A ineficiência e desfuncionalização do direito de laje frente à Lei nº 13.465/2017

03/09/2022 às 11:07

Resumo:

- A MP nº 759/2016 resultou na Lei nº 13.465/17, que criou o direito de laje, um novo direito real, positivado no ordenamento jurídico.
- A eficácia do direito de laje regulamentado pela Lei nº 13.465/17 é questionada devido à sua incompatibilidade com a realidade social das comunidades urbanas, principalmente as de baixa renda.
- A Lei nº 13.465/17 não promove a funcionalização da propriedade e gera burocracia, custos adicionais e dependência de ações do Poder Público para a regularização do direito de laje.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo a MP nº 759/2016, que gerou logo em seguida a Lei nº13.465/17, acabou por trazer um novo direito real denominado direito de laje. O instituto já existia de modo informal, sendo que agora se encontra positivado no ordenamento jurídico. Em que pese a necessidade da regulamentação, a mesma não ocorreu de maneira adequada, impossibilitando a sua eficácia plena, bem como com o devido cumprimento da função social da propriedade. A essência do trabalho é abordar o surgimento do instituto e sua positivação, bem como demonstrar que embora a lei o tenha formalizada, esta não ocorreu de forma eficaz e nem promoveu a funcionalização da propriedade.

Palavras-chave Direito Real. Direito de Laje. Direito de Superfície.

Sumário Introdução. 1. Um novo Direito Real ou direito de superfície qualificado? 2. Da (in)efetividade deste novo direito. 3. Da (des)funcionalização do direito de laje. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa científica discute a inefetividade e a desfuncionalizacão do direito de laje frente à Lei nº13.465/17. Procura-se demonstrar que a partir deste novo diploma normativo, que apesar de bem intencionado, não atende a realidade social do país, bem como questões básicas como o direito à moradia previsto no Art.6º da CRFB/88.

Para tanto, abordam-se as posições doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do tema de modo a conseguir discutir se os princípios da dignidade humana, do mínimo existencial e do direito social-constitucional à moradia estão efetivados neste novo diploma legal.

A Constituição Federal estabelece e garante o direito social à moradia. Neste sentido, o direito de laje surgiu como um dos instrumentos de efetivação deste direito, mesmo que inicialmente, de forma informal. Entretanto, com a Lei nº13.465/17 tal direito foi regulamentado, mas não de forma efetiva e funcional, já que só vale para as propriedades regulares, favorecendo as seguintes indicações: e as propriedades que não estão regulares e são a maioria neste caso? A nova legislação estaria em acordo com a realidade social do país?

O tema é recente, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, e merece atenção, uma vez que envolve diretamente a proteção de direitos e garantias fundamentais de todo e qualquer cidadão, sendo que neste caso, especificamente, é voltado principalmente para um determinado grupo de pessoas vulneráveis, em razão do direito de laje se verificar nas comunidades e áreas mais humildes dos grandes centros urbanos.

Para melhor compreensão do tema, busca-se apresentar o conceito de direito de laje e como esse direito está intimamente ligado aos princípios elencados na CRFB/88, bem como os que derivam de sua interpretação.

Inicia-se o primeiro capítulo do trabalho apresentando uma controvérsia doutrinária acerca da natureza jurídica do direito de laje, já que alguns autores sustentam tratar-se de um direito real de superfície qualificado, enquanto outra corrente doutrinária sustenta que seria um novo direito real.

Segue-se, no segundo capítulo, a demonstrar a inefetividade de tal direito, em virtude da Lei nº13.465/17 não estar em acordo com a realidade das comunidades brasileiras dos grandes centros urbanos, uma vez que em tais localidades a suma maioria das propriedades não estão regulares e nem ao menos registradas.

O terceiro capítulo da pesquisa visa confirmar que o direito de laje não atende a função social da propriedade e que deixa de efetivar o direito à moradia e, consequentemente, de garantir o mínimo existencial.

