Divulgo por, a meu ver, se tratar de texto a merecer seja levado a quantos tenham interesse, ou curiosidade, na História do Judiciário no Brasil.

(Íntegra do discurso do ministro Carlos Velloso em comemoração ao aniversário da Suprema Corte, 18/9/2003)

O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO IMPÉRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL REPUBLICANO (*)

Reúne-se o Supremo Tribunal Federal, em sessão solene, para comemorar o centésimo setuagésimo quinto aniversário da Lei de 18 de setembro de 1828, que criou o Supremo Tribunal de Justiça do Império, antecessor do Supremo Tribunal Federal da República.

O Supremo Tribunal de Justiça fora previsto na Constituição Imperial de 25 de março de 1824, que determinou a sua criação, ao estabelecer que, "na Capital do Império, além da relação que deve existir, assim como nas mais Províncias, haverá também um tribunal com a denominação de Supremo Tribunal de Justiça, composto de Juízes letrados, tirados das relações por suas antiguidades, e serão condecorados com título de Conselheiros", competindo-lhe conceder ou denegar revistas nas causas e pela maneira que a lei determinar, conhecer dos delitos e erros de ofício que cometerem os seus Ministros, os das Relações, os empregados no corpo diplomático e os Presidentes das Províncias e conhecer e decidir sobre os conflitos de jurisdição (Constituição Imperial, art. 164).

Instalado em 20 de janeiro de 1829, foi transformado, com a proclamação da República, no Supremo Tribunal Federal, pelo Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, inaugurado este, solenemente, em 28 de fevereiro de 1891, quatro dias depois da promulgação da primeira Constituição republicana, que o consagrou.

De sua instalação, em 20 de janeiro de 1829, até a criação do Supremo Tribunal Federal, pelo Decreto 848, de 11.10.1890, decorreram sessenta e um anos. Dessa data, até os nossos dias, são 113 anos, que, somados aos sessenta e um, totalizam cento e setenta e quatro anos. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, comemorou o seu centenário em 28 de fevereiro de 1991, estabelecendo, pois, como marco inicial a data em que, materialmente, começou a funcionar, 28.02.1891.

Celebramos, agora, os cento e setenta e cinco anos de existência da Lei de 18 de setembro de 1828. Celebramos, em conseqüência, o centésimo setuagésimo quinto aniversário de existência do Supremo Tribunal Federal.

A justiça brasileira tem história.

Em trabalho que escrevi anotei, forte em Aliomar Baleeiro , que foi Martim Afonso de Souza que, investido de amplos poderes de jurisdição administrativa e judiciária pela Carta Del Rei de Portugal, de 1530, quem primeiro, em terras brasileiras, dirimiu conflitos entre as pessoas aqui residentes. Mas durou pouco essa tarefa, já que Martim Afonso de Souza era apenas o comandante de uma grande força, que viera ao novo continente para o fim de consolidar a descoberta. Três anos depois da chegada de Martim Afonso, foram instituídas as Capitanias Hereditárias, cujos titulares tinham poderes para julgar, podendo delegar tais poderes a Ouvidores. No ano de 1549, Pero Borge, Ouvidor-Geral, magistrado de carreira, que viera na companhia de Tomé de Sousa, fixou-se na Bahia. Observada a alçada, as decisões do Ouvidor-Geral eram irrecorríveis. Os recursos excedentes da alçada seriam julgados em Lisboa. O Ouvidor-Geral organizou a Justiça, ficando ele como instância máxima. Criou, então, os juízes ordinários, leigos, eletivos, e os juízes de fora, designados pelo Rei. Aqueles, os leigos, tinham como insígnia uma vara vermelha; os letrados, uma vara branca. Havia, ainda, os juízes de vintena, ou pedâneos, nas aldeias, com reduzida alçada, cujo processo era verbal, e os juízes de órfãos.

Em 1587 é criada a primeira Relação do Brasil, na Bahia, instalada em 1609, com dez desembargadores, a qual veio a ser abolida, em 1626, com a invasão holandesa, retornando a competência do Ouvidor-Geral. Em 1652, é restaurada a Relação, com oito desembargadores.

