity and function contract. Such principles should mark in times of pandemic, common sense between the parties to the lease. The present study was developed through a literature review to present the above provisions.

Keywords: Contract; Location; Civil right; Rebus sic stantibus clause; Pandemic; Covid-19.

1. INTRODUÇÃO

A partir da cidade de Wuhan na China, no mês dezembro de 2019, o vírus conhecido como covid-19 ganhou maiores proporções e a crise do Coronavírus cresceu exponencialmente nos primeiros meses de 2020. A metrópole chinesa de 11 milhões de habitantes foi noticiada como o primeiro epicentro de uma pandemia que a humanidade enfrentaria no ano 2020. Em 31 de dezembro de 2019 a Representação da Organização Mundial de Saúde (OMS) na China recebeu a informação de graves casos de pneumonia com agente causal desconhecido detectados em Wuhan. Posteriormente verificou-se que se tratava do Coronavírus. Em 9 de janeiro de 2020 foram anunciadas pelas autoridades chinesas as análises sequenciais do vírus e, a partir de então, o vírus identificado com SARS CoV-2 - também passou a fazer vítimas em outros Países. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), diante do avanço da doença causada pelo novo vírus corona (covid-19). Essa declaração trata-se do mais alto nível de alerta da OMS, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional (NISA, 2020) 1 . Em 11 de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde (2020) noticiou ao mundo que havia uma pandemia de covid-19 em curso o que obrigou uma alteração no panorama mundial. Assim, nacionalmente, também nos vimos obrigados à mudanças de hábitos em todos os aspectos da vida em sociedade. A crise do coronavírus afeta de forma direta as relações comerciais em âmbito nacional e internacional em todos os setores, muitas das quais, até o momento, estão interrompidas. Consequentemente, um efeito em cadeia está sendo gerado com possíveis violações de obrigações contratuais. Assim, entra em cena os instrumentos de resolução de conflitos negociais. O conceito de imprevisão (cláusula rebus sic statibus) torna-se um instrumento jurídico essencial a ser levado em consideração em tempos de crise e incerteza. No caso, será necessário analisar se o surto de coronavírus e seus efeitos se enquadram no escopo da referida cláusula que visa segurança jurídica para as relações locatícias comerciais. Assim, as relações contratuais são repensadas com a visão do complexo jurídico que as amparam: de um lado o direito prima pelo cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda) e é equilibrado por outros valores tais como o princípio da preservação do contrato e da conservação do negócio jurídico. Este trabalho objetiva analisar os instrumentos previstos no direito pátrio frente às dificuldades de adimplemento dos inquilinos nos contratos locatícios comerciais durante e após a pandemia de 2020. Busca-se analisar o processo de enfrentamento do covid-19 nas relações contratuais locatícias de cunho comercial sob o ângulo do Direito Civil e dos princípios constitucionais que fluem para o direito privado naturalmente, por força da doutrina abalizada e da jurisprudência consolidada. A importância desse estudo consiste na verificação dos pontos de tensão no campo jurídico, visando solucionar as crises nos contratos locatícios com o arcabouço normativo existentes e já considerando que outras propostas normativas, no momento encontram-se em tramitação no Congresso Nacional. Além disso, consignando também o resultado esperado da tutela de direitos e deveres do Direito Civil especificamente o ângulo que rege os contratos de locação não residencial. Verifica-se que a Constituição Federal e o Direito Privado possuem mecanismos de enfrentamento de crises (imprevistos, casos fortuitos e de força maior), mas em momentos marcantes como o presente, quando o evento inesperado e imprevisível está ocorrendo, torna-se premente a necessidade de organizar e desenvolver mecanismos de aprimoramento nos aspectos gerenciais da crise econômica e financeira experimentadas pelos tutelado do direito, através da discussão de ferramentas que possibilitam o aprimoramento de soluções jurídicas ocasionando a superação menos traumática possível do efeito pandemia no mercado e na sociedade alcançada pelo mercado. Dessa forma, identifica-se relevância sobre o debate e a pesquisa acadêmica, enriquecendo as discussões e considerando o cenário normativo e social do País. O estudo foi realizado através de revisão da literatura de cunho qualitativo e se caracteriza de forma inicial pela coleta de referenciais teóricos, para construção da literatura de base, com a discussão das ideias acerca da temática e análise dos fatos na verificação de conceitos, seguindo-se pela verificação e confrontação das respectivas definições.