A pesquisa é desenvolvida pelo método hipotético-dedutivo, uma vez que o pesquisador pretende eleger um conjunto de proposições hipotéticas, as quais acredita serem viáveis e adequadas para analisar o objeto da pesquisa, com o fito de comprová-las ou rejeitá-las argumentativamente.

Para tanto, a abordagem do objeto desta pesquisa jurídica é necessariamente qualitativa, porquanto o pesquisador pretende se valer da bibliografia pertinente à temática em foco, analisada e fichada na fase exploratória da pesquisa, para sustentar a sua tese.

1. DIREITO DE LAJE: UM NOVO DIREITO REAL OU UM DIREITO DE SUPERFÍCIE QUALIFICADO?

O direito de laje surge a partir dos estudos do jurista e sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que em seu trabalho conjunto com a PUC-RJ, analisam o surgimento deste instituto especificamente na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro. Por meio de uma compreensão do direito pautada não apenas em questões formais e legais, mas sim como ordem social, que possuem como embrião os costumes e a realidade social, o autor em questão passa a análise do direito de laje diante da realidade carioca.

Embora tais estudos tenham sido realizados na década de 1970, o tema é extremamente atual, já que o crescimento das cidades ocorreu de forma vertiginosa após esse período gerando um aumento significativo das favelas. Conforme exposto na pesquisa feita no livro Um País Chamado Favela. A Maior Pesquisa Já Feita Sobre a Favela Brasileira, que também fora divulgada pelo Instituto Data Favela e pelo site G1[1], demonstram que existem mais de 2 (dois) milhões de pessoas morando em favelas somente na cidade do Rio de Janeiro, enquanto no Brasil, segundo o último censo do IBGE[2], tal número chega a mais de 11 (onze) milhões de pessoas.

Diante deste cenário que só veio se intensificando nos últimos tempos, seja por meio do crescimento da desigualdade[3]ou pela crise econômica, é necessário um olhar cuidadoso sob essa parcela significativa da população. Isso porque, morar em favela, embora represente uma forma de vida para milhões de pessoas, não se coaduna com a obtenção de uma vida digna e com a garantia de proteção de seus direitos sociais e fundamentais, como é caso da moradia.

A história brasileira demonstra que as favelas sempre foram vistas com descaso pelos agentes públicos deste País e até mesmo pela própria sociedade, permitindo o surgimento de um grupo fragilizado e extremamente vulnerável. Em razão disso, acaba por surgir as mais diversificadas exclusões, como ausência de endereços residenciais oficiais, que geram diversos transtornos para essa população, já que não consegue receber o carteiro em sua porta, de aquisição de propriedade, de acesso à justiça, de acesso a saneamento básico, que são requisitos mínimos para se garantir uma moradia digna.

Neste sentido, em razão de tal exclusão e da omissão por parte da Administração Pública, em todas as suas esferas, são necessários a criação de novos meios e métodos para tentar se adequar a realidade urbana. Um desses meios é justamente a laje, que segundo a professora Cláudia Franco Correa[4] em sua tese de doutorado afirma: laje está relacionada a uma das formas que o povo da favela instituiu para contornar a falta de recursos, de infraestrutura pública e as dificuldades geológicas e topográficas dos morros e brejos.

No ano de 2016, esse direito informal, que permite a articulação econômica por parte desse grupo, gerando mobilidade social e participação no Estado Democrático de Direito, é positivado pela MP nº 759, que depois virou a Lei nº 13.465/17[5] e conceitua o direito de Laje como: O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. 

O conceito acabou por abrir certo debate na doutrina acerca deste instituto. Alguns doutrinadores passaram a defender que ele não seria um novo direito real, mas sim um direito de superfície qualificado. Nessa lógica surge a posição do professor Roberto Paulino de Albuquerque Júnior[6], que em um artigo publicado no site da CONJUR afirma que O que caracteriza o direito de superfície e distingue o seu tipo dos demais direitos reais é a possibilidade de constituir um direito tendo por objeto construção ou plantação, separadamente do direito de propriedade sobre o solo[7], derivando disso o próprio direito de sobrelevação.