Criou-se, em 1621, o Estado do Maranhão, separado do Estado do Brasil. Os recursos interpostos das decisões do Ouvidor-Geral do Estado do Maranhão, em certos casos, eram remetidos para a Casa de Suplicação de Lisboa.

Em 1751, é instituída a segunda Relação do Brasil, no Rio de Janeiro, com jurisdição sobre as Capitanias do sul e oeste.

Em 1808, transfere-se para o Rio de Janeiro a Corte portuguesa, fugitiva dos Exércitos de Napoleão. O príncipe regente, futuro D. João VI, transformou, em 10 de maio de 1808, a Relação do Rio, criada em 1751, em Casa de Suplicação do Brasil, com as atribuições da Casa de Suplicação de Lisboa. Foram criados, também, o Desembargo do Paço e o Conselho Supremo Militar e de Justiça, este último em 1º de abril de 1808.

Em 1812, instalou-se a Relação do Maranhão e, em 1821, a Relação de Pernambuco.

Ao ser proclamada a independência, a Constituição de 1824 mandou criar o Supremo Tribunal de Justiça, como sucessor da Casa de Suplicação. A Lei de 18.09.1828, conforme já foi dito, criou o Supremo Tribunal de Justiça. Registre-se que o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, anotei na apresentação que fiz da obra de Lenine Nequete , somente foi criado em 1833. O Supremo Tribunal de Justiça, pois, criado em 1828, e que, na República, transformou-se no Supremo Tribunal Federal, é mais antigo do que o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal.

O eminente Ministro Celso de Mello, em interessante trabalho de pesquisa que elaborou, ainda inédito, escreve:

"Os órgãos de cúpula da Justiça no Brasil, em ordem sucessiva, considerada a sua precedência histórica, foram (1) a Casa da Suplicação do Brasil (instituída pelo Príncipe Regente D. João, mediante Alvará Régio de 10/05/1808), 2) o Supremo Tribunal de Justiça (Império) e 3) o Supremo Tribunal Federal (República). Esses órgãos de cúpula, ao longo de nosso processo histórico, desde a fase colonial (Casa da Suplicação do Brasil), passando pelo regime monárquico (Supremo Tribunal de Justiça) e chegando à República (Supremo Tribunal Federal), abrangem um período de 195 anos (10/05/1808 até o presente ano de 2003)."

Peço licença para uma observação: se considerarmos que a Casa de Suplicação do Brasil resultou, em 1808, da transformação da Relação do Rio de Janeiro, criada em 1751, poderíamos afirmar que os órgãos de cúpula da Justiça brasileira, desde a fase colonial e até os nossos dias, abrangem período de 252 (duzentos e cinqüenta e dois) anos.

A Constituição Política do Império qualificou a Justiça brasileira como um poder político, estatuindo que a divisão harmoniosa dos poderes políticos - o Legislativo, o Moderador, o Executivo e o Judicial - é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece, esclarecendo que esses poderes são delegações da Nação (artigos 9º a 12). Daí, a observação do Ministro Oswaldo Trigueiro , de que "a doutrina monárquica revelou-se avançada quanto à concepção do então chamado poder judicial", que Pimenta Bueno, citado por Trigueiro, afirmou constituir-se no "único intérprete competente, o aplicador exclusivo da lei nas questões que são regidas pelo direito civil, penal e mesmo político, na parte em que este é incluído na alçada de sua jurisdição", acrescentando: "No desempenho dessa importantíssima missão, que tem por fim proteger a liberdade, a fortuna e a vida dos cidadãos, assim como a ordem e segurança social, ele deve ser perfeitamente independente, mas também deve cumprir impreterivelmente a obrigação sagrada de não desviar-se jamais da lei."

Não obstante revelar-se a doutrina monárquica brasileira avançada relativamente ao Judiciário, certo é que, escrevi , o Supremo Tribunal de Justiça do Império não se afirmou como poder político. Certamente que os ilimitados poderes de moderação do Imperador impediram que o Supremo Tribunal de Justiça exercesse, com larguesa, a função jurisdicional. Ademais, por influência do constitucionalismo francês, o controle de constitucionalidade das leis, na Carta Imperial, era do próprio Poder Legislativo. Limitava-se o Judiciário, então, a dirimir conflitos entre os particulares. Bem, por isso, assinalou o Ministro Trigueiro, que "o Supremo Tribunal era, tipicamente, uma Corte de Cassação, no exato estilo europeu. Praticamente a sua competência se exauria na função de conceder revista, para o efeito de determinar que a causa fosse novamente julgada por outra Relação. Segundo a Lei Orgânica, a revista não tinha efeito suspensivo e somente podia ser deferida em caso de nulidade manifesta, ou injustiça notória, de decisão proferida em última instância."