2. OBJETIVOS

2.1 Objetivo Geral O Objetivo geral do projeto é analisar os mecanismos previstos no Direito Civil pátrio para tutelar as dificuldades de adimplemento dos inquilinos nos contratos locatícios comerciais na pandemia do Coronavírus em 2020. 2.2 Objetivos Específicos Para alcançar o Objetivo Geral, partiremos das seguintes atividades: - Verificar os danos decorrentes da pandemia de covid-19, e suas implicações nas relações contratuais. - Analisar o Direito Civil pátrio frente as dificuldades de adimplemento dos inquilinos nos contratos locatícios comerciais por meio da análise dos artigos 317, 393 e 478 do Código Civil e dos princípios contratuais extraídos do arcabouço normativo pertinentes. - Propor soluções alternativas e alterações legislativas necessárias para suprir a demanda e defasagens perante a situação calamitosa e urgente que demandará estratégias eficazes.

3. JUSTIFICATIVA

Este estudo se justifica por ter relevância social e legal, além de analisar uma temática atual, que envolve as relações contratuais frente a pandemia de covid-19. Em abril de 2020, noticiou-se que segundo levantamento da Universidade Norte-Americana Johns Hopkins, o número de infectados no mundo ultrapassou 1,5 milhão e computam-se mais de 100 mil mortes em consequência da doença. Nesse momento, a Itália registrou 18.849 mortes, Estados Unidos 18.002 mortes, Espanha 15.970 mortes, França 13.197 mortes, Reino Unido 8.958 mortes e o Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde já ultrapassou 50.000 mortes.2 Em 06 de fevereiro de 2020, adveio a Lei nº 13.979, que dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. A referida Lei trouxe em seu bojo importantes conceitos e disposições acerca da pandemia:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. § 1º As medidas estabelecidas nesta Lei objetivam a proteção da coletividade. § 2º Ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta Lei. § 3º O prazo de que trata o § 2º deste artigo não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial de Saúde. Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se: I - isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e II - quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus. Parágrafo único. (...).

Em 20 de março desse mesmo ano, o Decreto Legislativo nº 06 de 2020 (publicado no Diário Oficial da União em 20/03/2020, Edição 55-C, Seção 1 Extra, página 1), reconheceu o estado de calamidade pública atendendo à Solicitação nº 93, de 18 de março de 2020 do Presidente da República. Diante desse cenário inesperado começaram as restrições de locomoção com suspensão de viagens internacionais e internas nos países, suspensão de aulas, fechamento de indústrias, de shoppings e do comércio em geral de bens e serviços, observando-se a continuidade tão somente dos serviços considerados essenciais. As medidas estão sendo ampliadas e tornando-se mais drásticas à medida que ocorre o avanço da doença no Planeta. O Brasil assistiu todos os setores da economia sendo afetados subitamente de alguma forma pelas restrições e medidas econômicas que foram sendo tomadas pelos governantes que emergencialmente também iniciaram uma sequência de aporte de recursos para a guerra contra o vírus letal. Segundo Oliveira (2020, p. 01):

No Brasil, a fim de conter a crescente contaminação, o poder público de inúmeros municípios e estados tem determinado o fechamento total dos locais que prestam serviços não essenciais, em especial empreendimentos comerciais (lojas, academias, escolas, shoppings etc.), medida essa cujos efeitos, a médio e longo prazo, têm gerado preocupação até dos empreendedores mais otimistas. Pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Serviços (CNS) prevê que o comércio perderá cerca de R$ 80 bilhões em faturamento, gerando dois milhões de demissões de funcionários do setor. Como exemplo, uma grande rede varejista informou que, diante do fechamento das suas 175 lojas, prevê receita zero pelo período de três meses.

