Caro Amáfio:
Apesar de todos os seus excelentes comentários, amparados em boa doutrina e jurisprudência, creio haver ainda certas observações ainda mal esclarecidas.
Em primeiro lugar, entendo que, aqui, temos quatro assuntos diferenciados: a) a ação (omissão); b) ao nexo causal; c) o elemento subjetivo do tipo; d) a culpabilidade.
Gostaria de separar alguns assuntos que foram tratados no mesmo local:
1) Dissestes que a (in)exegibilidade de conduta diversa situa-se na culpabilidade em relação aos tipos comissivos. Concordo. Mas em relação aos omissivos também. É plenamente possível o agente atuar omissivamente para a produção do resultado, com dolo ou culpa, e, no estrato da culpabilidade, restar o fato incensurável ao autor, ou seja, esteja ele amparado na inexigibilidade de conduta diversa. Evidente que um insano, por exemplo, nunca poderá ser tratado como garantidor. Nesse ponto, a omissão antecipa a culpabilidade. Contudo, a culpabilidade não se resume a imputabilidade. A inexigibilidade de conduta diversa não exige insanidade, pois é gênero da qual esta é espécie. Nem é pressuposto objetivo da inexigibilidade o estado de necessidade, pois que assim teríamos uma justificativa excludente de ilicitude, juízo anterior à culpabilidade. O importante, contudo, é que a situação de garantidor é elemento próprio da omissão (ação), que representa um nível diferente da teoria do crime. A omissão, portanto, não se confunde com o tipo (assim como a ação), pois que é pressuposto deste. Aqui entendo o que queres dizer com o arrepio de WELZEL, se bem que ele próprio tinha a omissão como uma definição normativa, e não ôntico-ontológica. A omissão, portanto, como pressuposto do tipo, exige a análise tanto dos elementos objetivos e subjetivos deste, quanto da ilicitude e da culpabilidade. Com a máxima vênia, tenho que confundes omissão, culpa stricto sensu e nexo causal, tratando todos como se fossem uma matéria só, articulada no art. 13.
2) Pois bem. O fato do agente ter se omitido não pressupõe sua culpa (ou dolo), o nexo causal e a culpabilidade. Já disse o porquê não considero o Ministro garantidor. A sua pregação não implica, necessariamente, em um juízo morte. Não há nenhuma conexão entre a atividade de pregar e a e garantir que não haja suicídio. Aliás, acho que nós dois resvalamos, porque eu, anteriormente, havia falado de homicídio culposo, e tu, se não me engano, de genocídio. A menos que discordes do meu entendimento, o único crime que seria imputável a esses ministros seria o de instigação ao suicídio, nunca homicídio, pois quem (se) matou foi a própria pessoa. E nem a condição sermão, por si só, implicaria o resultado. Da minha parte, porém, volto ao problema do garantidor.
3) Veja bem: não se pode obrigar alguém a desvanecer os seus simbolismos, ainda mais quando sua atividade implique constantemente uma simbolização do real. O Padre, quando reza a missa, nos moldes católicos, não diz que está fazendo simbolismos. Não diz, filhos, não me interpretem mal. Eu, Moysés, sou ateu, mas, na minha infância, freqüentei a missa, e nunca ouvi coisa semelhante. Duvido muito que nas igrejas evangélicas seja diferente. E quem dirá nas islâmicas, orientais (alguém já pensou em incriminar algum mestre oriental por co-autoria em lesões corporais, naquelas provas de fogo que, às vezes, vemos seus discípulos passarem na televisão?), etc. Resposta: da minha parte, nunca vi. E por quê? Simplesmente pelo fato de que a advertência quebraria a significação do simbólico, quebraria um dos pilares da religião. E isso é exigível a um sacerdote? Não. Bem, começamos pelo contrário, ou seja, no mínimo, é um a omissão não culpável. Quem dá um sermão, utilizando simbolismos, para o convencimento dos outros na sua fé age com o intuito de matar alguém, ou provocar neste alguém o suicídio? Evidente que não. Se quisesse, mandaria este alguém suicidar-se, como no teu exemplo. No mínimo, não há dolo, o agente NÃO ASSUME o risco do resultado morte. Será que alguém pensa em que alguém pode se suicidar quando prega? Não. Deveria? Sim, deveria, mas o dolo não é conhecimento potencial, e sim atual, real. Assim, estamos longe de qualquer espécie de dolo, inclusive o eventual, pois o agente não assumiu o risco do resultado morte. Mas volto à posição de garantidor.
