O direito financeiro de exceção

01/09/2022 às 17:14
Leia nesta página:

O direito financeiro de exceção é aquele abordado em tempos de crise. O problema se dá quando é preciso equilibrar o orçamento em tempos de crise com as despesas já existentes. Para cada escolha, uma consequência.

 

A Constituição Federal possui diretrizes a serem seguidas pelo Estado. Essas diretrizes serão implementadas, ou não, de acordo com os meios disponíveis para tal.

O Brasil é uma república federativa, o que importa dizer que há divisão de competências entre os Estados e União; os Estados são autônomos e participam das decisões da União.

Cada estado tem sua competência, assim como cada município, cabendo a eles a regulação de seus próprios interesses, editando normas jurídicas por eles próprios criadas, visto que possuem competência legislativa.

Pelos ensinamentos de Regis de Oliveira, denomina-se pacto federativo a forma pela qual se forma e se organiza o Estado Federal. Diz respeito à distribuição de competências entre a União, Estados-membros e Municípios[1].

Na carta constitucional o artigo 21 diz respeito às competências da União. No artigo 30 é expresso as competências dos municípios e no artigo 25, as competências dos Estados.

Existem também as competências concorrentes, ou facultativas, que ocorrem enquanto um órgão do poder não poder exercê-la, o sendo feito por outro ente. Já as competências paralelas ou comuns são aquelas que podem ser exercidas por mais de um ente Estado e União, por exemplo (OLIVEIRA, 2010, p.36).

Estabelecendo-se as atribuições de cada ente federativo, surge a divisão dos recursos, nos termos dos artigos 157 a 162 da Constituição Federal.

No momento em que falamos em receitas e despesas, trazemos à baila a figura da constituição financeira, como catequiza Heleno Torres:

A Constituição financeira consiste, assim, na parcela material de normas jurídicas integrantes do texto constitucional, composta pelos princípios, competências e valores que regem a atividade financeira do Estado, na unidade entre a obtenção de receitas, orçamento, realização de despesas de todas as competências materiais, financiamento do federalismo, custos dos direitos e liberdades, gestão do patrimônio estatal, bem como da intervenção do Estado[2].

Abrimos o artigo mencionando que as diretrizes constitucionais serão seguidas pelo Estado, ou não, de acordo com os meios disponíveis para tal.

Contudo, as diretrizes constitucionais não dependerão só dos meios, dos recursos disponíveis, visto que serão vinculadas às escolhas públicas, decisões emanadas dos agentes políticos.

Desse modo, não basta o recurso estar disponível, é necessário que haja vontade política para a realização das despesas.

Regis de Oliveira, de forma sucinta vai nos instruir:

A decisão de gastar é fundamentalmente uma decisão política, O administrador elabora um plano de ação, descreve-o no orçamento, aponta os meios disponíveis para seu atendimento e efetua o gasto. A decisão política já vem inserta no documento solene de previsão de despesas. Dependendo das convicções políticas, religiosas, sociais, ideológicas, o governante elabora seu plano de gastos. Daí a variação que pode existir de governo para governo, inclusive diante das necessidades emergentes. As opções podem variar: hospital, maternidade, posto de puericultura, escolas, rodovias, aquisição de veículos, contratação de pessoal etc.[3]

É a partir, portanto, das decisões políticas, que o Estado protegerá (ou não) direitos fundamentais, políticos e sociais, buscará mitigar desigualdades regionais e, com arrimo na Constituição Federal, e nos limites ali estabelecidos, decidirá sobre o destino da atividade financeira, quais recursos serão empregados, de onde sairão e para onde irão.

Regis de Oliveira vai adiante:

A sociedade reflete a realidade humana. Esta é composta de indivíduos desiguais e, pois, há de ser desigual. No entanto, deve chegar a um ponto de permitir que as desigualdades se superem ou se aproximem do mínimo aceitável. Dir-se-á que tal expressão (mínimo aceitável) não tem conteúdo. É verdade que se cuida de expressão vaga. No entanto, tem um mínimo de compreensão e de conteúdo. Significa que todos devam ter ensino oficial de boa qualidade, alimento que lhe permita uma vida saudável e habitar com dignidade. Este é o mínimo[4].

E dentro desse mínimo que deve ser conferido aos cidadãos, encontra-se o princípio da dignidade da pessoa humana, surgindo então o direito financeiro de exceção, que se constitui em escolhas políticas que devem ser tomadas em períodos de crise.

Para Friedrich Schiller, nada é tão indigno para o homem quanto sofrer alguma violência, pois a violência o anula. Quem a comete não faz nada menos do que contestar a nossa humanidade; quem a sofre covardemente abre mão de sua humanidade[5].

Violência possui um conceito amplo, de modo que pode ser física, emocional e/ou psicológica, desencadeada pelo descaso do poder público e político, escolhas equivocadas ou mesmo ausência delas.

É nessa situação que se encontra o homem. Cercado de incontáveis forças, todas superiores a ele, todas capazes de dominá-lo, ele reivindica, por meio de sua natureza, não sofrer violência alguma[6].

Na pandemia Covid-19, houve a promulgação da Emenda Constitucional 106/2020, também chamada de emenda do orçamento de guerra, que instituiu regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente da pandemia.

Promulgada também a Lei n. 13.982 de 2 abril de 2020, que alterou a Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e fixou medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19).

A PEC 01/22, chamada de PEC do estado de emergência, alterou a Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021, para dispor sobre a concessão temporária de auxílio diesel a caminhoneiros autônomos, de subsídio para aquisição de gás liquefeito de petróleo pelas famílias de baixa renda brasileiras e de repasse de recursos da União com vistas a garantir a mobilidade urbana dos idosos, mediante a utilização dos serviços de transporte público coletivo, e autorizar a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a reduzirem os tributos sobre os preços de diesel, biodiesel, gás e energia elétrica, bem como outros tributos de caráter extrafiscal.