Frente a essa batalha contra a propagação da doença, a sociedade receia também pelo futuro econômico da Nação, já que o País está voltado a impedir as dezenas de milhares de mortes que o vírus já causou nos primeiros países que atingiu. Esse contexto certamente impactará todas as áreas do Direito, devendo ser identificado como um ensejo de estudar sobre o tema que se mostra atual e importante para qualquer ramo da ciência jurídica e de forma específica os impactos da pandemia para os direitos e deveres dos contratantes locatícios regidos pelo Direito Civil. Vieram à vigência Decretos e outros atos normativos legais e infralegais nacionais, estaduais e municipais que almejando controlar a disseminação da doença trouxeram os contornos da limitação de circulação e a restrição de funcionamento de estabelecimentos comerciais.

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Em 10 de junho de 2020, chega ao cenário jurídico nacional a chamada Lei da Pandemia nº 14.010, que dispôs sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado RJET. Contudo, o artigo 9º que vedou a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020, foi vetado.

Verifica-se que a Constituição Federal e o direito privado possuem mecanismos de enfrentamento de crises (imprevistos, casos fortuitos e de força maior), mas em momentos marcantes como o presente, quando o evento inesperado e imprevisível está ocorrendo, torna-se premente a necessidade de organizar e desenvolver mecanismos de aprimoramento nos aspectos gerenciais da crise econômica e financeira experimentadas pelos tutelado do direito, através da discussão de ferramentas que possibilitam o aprimoramento de soluções jurídicas ocasionando a superação menos traumática possível do efeito pandemia no mercado e na sociedade alcançada pelo mercado.

4. REFERÊNCIA CONCEITUAL

Da questão posta surge a necessidade de o Direito apresentar soluções para os interesses legítimos que se contrapõem na relação locatícia comercial. Com efeito, existem dispositivos legais e constitucionais para assegurar soluções técnicas pautadas pela boa fé contratual, propiciando a continuidade do contrato e o bem-estar dos contratantes em uma cuidadosa ponderação de valores jurídicos. Em uma breve análise do complexo jurídico existente temos, a partir da Constituição Federal na pirâmide normativa idealizada por Kelsen (1999), a necessidade de observância dos fundamentos da República Federativa do Brasil, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF/88) a determinação de que será privado de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF/88), a previsão de cumprimento de função social por empresa e por propriedades em geral (art. 5º, XXIII e 170 e 182, da CF/88), bem como o primado da justiça social (art. 170 da CF/88).

Na ordem hierárquica citada, logo em seguida aos preceitos constitucionais, encontram-se os artigos 317, 393 e 478 do Código Civil, bem como os princípios contratuais extraídos do ordenamento jurídico brasileiro, que podem alcançar de forma suficiente a proteção efetiva dos contratantes surpreendidos com a crise de saúde e econômica de 2020. Constata-se que existem normas e princípios contratuais no direito pátrio que, podem apresentar solução aos embates entre os interesses envolvidos no cenário de crise, e que ainda promovem o respeito aos postulados jurídicos da boa-fé, da probidade contratual e da função social do contrato que devem marcar o bom senso entre as partes nos contratos locatícios. Assim, é possível observar nas relações contratuais que as Leis em vigor e os princípios estão aptos a concretizar na prática locatícia em momentos de crise, como o presente, seus efeitos com a aplicação de institutos citados, tais como a cláusula geral da boa-fé objetiva e a cláusula rebus sic stantibus, por suas particulares relevâncias durante as restrições e consequências da pandemia. O princípio geral de direito contratual "rebus sic stantibus" estabelece que, enquanto as circunstâncias permanecerem as mesmas, as condições do contrato permanecerão as mesmas.