A República conferiu à Justiça brasileira característica nova, fazendo do Supremo Tribunal Federal autêntico poder político. O Decreto 510, de 22 de junho de 1890, significou o primeiro passo para a instituição do Supremo Tribunal Federal segundo o modelo da Suprema Corte norte-americana. O Decreto 848, de 11.10.1890, transformou, como já foi dito, o Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, o que a Constituição de 24 de fevereiro de 1891 consagrou. Instalou-se o Supremo Tribunal Federal, no dia 28 de fevereiro de 1891, com quinze ministros, a maioria vinda do Supremo Tribunal de Justiça, maioria que, entretanto, "pouco se demoraria no novo Tribunal", informa Leda Boechat Rodrigues .

Em conferência pronunciada em 1952, consignou o saudoso e eminente Miguel Seabra Fagundes:

"Vínhamos, em 1891, do Império, onde a Justiça não tinha nenhuma expressão política. Era um poder que se limitava a dirimir as controvérsias do direito privado, de modo que os atos da Administração pública escapavam, por inteiro, ao seu controle. E, de chofre, pela instituição da República, o Poder Judiciário foi elevado a plano de excepcional importância na vida política do país. Atribuiu-se-lhe, ao lado da função que já era sua, de dirimidor das questões de ordem privada, uma outra, da maior importância: a de guardar os direitos individuais contra as infrações decorrentes de atos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, inclusive e notadamente quando esses atos afetassem textos constitucionais. Isto equivalia, de certo modo, a fazê-lo fiador da seriedade do regime como construção política, pois, ao declarar a prevalência da Lei Suprema em face de atos legislativos ou administrativos que a afetavam, o que fazia o Judiciário era preservar as próprias instituições republicanas, pela contenção dos demais poderes nas suas órbitas estritas de ação e pela garantia ao indivíduo da sobrevivência dos seus direitos, fosse quais fossem as prevenções contra eles armadas."

No trabalho que escrevi sobre o tema, linhas atrás mencionado, consignei que a Carta de 1891 acolheu o modelo norte-americano e fez do Judiciário poder político, modelo que merecera elogio de Edouard Laboulaye: "Onde, porém, começa a diferença, onde os Estados Unidos fizeram uma verdadeira revolução, foi quando eles intuíram que a justiça deveria fazer-se também um poder político."

Essa nova concepção do Judiciário, idealizada pelos constituintes de Filadélfia, de 1787, também foi louvada por Tocqueville, em 1835, no seu livro, "A Democracia na América", ao anotar: " o que o estrangeiro (leia-se o francês) tem a maior dificuldade de entender nos Estados Unidos é a organização judiciária. Não há por assim dizer, nenhum evento político no qual não se possa invocar a autoridade do juiz", erigido o Judiciário em poder político.

Bem por isso, sentenciou Washington, ao indicar os primeiros juízes da Suprema Corte, anotou Rui, que o poder judiciário, neste regime, "é a coluna mestra do governo do país", tendo reafirmado, depois, ao anunciar Jay "para a presidência do grande tribunal da União", que este é "a chave de abóbada do nosso edifício político."