Ademais, o autor, junto com outros doutrinadores[8], sustenta que o Estatuto das Cidades em seu Art.21, §1º, trata diretamente da questão do direito sobrelevação da superfície. Por fim, o Enunciado 568, VI Jornada de Direito Civil do CJF[9], permite a possibilidade de constituição de superfície por sobrelevação no ordenamento jurídico pátrio.

Em que pese os fundamentos expostos pelo eminente professor e pelo próprio CJF não parece ser tal posição a mais adequada e nem a que se verifica diante de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Nesta diapasão é necessário se valer, principalmente, de uma hermenêutica pautada no direito civil-constitucional .

Num primeiro momento deve ser destacado que essa diferenciação foi uma escolha do legislador, que decidiu trazer essa nova possibilidade no Art.1.225, XIII, CC, a partir da Lei nº 13.465/17, e que se o mesmo não quisesse tratar tal instituto de forma diversa do direito real de superfície, o teria incluído entre os Arts. 1.369 e 1.377 que tratam deste direito e não criar um título novo no Código Civil no Art.1.510-A. Ademais, como sustenta Pablo Stolze[10] em artigo publicado na Revista SÍNTESE de Direito Imobiliário edição nº 40:

como já ressaltamos, não se trata de uma propriedade sobre a laje, eis que, se de propriedade se tratasse, o direito exercido (...) e abrangeria o próprio solo, o que não se dá na hipótese vertente. Até porque esse novo direito real somente será admitido quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos (§ 1º), não se confundido, ademais, com o condomínio edilício, pois, nesse caso, coexistem propriedades plenas em plano horizontal, com direito à fração ideal do solo e das áreas comuns.

Além disso, deve ser destacado que o direito de laje, ao ser positivado pelo legislador, afirma que essa propriedade será autônoma, construída com matrícula própria no RGI, com acesso independente, isolamento funcional e com as despesas individualizadas, até mesmo as tributárias, conforme verificado no Art.1510- A, §§ 1º a 6º, CC/02. Nelson Rosenvald[11] ao tratar do tema explicita de maneira contundente a diferenciação entre os institutos:

no plano estrutural, o direito real de superfície é propriedade resolúvel (art. 1.375, CC) (...) caracterizada por uma suspensão temporária dos efeitos da acessão pela qual o implante realizado no solo será de titularidade do construtor pelo prazo negocialmente ajustado (...) A superfície encontrará utilidade em investimentos econômicos que demandem exploração de propriedades ociosas (...) Já o direito de laje (...), consistindo em elogiável forma de democratização do direito de propriedade, (...) e, paulatinamente, agrega mais uma camada: a de instrumento de acesso à vida digna para muitos brasileiros, os futuros lajeários![12]

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Sendo assim, é evidente que o direito de laje consubstancia um novo direito real, conforme também sustenta o STJ no Resp. 1.478.254/RJ[13]. Esta conclusão se pauta não apenas na diferenciação demonstrada entre os institutos do direito de laje e do direito de superfície, mas sim pelo próprio legislador, tendo por base uma interpretação civil-constitucional, que possui como axiomas a dignidade da pessoa humana (Art.1º, III, CF), o direito social à moradia e a previsão do Art.3º, CF, em que se busca construir uma sociedade justa e também a erradicação da pobreza, da marginalização e a diminuição da igualdade.

2. DA (IN)EFICÁCIA DA LEI Nº 13.456/17 QUANTO AO DIREITO REAL DE LAJE

Antes de se adentrar na ineficácia ou não da Lei nº 13.465/17 quanto ao direito real de laje, é necessário definir o que seria a tal eficácia de uma norma. A eficácia consiste em um dos planos da teoria da norma jurídica, assim como a existência e a validade.

Convém destacar que como está se tratando da eficácia ou não da Lei nº 13.465/17 quanto ao direito real de laje não se adentrará na questão da existência e validade de tal norma jurídica, até porque não é o objeto do presente artigo. Ademais, a lei seguiu seu processo legislativo regular e não há, até o presente momento, qualquer ação de inconstitucionalidade em face de tal norma.