Em contrapartida, o conceito de teoria da imprevisibilidade é definido como fatos extraordinários de natureza nacional que não eram possíveis de prever e que dificultam o cumprimento das obrigações de uma das partes. Essa parte pode tentar uma ação legal destinada a recuperar o equilíbrio entre as obrigações. De acordo com Venosa (2008, 451), o surgimento da teoria da imprevisibilidade ocorreu na Idade Média e assim é configurada da seguinte forma:

É costume colocar na Idade Média a materialização dessa doutrina. É levada em consideração a aplicação da conditio causa data non secuta, segundo a qual o contrato deveria ser cumprido conforme as condições em que foi ultimado. Possibilitava-se a alteração se se modificassem as condições: contractus qui habent tractum secessivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelligentur. Difundiu-se a cláusula resumidamente como rebus sic stantibus, nos contratos de trato sucessivo e dependentes do futuro, como implícita em todo contrato de trato sucessivo. No entanto, princípios da mesma natureza foram observados em legislações muito anteriores a Roma.

Na atualidade, a teoria da imprevisão vem estabelecida nos artigos 317, 393 e 478 do Código Civil (BRASIL, 2002). O artigo 317 do Código Civil prima pela conservação do contrato, sendo perceptível uma tentativa do legislador de preservar o que foi pactuado. O artigo 478 do Código Civil estipula a possibilidade de resolução contratual, e o artigo 479 oportuniza um acordo entre as partes ao afirmar que A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. O art. 480 completa o raciocínio, ao afirmar Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. (BRASIL, 2002). De acordo com Guerra (2020, p. 01):

Esses artigos são abordados por aqueles que, apesar de reconhecerem a pandemia da covid-19 e que ela pode em determinados casos ser motivo de alegação de caso fortuito ou força maior, não tratam destes como os maiores fundamentos de discussões locatícias, mas sim a quebra da base contratual. Ao invés de se focar em fundamentos que podem vir a trazer eventualmente a própria resolução do contrato, passa-se a, baseado na necessidade de equilibrar a relação, ajustar a prestação para um patamar mais justo.

Assim, inobstante o contrato de duração continuada ficar exposto à possibilidade de acontecimentos imprevisíveis e prejudiciais a manutenção das cláusulas inicialmente contratadas, o ordenamento normativo nacional possui dispositivos previamente estabelecidos para momentos adversos em razão da inesperada privação de condições das partes adimplir os ônus do contrato de locação comercial. Por conseguinte, essas previsões normativas já existentes possibilitam a continuação das relações contratuais ou rescisão destas, minimizando os riscos contratuais de inadimplemento, além de facilitar a solução de todas as possíveis controvérsias entre as partes. Outrossim, um momento de crise como o presente impõe aos contratantes a relativização do pacta sunt servanda, isto é, do princípio da obrigatoriedade, pois a legislação permite a alteração das bases iniciais do contrato, em face da autonomia contratual das partes. Entre as possibilidades, verificamos que pode ser realizada a rescisão ou a renegociação, pela via consensual entre as partes, sempre presente o bom senso (boa fé e lealdade) e todos os valores aqui mencionados, ou via conciliação, arbitragem e mediação, sempre com o direito de ação assegurado dentro dos cânones constitucionais da inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, XXXVI, CF/88) e do devido processo legal (art. 5º, LIV,CF/88). Também comporta abordar que novas leis estão surgindo à medida que são necessárias para suprir a demanda e defasagens perante a situação calamitosa e urgente que demandará soluções eficazes. Essas normas têm vigência temporária e visam minimizar os impactos da pandemia além de apresentar mecanismos para atuação dos gestores.

5. DESENVOLVIMENTO DO PROBLEMA

Frente à pandemia de covid-19 em 2020, pode-se questionar se o arcabouço jurídico, especialmente, o Direito Civil possui mecanismos para apoiar os titulares de seu campo de atuação diante dos problemas que as restrições físicas e as consequências econômicas da pandemia irão apresentar aos contratos de locação comercial. Assim, questiona-se como o Direito Civil brasileiro poderá tutelar as dificuldades de adimplemento dos inquilinos nos contratos locatícios comerciais frente à pandemia de 2020?