Convém lembrar que o Imperador, D. Pedro II, desejava para o Supremo Tribunal de Justiça as características da Corte Suprema norte-americana. Relata Leda Boechat Rodrigues que, "em julho de 1889, indo Salvador de Mendonça, acompanhado de Lafayette Rodrigues Pereira, despedir-se de D. Pedro II, a fim de cumprir missão oficial nos Estados Unidos, ouviu do Imperador as seguintes palavras: 'estudem com todo o cuidado a organização do Supremo Tribunal de Washington. Creio que nas funções da Corte Suprema está o segredo do bom funcionamento da Constituição norte-americana. Quando voltarem, haveremos de ter uma conferência a esse respeito. Entre nós as coisas não vão bem, e parece-me que se pudéssemos criar aqui um tribunal igual ao norte-americano, e transferir para ele as atribuições do Poder Moderador da nossa Constituição, ficaria este melhor. Dêem toda a atenção a este ponto'." Escrevi, no trabalho referido , que Salvador de Mendonça e Lafayette Rodrigues Pereira não tiveram tempo de trazer ao Imperador as suas observações. É que, a 15 de novembro de 1889, quatro meses depois, a República era proclamada. A idéia, entretanto, assinala Leda Boechat Rodrigues, "parecia estar na consciência de outros", já que a República instituiu o Supremo Tribunal Federal segundo o padrão da Suprema Corte norte-americana, outorgando-lhe, expressamente, o controle da constitucionalidade das leis, controle difuso, atribuição que o constitucionalismo republicano ampliou.

Com efeito.

A Constituição de 1934 criou a ação direta interventiva, embrião do controle concentrado, segundo o modelo europeu, prius da intervenção federal no Estado-membro . E mais: estabeleceu a Constituição de 1934 que a decisão de inconstitucionalidade somente seria tomada pelo voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal e atribuiu ao Senado competência para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

A Carta de 1937, que simplesmente emprestava forma de legalidade à ditadura do Estado Novo, trouxe retrocesso.

A Constituição de 1946 restaurou o controle de constitucionalidade. A Emenda Constitucional 16, de 1965, criou a ação direta genérica, ao instituir a representação de inconstitucionalidade da competência do Supremo Tribunal, legitimando para propô-la o Procurador-Geral da República. Prescreveu, ademais, que a lei poderia estabelecer processo de competência originária dos Tribunais de Justiça para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato municipal em face da Constituição do Estado. A partir da EC 16, de 1965, passamos a contar com os dois tipos de controle, o difuso e o concentrado, este de ato normativo federal ou estadual, em face da Constituição Federal. A Constituição de 1967, sem e com a EC 1, de 1969, manteve o sistema, que foi ampliado, significativamente, pela Constituição de 1988, que criou a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, alargou a legitimação ativa para ação direta, instituiu a argüição de descumprimento de preceito constitucional fundamental e criou o mandado de injunção, que a maioria dos membros do Supremo Tribunal Federal tem dado aplicação restritiva. A Emenda Constitucional nº 3, de 1993, instituiu a ação declaratória de constitucionalidade, ampliando o controle concentrado.

Temos, pois, os dois tipos de controle de constitucionalidade, o que possibilita ao Supremo Tribunal Federal realizar o equilíbrio entre ambos, explorando as vantagens e minimizando as desvantagens de um e de outro, o que faz do sistema misto brasileiro um dos mais avançados e democráticos do mundo.

A explosão de recursos e processos, ao longo do tempo, no Supremo Tribunal Federal, tem gerado alterações na estrutura da Corte. A Constituição de 1946 criou o Tribunal Federal de Recursos e transferiu para este a competência que detinha o Supremo Tribunal de órgão de segunda instância ordinária da Justiça Federal. A Constituição de 1988, ao conferir ao Supremo Tribunal Federal as galas de guardião maior da Constituição, criou o Superior Tribunal de Justiça, atribuindo-lhe a guarda do direito federal comum. Mediante o recurso especial, deve essa Corte, exercendo competência antes atribuída ao Supremo Tribunal, realizar a integridade, a autoridade e a uniformidade de interpretação do direito federal comum.