Por seu turno, a EC 109/2021 alterou o artigo 37 da Constituição Federal, determinando que os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, decretou o estado de calamidade pública de âmbito nacional.

Referida Emenda Complementar também fixou em seu artigo 164-A que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis.

Nesses termos, em um momento de crise, o agente político deverá estabelecer o controle social do orçamento com o financiamento de direitos fundamentais, e o conciliar com a situação peculiar que se apresenta no momento, seja crise econômica, seja crise sanitária, seja a junção das duas hipóteses.

Dentro desse cenário, o poder público vai decidir quais rumos dará à economia e o que será importante priorizar.

Cumpre à Constituição Financeira assegurar a efetividade de todos os direitos e liberdades fundamentais, o que deve ser feito mediante adequado equilibro entre arrecadação e despesas públicas (TORRES, 2014, p. 142)

E a Constituição brasileira, por ser uma carta aberta, é igualmente um instrumento de transformação social e econômica, visto que sempre que necessário, novos direitos serão ali inseridos, como forma de proteção e asseguramento de novos valores.

A dificuldade se dará quando preciso conciliar os direitos fundamentais já previstos com os que vão surgindo ao longo do tempo. Quando uma crise inesperada surge, a complexidade aumenta.

Nesse momento é comum direitos fundamentais serem relativizados e direitos sociais, relegados.

A professora Élida Graziani Pinto, no livro Financiamento dos Direitos à Saúde e à Educação, aborda o persistente déficit de custeio para as políticas públicas voltadas para saúde e educação.

Apoiada em forte pesquisa, evidencia como os conflitos distributivos entre os entes federativos causaram instabilidades na proteção de direitos fundamentais da saúde, fragilizando o sistema SUS, ao passo que a educação, através de um trabalho em conjunto entre União e Estados, progrediu, corrigindo-se erros por meio de emendas constitucionais.

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O obstáculo de se tirar do papel e dar efetividade aos direitos humanos e fundamentais é constante, frente à escassez de recursos, vontade política e adequado financiamento.

E a bem dizer,

O desafio é grande e implica todos, pois, mesmo já transcorridos mais de 25 anos desde a promulgação da nossa Constituição Cidadã, ainda persiste o horizonte de subfinanciamento dos direitos fundamentais a exigir que os operadores do Direito reclamem e militem em prol da plena força normativa dos regimes constitucionais de custeio dos direitos à saúde e à educação[7].

O federalismo fiscal cuida da partilha dos tributos, receitas não-tributárias, pelos entes federativos, de modo que estes possam cumprir suas finalidades e isso inclui, obviamente, o cumprimento da carta constitucional, asseguramento de direitos fundamentais e sociais. Quando não cumprido, abre-se caminho para o direito financeiro de exceção.

A Constituição Federal estabelecerá objetivos constitucionais a serem seguidos pelos Estados, no âmbito do Estado Social, tais como bem-estar e justiça social, nos termos do artigo 193, bem como dignidade da pessoa humana, artigo 1°, III, e tantos outros indissociáveis de um Estado Democrático de Direito, tais como legalidade e moralidade.

Há de se harmonizar incentivos fiscais, renúncias fiscais, que guardam relação com a competitividade de um Estado em detrimento de outro, com a regionalidade de cada ente federativo, diversidade cultural, diferentes necessidades e finalidades.

O Instituto para Democracia e Sustentabilidade (IDS) lançou no mês de abril, diretrizes para o aprimoramento do federalismo brasileiro, com 24 propostas para a revisão do pacto federativo, dentre elas, a revogação do teto de gastos da União, a revisão da criação de municípios, a regulamentação e aperfeiçoamento dos instrumentos de transparência[8].

O pacto federativo é importante porque é dentro de sua premissa que as escolhas dos entes federativos serão realizadas, tais como alocação de recursos, realização de despesas e redução de desigualdades.

É um trabalho em conjunto a ser realizado entre União, Estados e Municípios para que, mediante predileções, vontades, prioridades, a carta constitucional seja cumprida, direitos respeitados e o direito financeiro de exceção usado com parcimônia.

Sobretudo, neste contexto, a vontade de cada agente nas decisões políticas impactará de sobremaneira a realidade de cada região, o crescimento do país, o asseguramento de direitos e respeito aos valores que norteiam a sociedade.

A vontade é o que caracteriza o ser humano, a própria razão não passa de sua regra eterna. Toda a natureza age racionalmente, a prerrogativa humana é apenas a de agir racionalmente com consciência e vontade. Todas as outras coisas são obrigadas; o homem é o ser que quer[9].

[1] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 3ª Ed, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 38.

[2] TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Financeiro: Teoria da Constituição Financeira, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014, p.26.

[3] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 3ª Ed, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 275

[4] Ibid., p. 336.

[5] SCHILLER, Friedrich. Do sublime ao trágico, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.55.

[6] Ibid., p. 56.

[7] ____________PINTO, Élida Graziane. Financiamento dos direitos à saúde e à educação: Uma perspectiva Constitucional, 1ª Reimpressão, Belo Horizonte: Fórum, 2017, p.29

[8] IDS Brasil. Pacto Federativo: Municípios para a Agenda de 2030. Diretrizes para o aprimoramento do federalismo brasileiro. Disponível em: < https://www.idsbrasil.org/wp-content/uploads/2022/04/Pacto_Federativo_PublicacaoCompleta2022.pdf>.

[9] SCHILLER, Friedrich. Do sublime ao trágico, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.55.

Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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