É certo que o Direito Civil possui previsões expressas que podem fazer frente às dificuldades de adimplemento dos inquilinos nos contratos locatícios comerciais em razão da pandemia de 2020. Os artigos 317, 393 e 478 do Código Civil possibilitam solucionar as lides que surgem entre os contratantes surpreendidos com a situação de anormalidade de 2020. Além dos dispositivos normativos, extrai-se ainda da doutrina clássica os postulados da boa-fé, probidade contratual e função social do contrato, igualmente disponíveis para aplicação pelos operadores do direito. Contudo, é preciso verificar dentro do cenário da atual pandemia as diferentes relações empresariais estabelecidas e seus respectivos contratos. A título de exemplo, citamos a necessidade de verificar se o inadimplemento contratual ocorreu antes da pandemia, em função da pandemia ou ainda se foi uma situação em que a pandemia agravou a situação do inquilino perante o respectivo locador. No âmbito do Poder Judiciário, para cada uma das hipóteses estudadas, verificou-se que juízes e tribunais têm conferido soluções diferenciadas. Por um lado, determinados juízes têm privilegiado a relação locatícia em favor dos inquilinos, sobretudo pelo fundo de comércio com os elementos do estabelecimento comercial ali consolidados. De outro lado, há o exame da má fé do inquilino em se valer da pandemia para não cumprir com as obrigações contratuais. Dentro desse cenário, uma solução eficiente talvez seja normatizar um plano de recuperação das relações locatícias.

É possível antecipar a existência de diferentes possibilidades para manter os contratos, tais como: um plano de renegociação dos contratos que estabeleça um percentual de redução, prazos, juros, mecanismo extrajudiciais de negociações com base solidariedade ética entre os contraentes e a análise caso-a-caso. Assim, também é necessário aferir, no caso concreto, se a inadimplência é pontual e causada pela pandemia e que efetivamente prejudicou o negócio com perfil presencial e foi causador de onerosidade excessiva, a título exemplificativo. Outro ponto a ser proposto seria a solução extrajudicial intermediada por mediação, conciliação ou arbitragem que já está sendo indicada pelos magistrados como forma eficiente de solucionar as questões contratuais aqui tratadas. Para elucidar como está sendo tratado caso a caso a essa questão, transcrevemos a título exemplificativo, alguns julgados:

O Tribunal de Justiça de São Paulo tem decidido da seguinte forma:

Locação comercial. Tutela de urgência. Pandemia por COVID19. Redução do valor do aluguel em face da proibição à abertura do estabelecimento comercial. Fato do príncipe que corresponde à figura da força maior. Artigo 317 do Código Civil que autoriza nesses casos a readequação do valor da contraprestação. Redução em 50% que se mostra razoável enquanto persistir aquela proibição. Recurso provido. AGRAVO DE INSTRUMENTO 2081753- 47.2020.8.26.0000. 9ª Vara Cível. Voto 37.416. (...) Assim, DEFIRO PARCIALMENTE a tutela de urgência, a fim de determinar a SUSPENSÃO da exigibilidade dos pagamentos referentes ao aluguel mínimo mensal e fundo de promoção e propaganda do contrato de locação firmado, enquanto a determinação de fechamento dos shoppings em razão da pandemia permanecer (...) Processo 1010893- 84.2020.8.26.0114/SP. Tutela Cautelar Antecedente Liminar.

Decisão semelhante aconteceu no Tribunal de Justiça do Paraná:

Diante do exposto, defiro em parte o pedido de antecipação dos efeitos da tutela para: (...) a) determinar a suspensão do contrato administrativo TC 02.2018.007.0050 a partir de 20/03/2020 até o reconhecimento pelo Congresso Nacional do fim do estado de calamidade pública; b) autorizar a parte autora a efetuar o pagamento do preço mínimo do aluguel referente ao mês de março/2020 proporcional a quantidade de dias em funcionamento, o que representa R$2.466,45. (...) (grifei) Processo 5017470- 58.2020.4.04.7000/PR.