4) Voltando ao raciocínio anterior, pergunto: porque não é necessário que o sacerdote desfaça seu simbolismo? Simples: pela normalidade social do seu comportamento. Se nenhum sacerdote desvenda seus simbolismos, por que razão terá este de fazê-lo? Isso simplesmente pelo fato de que o direito penal não exige de uma pessoa a preocupação com o comportamento anômalo da outra, p. ex., não se exige de quem passa a sinaleira com sinal verde preste atenção se vem algum pedestre atravessando a rua (princípio da confiança).
5) Uma coisa tem de aqui ser posta: tenho que não há situação de ingerência, pois o sacerdote não aumentou o risco do acontecimento. Embora tenha contribuído no ânimo de suicídio do agente, do ângulo social, ou seja, dentro dos parâmetros do homem comum, dentro dos padrões em que agem, normalmente, os sacerdotes, o ministro agiu legitimamente. Vejamos bem a situação: o ministro mandou alguém se matar por fé? Disse que alguém devia morrer por Deus? Sequer se referiu à morte, redenção, etc.? Não! Nunca! Ele se referiu apenas à fé. Então, analisando mais detidamente, nem sequer houve omissão, pois que ele sequer criou uma situação de risco. Se assim fosse, todos os sacerdotes em todas as missas perderiam mais tempo advertindo seus fiéis e IMAGINANDO hipóteses de suicídio do que espalhando sua fé. O direito não pode servir como mecanismo para refrear a normalidade social. Se ninguém adverte os fiéis, NÃO HÁ SITUAÇÃO DE RISCO, portanto, não há ingerência. Exclui-se, a meu ver, as disposições acerca da omissão. Não houve omissão penalmente relevante, pois não houve situação de risco, e sim situação NORMAL. Isso do ângulo omissivo.
6) Contudo, vejo que a ação se enquadraria, muito mais que num crime omissivo, num crime COMISSIVO, pois não foi a ausência de advertência que causou o resultado, mas a frase (mal) interpretada pelo fiel. Sendo assim, a instigação ao suicídio seria comissiva, e não omissiva, de sorte que penso até ser inadequado falar aqui de omissão. Do ângulo da comissão, volto à teoria da imputação objetiva.
7) Não basta a mera incidência do art. 13, no que tange à conditio sine qua non. É igualmente preciso a causalidade normativa. Não entendi muito bem a equiparação do pensamento que defendi com o de DAMÁSIO, pois que, em verdade, não discuto se a causalidade é física, ou não, mas, pelo contrário, admito que a conditio sine qua non, na omissão ou comissão, física ou não. Contudo, não basta haver a conditio, é preciso que haja um nexo de imputação objetiva entre a conduta e o resultado. Esse nexo é jurídico-valorativo.
8) Sendo assim, dou um passo além da ação, que entendo concretizada (não sob a forma de omissão, pois não houve ingerência), e passo ao exame da tipicidade, no nexo de causalidade. E volto à teoria da imputação objetiva. Preenchidos os pressupostos da conditio sine qua non, passa-se ao exame normativo, e vejo, claramente, pelos mesmos motivos que expus acima, que o ministro não aumentou o risco, pois estava praticado uma ação lícita. Não é a mesma coisa a situação do magistrado, que dá uma ordem secular, e do médico, que prescreve uma medicação secular trata-se de situação muito mais próxima da arte do que da ciência. Não vamos abstrair a realidade a religião não é secular (seria uma contraditio in adjecto) e, portanto, o ministro não tem a mesma função do juiz ou do médico. Pelo contrário. E mais: estava em exercício regular do seu direito de crença, falando de fé, e não de suicídio, de forma que seria até estranho, anômalo, se começasse a advertir sobre más interpretações. Todo o sacerdote teria de fazê-lo, se fosse exigível. E o direito penal não é a fonte adequada para mudança social pelo contrário, é o meio mais violento e antidemocrático possível para tal transformação. Logo, creio estar excluída a causalidade normativa, e, portanto, o fato não é imputável ao sacerdote.
9) Descabe falar de culpa, nesse caso. Não chegamos ao juízo sobre os elementos subjetivos do tipo. O tipo objetivo não se concretizou. Não há causalidade. Tu mesmo citaste um precedente do STF que determina que deve haver previsibilidade na culpa. Houve previsibilidade? Não. Mais: nem sequer era exigível que houvesse. De qualquer forma, descabe falar de culpa stricto sensu, ou dolo, nesse caso. Não chegamos a esse juízo. Não chegamos a culpabilidade, para falar de inexigibilidade. o fato é atípico, objetivamente.
Essa é a minha opinião.
Respeitosamente,
Moysés.