A eficácia de uma norma consiste no terceiro ponto de análise da formação da norma jurídica e pode ser conceituada como aptidão para produzir efeitos no mundo jurídico e na sociedade, passando do modo do ser para o dever ser. Neste sentido, colaciono as palavras de Luís Roberto Barroso[14], que afirma:

dessa maneira, a eficácia dos atos jurídicos traduz a sua aptidão paraproduzir os seus efeitos próprios, ou seja, é a possibilidade do ato de produzir consequências. A eficácia de uma lei permite que ela seja um meio idôneopara alcançar a sua finalidade, possuindo as qualidades necessárias para ser aplicada, exigida e executada.

A partir de uma análise conjunta entre o conceito de eficácia e do instituto do direito real de laje se percebe uma clara incongruência. Isto ocorre, pois, o processo de formação do direito de laje deriva de uma concepção histórica informal de determinadas comunidades nos grandes centros urbanos do país.

Conforme já salientado anteriormente, diversas aglomerações urbanas, que se formam, principalmente, nas capitais de cada Estado da Federação, surgem por meio de um processo desordenado. Este modo de formação de propriedade não se coaduna com a política de formação e nem com os planos diretores das cidades previstos no Estatuto das Cidades, em razão deste ser bem contemporâneo ao processo de surgimento daquelas.

Neste sentido, deve se observar as palavras do Ilustre Doutrinador Marco Aurélio Bezerra de Melo[15], que em sua obra afirma:

o direito real de laje na forma como veio positivado na Lei 13.465/17 (Art.1.510-A e ss., CC) pode não atingir com a eficiência esperada os fins da demanda por regularização fundiária das habitações construídas sobre imóveis alheios nos assentamentos humanos informais.

Diante de tal cenário, em que pese a boa vontade do legislador acerca de tentar remodelar a estrutura da cidade criando, inclusive, novos mecanismos como a Regularização Fundiária Urbana (REURB), isto acaba por não gerar uma eficácia plena de tal direito. Isso decorre em razão do que afirma o Art.176, §9º da Lei nº 6.015/73[16], trazido pela Lei nº 13.465/17[17] A instituição do direito real de laje ocorrerá por meio da abertura de uma matrícula própria no registro de imóveis e por meio da averbação desse fato na matrícula da construção-base e nas matrículas de lajes anteriores, com remissão recíproca.

O dispositivo legal em questão é nodal para demonstrar a ineficácia da norma em questão. Como se percebe o legislador entendeu que direito real de laje deverá se adequar as demais propriedades que já se encontram regularizadas, devendo ser criado um número de matrícula próprio no Registro Geral de Imóveis (RGI) para que seja feita a sua inscrição.

A boa vontade do legislador, embora seja louvável, não se coaduna com a realidade social do país, principalmente com a dos grandes centros urbanos. A laje surge dentro de um contexto informal, que prevê a garantia do direito à moradia e a função social da propriedade, e não se adequa ao que o legislador almeja.

A utilização de modelos comparados a que se valeu o legislador para legalizar tal instituto não se adequa a cotidiano brasileiro. O modelo suíço e o modelo português, em que pese terem sido eficazes e efetivos não se torna compatível, mesmo tendo sofrido certos ajustes, com o Brasil, pois a formação de comunidades por meio de um processo de favelização não ocorreu em tais países a fim de se solucionar a escassez de moradias de baixo custo para esse parte da população.

Neste sentido surge, claramente, uma separação entre a realidade do direito e o direito de realidade, como salienta Robert Melo[18]:

[...] uma série de perguntas podem ser feitas. (...) Não poderão ter suas lajes cedidas? Não serão regularizados? (...) O legislador deixa de observar a vida prática dos moradores de centros urbanos (...). Eles vão continuar fazendo exatamente isso, da maneira como o faziam antes. Devemos reconhecer a importância da laje e dos direitos que possui. (...) Contudo, as medidas a serem adotadas não podem significar uma piora na qualidade de vida dos proprietários e moradores desses espaços.