No Distrito Federal:

Agravo de Instrumento Revisional de Aluguéis Escritório de Advocacia Pandemia COVID-19 Atuação do Judiciário Parcimônia Deferimento Parcial da Antecipação dos Efeitos da Tutela Recursal. (...) Acredito ser adequada e equânime, portanto, ao menos neste juízo inicial de delibação, a redução do aluguel para o próprio valor apresentado pelo credor, mas estendendo tal redução para os meses de abril e maio, não apenas março, devendo eventual compensação, se existir, ser verificada apenas quando do julgamento do mérito, quando se terá maiores elementos para verificar as condições econômicas do locador. A atuação, desta forma, ao menos para mim, diminui a tensão da relação entre as partes, considerada, sempre, a excepcionalidade do quadro mundial. Diante do exposto, DEFIRO PARCIALMENTE o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal para reduzir o valor do aluguel pago pelo agravante de R$ 2.000,00 (dois mil reais) para R$ 1.300,00 (mil e trezentos reais) mensais referente os meses de março, abril e maio de 2020. Eventual postergação da redução ou cessação dela poderá ser analisada quando da apresentação das Contrarrazões a este Agravo de Instrumento, em razão do avanço da Pandemia ou das condições econômicas do locador. (...) Processo: 0707596- 27.2020.8.07.0000/DF.

Nesse caso, o Relator ainda fez o importante apelo:

Conclamo as partes à autocomposição, pois elas mesmas têm o conhecimento exato de suas capacidades econômicas e de mitigação de prejuízo, para fins de manutenção, ao fim, do Contrato.

Assim, verifica-se a necessidade de análise pelo judiciário e pelos demais profissionais capacitados, de cada caso concreto com as bases de justiça pré estabelecidas dentro das previsões legais do direito privado que regem a matéria, verificando também o que diz a esse respeito o Direito Constitucional que, de forma importante, irradia regras e princípios para o Direito Civil. Cada caso merece ser analisado com suas peculiaridades, sem a possibilidade de padronizar uma solução homogênea, visto a diversidade de questões levantadas pelos contratantes conforme a ocorrência de dificuldades maiores ou menores para cada situação. Tal plano e instrumental preparado para receber essas demandas também deve prever a orientação de que as partes busquem a auto composição extrajudicial visando celeridade na resolução dos numerosos casos que estão surgindo em decorrência da pandemia e do imprevisível fechamento dos estabelecimentos comerciais.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.1 Contexto do Direito Civil em tempos de pandemia

Pode-se concluir que existem os princípios contratuais, como boa-fé e probidade contratual, que devem ser seguidos mesmo em tempos de pandemia, sendo que se deve ter bom senso entre as partes do contrato locatício. As condições justas, presentes na legislação devem ser tidas como referenciais para renegociação dos contratos, devendo-se ater que os princípios constitucionais apresentam os elementos da livre inciativa, na qual as variáveis existentes devem ser respeitadas buscando-se a segurança jurídica. Assim, a sociedade passa por uma situação pandêmica nunca vivenciada, e as relações contratuais que respaldam a segurança jurídica entre as partes devem ser rediscutidas frente à calamidade social e econômica que se encontra e que será vivenciada no curto e longo prazos. O Direito Civil está em um momento de ampliação dos conceitos, uma vez que assim como os demais ramos do direito, passa pelo fenômeno da constitucionalização do Direito. O ambiente profícuo que esse ramo do direito experiência ocasiona a possibilidade de soluções eficientes advindas do cumprimento de normas expressas pré estabelecidas no texto legal da codificação civilista brasileira e àquelas normas e princípios extraídos do texto constitucional. Segundo Luis Roberto Barroso (2012) a constitucionalização do Direito:

Está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. (...) A Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também, como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.