Na realidade, entretanto, o Supremo Tribunal Federal continua com competências de direito federal comum, que denomino de competências extravagantes. Sustentamos, de longa data, que muitas das competências hoje cometidas ao Supremo Tribunal ¾ originárias e recursais ordinárias ¾ devem ser transferidas para outros Tribunais e Juízos . Por exemplo, os habeas corpus tomam, demasiadamente, o tempo da Corte, que na maioria dos casos está a examinar sentença de Juízos Criminais de 1º grau. A competência do Supremo Tribunal, no ponto, devia limitar-se ao julgamento de habeas corpus nos quais fossem pacientes os que estão sujeitos à jurisdição penal da Corte e os denegados em única instância pelos Tribunais Superiores. Merecem reflexão, ademais, as competências inscritas no art. 102, I, "b" (competência para julgamento de membros do Congresso), "c" (julgamento de Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas e membros do Tribunal de Contas da União), "d" (mandado de segurança contra ato do Tribunal de Contas da União), "e" (litígio de Estado estrangeiro), "f" (litígios das entidades da administração indireta), "g" (extradição), "h" (homologação de sentença estrangeira e a concessão de exequatur às cartas rogatórias). Competência recursal ordinária: art. 102, II, "a" e "b". E no que toca ao recurso extraordinário, o inc. III do art. 102 devia ser alterado, a fim de, a exemplo do que ocorre com o recurso especial, do S.T.J., caber o extraordinário de decisão de tribunal. Do modo como se encontra redigido o inc. III, é cabível o recurso extraordinário das decisões dos órgãos recursais dos Juizados Especiais. Ora, estes foram concebidos para solucionar, em definitivo, sem possibilidade de recurso, as questões de sua competência, de regra questões dos necessitados.

Quando o Supremo Tribunal Federal comemorou, na sessão solene de 28 de fevereiro de 1991, o seu centenário, sob a presidência do Ministro Néri da Silveira, o Ministro Moreira Alves mencionou que, "Nos cem anos de vida desta Corte, muitas foram as vicissitudes por que ela passou, várias as críticas que sofreu, diversas as incompreensões que suportou. Confrontadas, porém, as falhas com as virtudes, o saldo - e é o que importa para o julgamento das instituições, que, como os homens que a integram, têm o estigma da imperfeição - o saldo, repito, lhe é amplamente favorável."

Perfeita a afirmativa, em 1991, ela é atual e irrepreensível em 2003.

Nestes últimos anos, sob o pálio da Constituição de 1988, a mais democrática das Constituições que tivemos, observou o então Procurador-Geral da República, hoje eminente Ministro Sepúlveda Pertence, no discurso proferido quando o Supremo Tribunal festejou, em 1988, sob a presidência do Ministro Rafael Mayer, o seu centésimo sexagésimo aniversário, que, a fim de concretizar "projeto de uma sociedade mais democrática e mais justa, poucos textos constitucionais terão confiado tanto no Poder Judiciário e nele, de modo singular, no Supremo Tribunal Federal."

Por isso, por esta Corte Suprema, no controle concentrado de constitucionalidade, têm passado as mais relevantes propostas de políticas públicas votadas pelo Congresso Nacional. O Supremo Tribunal Federal, nesses quinze anos de vigência da Constituição, já declarou, no controle abstrato de normas, o registro é do Ministro Gilmar Mendes , número muito maior de inconstitucionalidade de leis do que o Bundesverfassungsgericht, o Tribunal Constitucional alemão, instituído pela Lei Fundamental de Bohn, de 1949. Até 31 de dezembro de 2000, a corte alemã recebeu, no controle abstrato de normas, 141 processos e julgou 131. Compreendida toda a sua competência, recebeu a Corte alemã, de 1951 até dezembro de 2002, 141.314 feitos. Somente nos anos de 2000 a 2003, o Supremo Tribunal Federal recebeu 421.959 processos, 322.169 foram distribuídos e foram julgados 331.861 .

O Ministro Aliomar Baleeiro, em artigo publicado em 1973 , escreveu que o Supremo Tribunal Federal, "nos últimos 20 anos, declarou mais dispositivos inconstitucionais que a Corte Suprema dos Estados Unidos em dois séculos".

Registre-se que, em 1992, o Supremo Tribunal arbitrou o processo de "impeachment" do Presidente da República, reconhecendo os melhores juristas que a prática tranqüila e eficaz da democracia e do federalismo, no Brasil, nos últimos anos, muito fica a dever à atuação da sua Corte Suprema, que, com prudência e espírito público, tem dirimido os conflitos entre os poderes da República e dos Estados-membros.