Diante de tal cenário é perceptivel e evidente que o direito de laje não conseguirá se tornar uma medida plenamente eficaz diante da realidade social. Isso não decorre apenas da questão do registro da matrícula, que consiste em um dos primeiros passos para a questão da regularização.

Além disso, o proprietário da laje ainda terá que buscar o auxílio de diversos agentes, a fim de obter tal título. O fato de tais construções ocorrerem em lugares mais humildes e com pessoas de menor poder aquisitivo fará com que busquem um auxílio de um advogado ou, principalmente da Defensoria Pública.

Ademais, é necessário se dirigir a sede do Município, a fim de obter de requerer a planta do imóvel e a sua regularização, bem como verificar se haverá a incidência do pagamento de tributos sob a propriedade. A incidência de tributos foi outra novidade trazida pela Lei nº 13.465/17[19] e que está contida no §2º do Art.1510-A: O titular do direito real de laje responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre a sua unidade.

Os argumentos apresentados acima denotam que essa nova lei atenta contra o direito de realidade e tornam a norma inócua e ineficaz. Em vez de simplificar o procedimento, ela acabou trazendo mais burocracia e um custo maior ao proprietário, que além de ter que passar por todo este processo, ainda pode vir a ter que arcar com o pagamento de tributos, dificultando ainda mais a situação de vida de tais pessoas, que mal possuem condição de manter o mínimo para a sua sobrevivência.

Neste sentido, as palavras proferidas pela Professora Claudia Franco Correa[20], em palestra realizada na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro no dia 27/09/2017, são se suma importância para se compreender o fenômeno que se instaura com a Lei nº 13.465/17:

a Lei parte do pressuposto de que há direito de propriedade, o Direito de Propriedade formal, taxativamente contemplado pela Lei e nós não encontramos isso na formatação habitacional da favela. O Direito de Laje não é um direito de sobrelevação. É uma prática institucionalizada nas favelas brasileiras. Esse Direito de Laje contemplado pela Lei é dos ricos, porque o dos pobres foi esquecido.

3. DA DESFUNCIONALIZACAO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COM A LEI Nº 13.465/17

A propriedade é um dos direitos individuais mais antigos de que se tem conhecimento, estando previsto, inclusive, no Código de Hamurabi que previa a pena de morte para quem roubasse a propriedade do outro ou que recebesse a propriedade fruto do roubo[21]. A propriedade passou por diversas transformações ao longo da história, sendo alçada no século XX como um direito fundamental de primeira dimensão, onde havia uma obrigação do Estado de não fazer em relação ao proprietário.

Contudo, no final do século XX, com a efetivação do neoconstitucionalismo, por meio dos princípios da forca normativa e da supremacia da Constituição Federal a propriedade é vista a partir não apenas de forma isolada, mas sim se valendo da sua função social. Neste sentido, Marco Aurélio Bezerra de Melo[22] sustenta:

a propriedade divorciada do elemento que lhe confere conteúdo e tutela jurídica, que vem a ser o exercício do domínio mediante a atenta observância da função social, pois, em que pese a proteção de ordem privada da propriedade, ela deverá retratar uma finalidade econômica e social apta a sua vocação urbana ou rural, gerando frutos, empregos e conduzindo a uma justa circulação das riquezas, de modo a que tenhamos uma sociedade mais justa e solidária, objetivo primaz do estado democrático de direito deflagrado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O entendimento acima está ratificado na própria Constituição da República[23] que traz em seu Art.5º, XXIII, justamente, a função social da propriedade como um direito fundamental e cláusula pétrea do ordenamento jurídico pátrio em razão do disposto no Art. 60, §4º, IV. Ademais, tal princípio é visto ainda como informador da atividade econômica como dispõe o Art.170, III, CRFB/88, bem como pode gerar certas sanções no caso de não ser efetivado e respeitado, como é o caso da cobrança do IPTU progressivo caso a função social não seja cumprida (Art.182, §4º, II, CRFB/88 e Art.5º, do Estatuto das Cidades) ou até mesmo com a expropriação da propriedade, conforme prevê o Art.243 da CRFB/88.