6.2 As relações locatícias em tempos de pandemia

As transações negociais não podem parar, mas podem e devem ser suspensas em momentos de crise viral como a que ocorre no ano de 2020. O sistema normativo e constitucional tem mecanismos de resolução pacífica e justa para tempos incomuns como esses, e chegou o momento de aplicação desses mecanismos. Os diferentes casos concretos citados relacionados aos problemas das relações locatícias em tempo de pandemia já analisados pelo Poder Judiciário mostram que há soluções para cada relação contratual entre inquilino comerciante e seu locador comercial durante todo o período da crise econômica gerada pela pandemia. O Juiz possui condições de olhar o caso concreto e relativizar o cumprimento da obrigação, visando a preservação do contrato, pois a sua não relativização levaria ao rompimento da relação jurídica, prejudicando o próprio credor. Dessa forma, cada caso pode receber solução personalizada e que ao mesmo tempo não fira a igualdade, a eficiência, a boa-fé, a razoabilidade e os demais preceitos e regras pré fixados nos mecanismos legais e constitucionais de controle do direito brasileiro.

6.3 Considerações sobre o papel da mediação da autocomposição e da arbitragem para a resolução dos conflitos locatícios em tempos de pandemia

O Código de Processo Civil trouxe em seu texto o que a doutrina passou a chamar de justiça ou sistema multiportas. Assim, o art. 3º, § 3º do CPC/2015 diz: A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. Destarte, além da possibilidade de as partes negociarem os critérios de superação do momento de crise entre si com o apoio de advogados visando a preservação do ajuste contratual, podem ainda, se não houver o consenso necessário, buscar o auxílio da mediação extrajudicial prevista na Lei 13.140/2015. Conforme a sabedoria popular quando um não quer dois não brigam. Assim, no caso de mediação, basta que os interessados acordem em ter um auxílio do mediador, um profissional que vai ajudar as partes a resgatar os seus propósitos que forem convergentes. Há também a possibilidade de solução de conflitos através da arbitragem prevista na Lei 9.307/96. O árbitro promove um procedimento e ao final impõe uma decisão.

A Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe acerca dos referidos institutos (mediação e arbitragem), prevê em seu primeiro artigo:

Art. 1º. Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. (Redação dada pela Emenda nº 1, de 31.01.13) Parágrafo único. Aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art. 334 do Novo Código de Processo Civil combinado com o art. 27 da Lei de Mediação, antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão. (...)

Portanto, os meios extrajudiciais de solução de conflitos apresentam maneiras de se dirimir os litígios que envolvem os contratos locatícios comerciais e de resolvê-los de forma efetiva sem o desgaste temporal e financeiro muitas vezes encontrados no processo judicial e pode ser visto como um grande aliado dos operadores do direito na busca por celeridade, eficiência e economicidade para eliminar demandas judiciais.

7. RESULTADOS OBTIDOS

O desenvolvimento dos temas tratados no presente trabalho resulta na expectativa de alcançarmos um plano de atuação dentro do atual contexto com tratamento mais isonômico, célere e eficaz para os conflitos decorrentes da crise econômica gerada pela pandemia de 2020. De tal modo, um plano de trabalho para atuação dos operadores do direito de locações comerciais facilita o procedimento de resolução dos atritos que as partes poderão enfrentar já que o fato imprevisível traz surpresa e naturalmente gera incertezas. Logicamente, as soluções apresentadas podem ser utilizadas em outras crises imprevisíveis em momentos futuros, já que ao longo da história é visível que fatos assim surpreendem a humanidade de tempos em tempos. Tais estudos podem trabalhar a favor de um aperfeiçoamento dos mecanismos de pacificação extrajudiciais de controvérsias, bem como do sistema judicial e normativo em vigor.

8. RECOMENDAÇÕES PARA TRABALHOS FUTUROS

Trabalhos futuros poderão propor a criação de uma legislação específica para resolução auto compositivas em época de crises visando evitar decisões conflitantes, utilizando a boa-fé objetiva e outros princípios e valores que sentimos ser de aplicação necessária em momentos de grandes comoções e crises como ocorreu ao longo da história mundial e que atualmente está novamente em curso em todo o Planeta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, volume único. São Paulo: Método. 2019.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. vol. 3.

Sobre a autora
Cintia Rolim Alves

Jurista Especializada em Direito e em Relações Institucionais e Governamentais.

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