Submetido a uma carga brutal de trabalho, julgou o Supremo Tribunal, no ano de 2002, mais de cem mil processos e, neste ano de 2003, até o dia 10 deste mês de setembro, já foram julgados cerca de cento e dezessete mil feitos , convindo ressaltar que a crise situa-se no controle difuso, já que inexistem óbices ao recurso extraordinário. Daí a necessidade de serem instituídos mecanismos aptos para impedir a subida à Corte de recursos sem relevância social e para acabar com a massa inútil de recursos que repetem a mesma tese de direito mais de mil vezes.

A crise situa-se, no controle difuso, mencionamos. É que, no controle concentrado, foram distribuídas, de 1988 até 7 do corrente mês de setembro, 2.983 ADIns, julgadas 1.478 cautelares e, em definitivo, 1.767 ações diretas. Das 2.983 ações diretas distribuídas, noventa são ações de inconstitucionalidade por omissão .

As ações declaratórias de constitucionalidade distribuídas, de 1993 até 20 de julho deste ano, somam 9. Foram julgadas, em definitivo, 2; 3 não foram conhecidas e estão tramitando 4.

Os números são, na verdade, expressivos. Superam, de muito, o número de ações julgadas pelos Tribunais Constitucionais europeus. Todavia, não indicam, no controle abstrato, a existência de crise.

Neste quadro, ocupa o Supremo Tribunal Federal, lembra Oscar Vilhena Vieira , "duplo papel no atual sistema constitucional brasileiro. É órgão de cúpula do Poder Judiciário, pois detém a competência recursal máxima, podendo rever decisões dos demais tribunais, em face da sua incompatibilidade com a Constituição. Exerce, também, a função de tribunal constitucional, ao apreciar, de forma concentrada, as ações diretas de inconstitucionalidade. O sistema constitucional brasileiro conjuga, dessa maneira, os modelos americano e europeu de controle de constitucionalidade das leis, competindo ao Supremo Tribunal Federal atribuições de órgão de cúpula do sistema difuso e especial no sistema concentrado", convindo salientar, anotou o Ministro Joaquim Barbosa, na tese que o fez doutor pela famosa Université Panthéon-Assas - Paris II, que ao Supremo Tribunal Federal, nesse contexto, são cometidas competências e atribuições que - no ponto é nosso o registro -nenhum tribunal europeu exerce só: o Supremo Tribunal constitui-se, lembra Joaquim Barbosa, em "Juge Constitutionnel, Tribunal de la Fédération, Juge Administratif, Juge Penal, Haute Cour de Justice, Tribunal des Conflits, Juge D'Exécution et Autorité Judiciaire non Contentieuse" .

Como Corte Constitucional e como órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal torna realidade a missão que lhe confiou a Constituição, de guardá-la e protegê-la, certo, bem acentuou o Ministro Célio Borja, quando da celebração do centésimo sexagésimo aniversário do Tribunal, que sabe a Corte, "mais do que centenária, que enquanto a Constituição for a lei das leis, ela será o juiz dos juízes. E enquanto for possível à suprema magistratura pronunciar a inconstitucionalidade dos atos dos poderes públicos e submeter todas as vontades à lei fundamental, os direitos dos cidadãos serão respeitados e a paz, que é a finalidade do Direito, estará assegurada".

E desta forma, realizam-se as palavras proféticas de Rui, lembradas pelo Ministro Moreira Alves, no discurso proferido quando do Centenário do Supremo Tribunal Federal. Rui, em 1892, expressou que a República, de que foi um dos pais fundadores, ao instituir o Supremo Tribunal Federal, invocara o verbo contido nas Eumênides de Ésquilo, quando criado o novo Tribunal para os cidadãos da Ática:

"Eu instituo este Tribunal venerando, severo, incorruptível, guarda vigilante desta terra através do sono de todos, e o anuncio aos cidadãos, para que assim seja de hoje pelo futuro adiante."

Assim tem sido e haverá de ser para todo o sempre.

Respostas

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    Zenaide Terça, 30 de setembro de 2003, 21h34min

    Caro Joao Celso

    Obrigada por trazer informações tão interessantes, para aqueles, que como nós somos apaixonados pelo direito.

    Abraços

  • 0
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    André Luiz dos Santos Pereira Sábado, 10 de janeiro de 2004, 5h46min

    Vide:

    Lêda Boechat Rodrigues - História do Supremo Tribunal Federal

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