Atualmente, a função social da propriedade ganhou mais um elemento que consiste no respeito da propriedade ao meio-ambiente, por isso alguns doutrinadores sustentam que o princípio deve ser denominado de função socioambiental da propriedade. Isso ocorre diante de uma aplicação conjunta do Art.5º, XXIII com o Art.225, ambos da CRFB/88, como salienta Juliana Santilli[24]:

(...) a função socioambiental da propriedade entre os princípios desse novo ramo autônomo do Direito, com base numa releitura ambiental da função social da propriedade. Consideramos que a função socioambiental da propriedade é muito mais do que um princípio específico do Direito Ambiental: é um princípio orientador de todo o sistema constitucional que irradia os seus efeitos sobre diversos institutos jurídicos. A função socioambiental da propriedade permeia a proteção constitucional à cultura, ao meio ambiente, aos povos indígenas e aos quilombolas.

A inclusão de tal elemento decorre não apenas da análise do ordenamento jurídico interno, mas sim de diversos tratados e convenções internacionais assinados e ratificados pelo Brasil. A soma dessa conjuntura interna e externa faz com que doutrinadores como Ingo Wolfgang Sarlet[25] denominem o Estado de Estado Socioambiental de Direito.

Diante do cenário apresentado é necessário constatar que essa relação não é eficaz quando relacionada com a Lei nº 13.465/17 no que tange ao direito real de laje, mesmo tal diploma normativa sendo recente. Embora a laje não seja o meio correto e adequado para se construir uma casa, em razão da precariedade com que é construída na maioria das vezes, é uma forma pela qual a população dessa população de comunidades de baixa renda vêm encontrando para diminuir o déficit de moradias nas últimas décadas devido à omissão do Poder Público em dar uma atenção maior para o direito fundamental à moradia.

Além disso, a Lei nº 13.465/17 traz como instrumento fundamental para a regularização fundiária a REURB, que consiste em diversas medidas a serem adotadas pelo Poder Público, dentre elas urbanísticas e sociais, como salienta o Art.9º. O instituto tem a sua importância e relevância, contudo, demanda gastos vultosos e que diante de um país em crise econômica e com a escassez de recursos, tanto público quanto privado.

Desta forma não parece que será uma prioridade a ser adotada pelos administradores públicos, pois além dos altos gastos para a promoção e efetivação de tal política urbana, a implementação de tal projeto demanda tempo e um esforço conjunto em todas as áreas e em parceria com os demais entes da federação. Ademais, há outra questão já salientada anteriormente que é a necessidade de regularização do direito real de laje, conforme explicitado anteriormente.

A partir de uma leitura e interpretação dos Arts. 176, §9º, da Lei de Registros Públicos[26] e 1.510-A, §3º, CC[27], estipulam que no caso do direito real de laje será aberta uma matrícula própria, ou seja, só será efetivado tal direito se estiver devidamente registrado no cartório competente. Aliás, só isso não é o bastante, pois deve ocorrer ainda à legitimação fundiária pautada na REURB, como salienta o Art. 23 da Lei nº 13.465/17[28] que afirma:

a legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016.

O que se verifica diante de tal situação não é apenas a burocracia existente para regularizar o direito real de laje, mas sim que estas pessoas dependem de uma ação comissiva do Poder Público para que tenham efetivado esse direito. Neste sentido, a lei não responde como ficarão as propriedades que estiverem na clandestinidade, ou seja, aquelas não regularizadas que não atenderam ao disposto e aos requisitos nos quais a Lei nº13.465/17 se propôs a criar, o que gera uma ruptura da isonomia no tratamento dado a propriedade.

A questão apresentada acima poderia ser mais bem equacionada se fosse observado o devido processo legislativo, em que houvesse discussões profundas de como viabilizar tal direito, de torná-lo eficaz e garantir a função social da propriedade. Em artigo publicado no site Consultor Jurídico, o Professor José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins[29], faz uma importante crítica à norma, que à época ainda era a MP nº 759, quando afirma:

é indubitável o profundo impacto social que referidas normas jurídicas causarão no cotidiano brasileiro, sendo ideal que tivesse havido um extenso e delicado debate sobre o tema. Ao invés disso, a medida provisória foi adotada no apagar das luzes, sem a participação de especialistas ou da população, (...) Trata-se sim, sem sombra de dúvida, de um problema urbano e, sobretudo, social que merece a atenção do Poder Público. Todavia, a urgência não pode ser motivo de negligência à técnica, sob o risco de se criar novas dificuldades.

O que se percebe diante de tais indagações é que tanto o legislador quanto o Poder Público não se atentaram para a realidade social dessas localidades e do próprio país. Isso acaba por gerar uma ruptura não apenas na isonomia de como a propriedade é tratada nas comunidades de baixa renda, mas deixa de se atentar para a função social dessas moradias como forma de garantir o mínimo para essas pessoas.

CONCLUSÃO

Diante do exposto conclui-se que não há como negar a importância da matéria trazida pela Lei nº 13.465/17, que avança principalmente na efetivação de políticas públicas, tanto urbanas quanto rurais, como numa nova forma de se pensar o espaço das cidades e do campo. Destaca-se neste novo diploma normativo a Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social (REURB) e um novo direito real, qual seja o direito de laje.

A questão de ser um novo direito real (Art.1.225, XIII, CRFB/88), embora ainda não pacificada na doutrina, deve prevalecer, em razão das peculiaridades que circundam o instituto, como a perpetuidade e a constituição de matricula própria. Ademais, a intenção do legislador foi de realmente dar um tratamento diferenciado para um instrumento que concede à moradia que já existe há pelo menos quatro décadas nos grandes centros urbanos do país.

A controvérsia maior que a lei gera e que foi comprovada anteriormente é quanto à eficácia e o respeito aos princípios básicos de toda propriedade. A novel legislação, além de ter sido aprovada de forma muito célere, sem a observância do devido processo legislativo para matéria em questão, criou uma burocracia ainda maior, com mais custos e não se atentou para a realidade das cidades, principalmente, das comunidades de baixa renda, que é aonde se concentram essas construções.

O fato das lajes não serem reconhecidas caso não estejam regularizadas, sem dar instrumentos e condições mínimas para essa população acabou por criar o o direito de laje dos ricos, como salientou a professora Cláudia Franco Corrêa. Além disso, a possibilidade de incidência de tributos e a dependência da criação da REURB para o surgimento e reconhecimento da regularidade impõem ainda mais onerosidade ao proprietário da laje.

Outrossim, procurou-se demonstrar a ruptura na isonomia e desfuncionalizacao da propriedade justamente em razão de tal burocracia, dos custos e da dependência de atos comissivos do Poder Público para a efetivação de tais direitos. Isso pode acabar gerando uma espera demasiada da Administração Pública deixando tais pessoas em situação ainda mais grave vulnerabilidade.

Diante de tal realidade é notório que a Lei nº 13.465/17 possui sua relevância e trata de assunto de suma importância, formando inclusive um microssistema de políticas públicas inerentes ao campo e a cidade junto com a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 10.257/01 (Estatuto das Cidades). Ocorre que, ao mesmo tempo ela não se atentou para a realidade, logo é necessário que algumas providências sejam efetivadas, a fim de conceber uma maior eficácia.

Dessa forma, diante de nenhuma modificação relevante desde a MP nº 759, depois convertida na Lei nº 13.465/17, é importante que a matéria venha a ser rediscutida no âmbito do poder legislativo. Sendo assim, o que se propõe ao final desse artigo é que o Congresso Nacional crie uma Comissão e que por meio desta sejam ouvidos diferentes setores da sociedade, realização de audiências públicas e convocação de políticas, a fim de que tal diploma normativo não seja mais uma norma inócua, mas sim que atenta aos ditames da realidade e aos fundamentos e objetivos da país, conforme estipulam os Arts. 1º e 3º da CRFB/88.

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Erich Abraão Muller Costa

Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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